Muitos erros de interpretação são desfeitos se os leitores forem simplesmente mais atentos, e o propósito da Hermenêutica é tornar o leitor mais atento, não só para os detalhes do texto, mas também para a totalidade. A importância da atenção não deveria ser nenhum segredo, especialmente quando falamos da leitura das Sagradas Escrituras, texto que exige de nós tão grande reverência. A atenção que dispensamos ao texto é simplesmente o amor que temos para com aquilo que ali se revela, para com Aquele que ali se revela.
Mas às vezes o erro já vem pronto para nós, das mãos do tradutor. É o caso de Apocalipse 13:8, que, em certa versão (ARA), nos fala sobre “aqueles cujos nomes não foram escritos no Livro da Vida do Cordeiro que foi morto desde a fundação do mundo.” Quem o cita, muitas vezes prefere a parte final, sobre o “Cordeiro que foi morto desde a fundação do mundo”. É uma leitura natural daquilo que o tradutor nos fornece. Ainda assim, somos entregues a um texto muito estranho. O que significa dizer que o Cordeiro, Cristo, foi morto desde a fundação do mundo? Cristo só morreu uma vez, só se ofereceu em sacrifício uma vez, e isso é uma doutrina fundamental na Carta aos Hebreus (Hb. 9:26; 10:10-14,18).
Por vezes tenta-se interpretar esse texto de forma menos literal: o texto não se referiria à morte do Cordeiro, mas ao plano de Deus, que antecedia a fundação do mundo e levaria a essa morte. É óbvio que a Providência de Deus para a salvação do homem incluía, desde sempre, o sacrifício de Cristo. O texto não acrescentaria nenhuma informação. Mas o estranho seria tratar disso em um contexto sem qualquer relação, além de o texto não nos dar nenhuma indicação de que seu significado seja esse.
O que fazemos quando uma versão da Bíblia é problemática? Há quem veja na comparação entre traduções a solução mágica, mas a simples comparação não nos diz nada quando as traduções estão em direções diferentes. A NAA (Nova Almeida Atualizada), traduz esse trecho assim: “…aqueles que, desde a fundação do mundo, não tiveram os seus nomes escritos no Livro da Vida do Cordeiro que foi morto.” Agora a coisa muda de figura: a referência temporal está ligada à escrita dos nomes, não à morte do Cordeiro.
Parece-me óbvio que essa segunda versão é mais bonita, mais coerente, mais inteligível, mais clara — mas será a mais correta? A simples comparação não nos diz qual delas é mais fiel ao texto original. Depois da comparação, poderíamos seguir o que diz a maioria delas. Mas a maioria pode estar errada; neste caso, a maioria está errada. Várias almeidas erram, a NVI erra, a NVT erra grosseiramente. Acertam a NTLH, a Bíblia Viva, a Nova Almeida Atualizada. E como todas elas são traduções, sabemos qual está correta não por compararmos umas às outras, mas por comparar cada uma delas ao texto original que traduzem — o texto grego de Apocalipse 13:8, no caso.
Felizmente, quem não conhece grego poderia simplesmente continuar lendo o livro de Apocalipse e se deparar, alguns capítulos depois, com a reposta, em português claro: “…aqueles que habitam sobre a terra, cujos nomes não foram escritos no Livro da Vida desde a fundação do mundo…” (17:8). Aqui, nenhuma tradução erra, porque o texto grego original não fala do Cordeiro, mas apenas do Livro. Aqui, sim, uma feliz comparação, dentro da própria tradução, solucionaria o problema.
O texto grego de Apocalipse 13:8, traduzido mais ao pé da letra, nos fala sobre “aqueles cujo nome não foi escrito no Livro do Cordeiro Morto desde a fundação do mundo” — hou ou gegraptai to onoma autou en tō bibliō tēs zōēs tou arniou tou esphagmenou apo katabolēs kosmou. Ao contrário do que algumas traduções fazem parece, não existe a conjunção subordinativa “que”, que para nós separa “morto antes da fundação do mundo” em uma oração à parte, possibilitando o erro crasso de interpretação. Na realidade, tudo é uma oração só, e “do Cordeiro Morto” (tou arniou tou esphagmenou) é apenas parte do “nome” do Livro: Livro da Vida do Cordeiro Morto.
Não é difícil entender por que essa seria a leitura correta. O Livro da Vida contém, antecipadamente, os nomes daqueles que entrarão na Jerusalém Celestial (Ap. 20:15; 21:27). O Antigo Testamento já usava a imagem de um livro para indicar a providência e presciência de Deus sobre a vida humana (Sl. 139:16). Esse conceito judaico, que aparece na literatura anterior ao Novo Testamento e que também ecoa nele (Lc. 10:20; Fp. 4:3), recebe um uso muito estranho no livro do Apocalipse: por um lado, há nomes que, desde a eternidade, não foram escritos; por outro, aparece a possibilidade de que os nomes sejam riscados (Ap. 3:5; cf. Êx. 32:33. Ap. 22:19).
Rev. Gyordano M. Brasilino
Muito edificante e esclarecedor.
Que o Espírito Santo continue iluminando na interpretação das letras sagradas, para que possamos chegar cada vez mais próximo da verdade.
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Assim seja
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Saudações,
Luteranos ensinam a eleição como causa da salvação, mas admitem possibilidade de perda da salvação (o texto admite que nenhum nome é escrito durante a história, mas que existe a possibilidade de serem riscados). Anglicanos tem o mesmo entendimento que luteranos sobre a perda da salvação?
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Não existe uma doutrina anglicana sobre a possibilidade de perda da salvação, e, por isso, há diferentes posições.
Porém, uma vez que os sacramentos comunicam salvação, e nem todos os que recebem os sacramentos serão salvos, está implícita aí uma “perda” de salvação.
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