Hebreus 6:4-8: É impossível, pois, que aqueles que uma vez foram iluminados, e provaram o dom celestial, e se tornaram participantes do Espírito Santo, e provaram a boa palavra de Deus e os poderes do mundo vindouro, e caíram, sim, é impossível outra vez renová-los para arrependimento, visto que, de novo, estão crucificando para si mesmos o Filho de Deus e expondo-o à ignomínia. Porque a terra que absorve a chuva que freqüentemente cai sobre ela e produz erva útil para aqueles por quem é também cultivada recebe bênção da parte de Deus; mas, se produz espinhos e abrolhos, é rejeitada e perto está da maldição; e o seu fim é ser queimada.
Hebreus 6:4-6 é um dos textos mais freqüentes nos debates entre calvinistas e arminianos, especialmente quando se discute a doutrina calvinista da Perseverança dos Santos, segundo a qual Deus concede perseverança a todos os salvos, de maneira que nenhum deles se perde ou perece. Só falsos cristãos poderiam realmente apostatar da fé e serem condenados finalmente.
Os críticos do calvinismo invocam Hb. 6:4-6 para negar essa doutrina: o texto parece dizer que os salvos podem cair e ser condenados. Nada no texto parece indicar uma experiência de salvação falsa: iluminação, dom celestial, Espírito Santo, palavra de Deus, poder escatológico. Invoca-se também, na mesma carta, a Hb. 10:26-27, texto semelhante:
Hebreus 10:26-29: Porque, se vivermos deliberadamente em pecado [ekousiōs hamartanontōn], depois de termos recebido o pleno conhecimento da verdade, já não resta sacrifício pelos pecados; pelo contrário, certa expectação horrível de juízo e fogo vingador prestes a consumir os adversários. Sem misericórdia morre pelo depoimento de duas ou três testemunhas quem tiver rejeitado a lei de Moisés. De quanto mais severo castigo julgais vós será considerado digno aquele que calcou aos pés o Filho de Deus, e profanou o sangue da aliança com o qual foi santificado, e ultrajou o Espírito da graça?
Se os dois textos tratam da mesma situação (como o argumento contínuo da Epístola faz crer), os apóstatas de Hb. 10:26-29 foram santificados com o sangue da aliança, o sangue de Cristo (9:13-14; 10:10,14; 13:12,20).
O ponto negativo dessa argumentação é que os textos não parecem dar nenhuma esperança para aquele que já caiu (6:6) ou pecou voluntariamente (10:26). As palavras são surpreendentes: “é impossível renová-los para o arrependimento” (adunaton… palin anakainizein eis metanoian). Isso seria recrucificar a Cristo (6:6). Esse tipo de leitura faz com que a apostasia seja virtualmente um pecado imperdoável, pois Cristo não pode ser recrucificado. É impossível renová-los para o arrependimento — isso significa que é impossível que eles se arrependam?
Isso levanta imediatamente uma questão pastoral de como proceder com aqueles que apostataram e querem ser absolvidos, enfrentada nas controvérsias com novacianismo e donatismo e em qualquer outro momento onde haja perseguição severa aos cristãos. Como lidar com essas pessoas? Pode-se mesmo dizer que o arrependimento delas é falso, por mera dedução doutrinal?
Os Pais da Igreja nos dão uma interpretação diferente, muito mais clara e muito mais responsável pastoralmente. Segundo Ambrósio (Sobre o Arrependimento, II, 7), Crisóstomo (Homilia 9 sobre Hebreus), João Damasceno (De Fide Orthodoxa, IV, 9), o texto refere-se ao Batismo. Os pais da Igreja, desde muito cedo, chamavam o Batismo de “iluminação” (cf. Justino, Primeira Apologia, 61), e esse seria o sentido dessa palavra em Hb. 6:4, bem como em Hb. 10:32. Na Peshitta, a tradição das Escrituras para o siríaco, verte nesses dois textos iluminar como batizar.
Do mesmo modo, a expressão “ser outra vez renovado para o arrependimento” (6:6), também indica o Batismo. Esse é o mesmo tipo de linguagem de Mc. 1:4-5 e, embora o Batismo cristão não seja o “batismo do arrependimento” de João Batista (At. 19:1-6), o arrependimento ainda se faz presente para aqueles que são evangelizados (At. 2:38). Isso não significa, portanto, que essas pessoas não possam se arrepender, mas não pode mais ser renovadas para o arrependimento.
Em síntese, o texto diz que é impossível aqueles que foram batizados sejam rebatizados, isto é, recebam novamente o perdão batismal, porque isso seria recrucificar a Jesus. Embora o texto não explicite a ligação entre o Batismo e a Crucificação de Cristo, ela aparece nos textos da tradição paulina (Rm. 6:4-7; Cl. 2:12). Como Cristo só foi crucificado de uma vez para sempre (hapax, 9:26; ephapax, 10:10), só podemos ser batizados uma vez (hapax, Hb 6:4).
Esse seria o motivo pelo qual os vv. 7-8 falam da chuva (água) que cai sobre a terra, o simbolismo natural da água, que pode gerar frutos diferentes em terras diferentes: a erva útil, na qual há bênção, ou espinhos e abrolhos, símbolos de maldição. Nem todos os batizados são fiéis ao Evangelho, e aqueles que não são devem aguardar condenação maior que a mera morte que a Lei Mosaica impõe.
É claro que a carta aos Hebreus, embora exorte à perseverança, não indica o caminho do arrependimento para os que caíram. Ainda assim, a carta não fecha essa porta, como a interpretação não-sacramental indica. O retorno pelo arrependimento é indicado em outros textos bíblicos.
Tiago 4:8-10: Chegai-vos a Deus, e ele se chegará a vós outros. Purificai as mãos, pecadores; e vós que sois de ânimo dobre, limpai o coração. Afligi-vos, lamentai e chorai. Converta-se o vosso riso em pranto, e a vossa alegria, em tristeza. Humilhai-vos na presença do Senhor, e ele vos exaltará.
1João 1:9: Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda injustiça.
É fácil perceber que não se pode provar que o texto se refere ao Batismo. As provas de que a iluminação é o Batismo são de décadas depois da Epístola aos Hebreus. Mas é a única solução textualmente coerente e que não contradiz o que sabemos pelo restante da Sagrada Escritura.
É claro que essa interpretação parecerá inaceitável para grande parte do evangelicalismo contemporâneo, para o qual o Batismo é apenas um banho inútil, uma forma de exibicionismo da fé, no qual não recebemos coisa alguma de Deus.
G. M. Brasilino