C. S. Lewis e os Sacramentos

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“Na verdade, minhas idéias sobre os sacramentos provavelmente seriam consideradas ‘mágicas’ por um bom número de teólogos modernos.” Cartas a Malcolm, Segunda Carta

Amado por muitos dos evangélicos mais jovens e odiado pelos neo-puritanos e neo-fariseus que o conhecem (pouco), C. S. Lewis ocupa um papel ambíguo no mundo evangélico. Afinal, ele não era um evangélico no sentido mais usual da palavra. Era um anglicano, e a Igreja Anglicana não é uma igreja evangélica, mas uma igreja com evangélicos e com diversas outras marcas de cristão. De fato, pode-se dizer que o movimento evangélico principiou na Igreja Anglicana; o evangélico anglicano é o evangélico raiz. Ainda assim, C. S. Lewis não pertencia a esse grupo. Era um cristão anglicano puro e simples, a mere Anglican.

Um distanciamento de C. S. Lewis em relação a grande parte do movimento evangélico diz respeito ao que ele escreveu sobre os sacramentos. Tudo o que ele escreveu a esse respeito parece estar em linha com a fé anglicana esboçada no texto anterior (leia aqui). Apesar de não ser um teólogo, como ele reconhece, e de se comprometer em prestar algum serviço para cristãos muito além de sua própria comunidade de fé  dois fatos que naturalmente o levariam a evitar temas mais polêmicos , todas as suas palavras a respeito dos sacramentos indicam a centralidade que reconhece neles. Afinal, os sacramentos são coisas sobre as quais não é possível passar sem um posicionamento. É crucial saber se eles são cruciais ou não são, e esconder isso não é prestar serviço a ninguém.

Fosse Lewis um evangélico contemporâneo, provavelmente sequer mencionaria o Batismo e a Eucaristia em qualquer um de seus livros, e esse silêncio seria um posicionamento, mesmo que pouco consciente. As palavras de Lewis, no entanto, são claras sobre o papel sobrenatural dos sacramentos, como ele mesmo escreve no Cristianismo Puro e Simples:

“Há três coisas que irradiam a vida de Cristo para nós: o batismo, a fé e ação misteriosa a que os diferentes cristãos dão nomes diferentes — a Santa Comunhão, a Missa, a Santa Ceia. Ao menos esses são os três métodos ordinários. Eu não digo que não possa haver casos especiais em que ela seja irradiada sem um ou mais deles. Eu não tenho tempo de adentrar em casos especiais, e eu não sei o suficiente. Se você tenta em poucos minutos dizer a um homem como chegar a Edimburgo, você indica o trem; ele pode, é verdade, chegar lá de barco ou de avião, mas isso dificilmente será mencionado.”

Apesar de tais palavras serem desajeitadas quanto à precisão doutrinal — pois é claro os sacramentos desempenham um papel e a fé desempenha outro, mesmo que sejam correlatos na irradiação (spreading) da vida de Cristo sobre nós —, trata-se de uma linguagem mais “solta” que, do ponto de vista literário, aponta o leitor menos instruído, especialmente o leitor evangélico menos instruído, na direção correta: assim como a fé, o Batismo e a Eucaristia têm papéis salvíficos. Assim como a fé, eles não têm nenhum papel independente da graça; é nela que eles têm seus sentidos.

Como no catecismo anglicano, que considera os sacramentos como “geralmente necessários à salvação”, não absolutamente necessários, Lewis considera a possibilidade de salvação sem os sacramentos, em “casos especiais” que não derrogam os “métodos ordinários”. Os sacramentos são, portanto, meios ordinários para recebermos a “vida de Cristo” sobre nós. No mesmo capítulo, suas palavras aludem mais claramente ao modo como os sacramentos irradiam a vida de Cristo:

“E deixe-me esclarecer que quando os cristãos dizem que a vida de Cristo está neles, não se referem simplesmente a algo mental ou moral. Quando falam sobre estar ‘em Cristo’ ou sobre Cristo estar ‘neles’, essa não é simplesmente uma forma de dizer que eles pensam sobre Cristo ou o imitam.  Querem dizer que Cristo está realmente operando através deles; que toda a massa dos cristãos são o organismo físico através do qual Cristo age — que somos os Seus dedos e músculos, as células do Seu corpo. E talvez isso explique uma ou duas coisas. Explica por que essa nova vida é irradiada não apenas por atos puramente mentais como a crença, mas por atos corporais como o batismo e a Santa Comunhão. Não é a meramente a irradiação de uma idéia; é mais como uma evolução – um fato biológico ou sobre-biológico. Não há por que querer ser mais espiritual que Deus. Deus nunca quis que o homem fosse uma criatura puramente espiritual. É por isso que Ele usa coisas materiais como pão e vinho para colocar a nova vida em nós. Podemos considerar isso rude e inespiritual. Deus não: Ele inventou o comer. Ele gosta da matéria. Ela a inventou.”

Lewis não vê os sacramentos apenas como comunicando idéias sobre Cristo, como exercendo algum efeito moral, mas como agindo de uma maneira sobrenatural que não é “puramente espiritual”, não puramente imaterial. Duas teologias se entrelaçam para substanciar essa idéia: em primeiro lugar, a noção paulina do corpo de Cristo (“somos os Seus dedos e músculos, as células do Seu corpo”); em segundo, o conceito ainda mais básico — e que está na raiz do primeiro — de que, sendo Deus o Criador da matéria, ele não a despreza como meio de sua ação no mundo (“Ele usa coisas materiais…”). Vemos aqui em ação o mesmo princípio que em 1Co. 10:16-17: há uma ação sobrenatural no sacramento, como corpo de Cristo, através da qual somos o Corpo de Cristo.

Assim, os sacramentos são meios pelos quais Deus irradia “a vida de Cristo para nós”, e isso significa colocar “a nova vida em nós” — o que, sem dúvida, alude à doutrina anglicana, patrística e bíblica da regeneração batismal, algo que se estende à Eucaristia. Essa vida de Cristo é uma participação na “humildade e sofrimento de Cristo”, palavras do mesmo capítulo, e a conexão com o Batismo é evidente em Rm. 6:3-7. Essa vida de Cristo, recebida nos sacramentos, pode ser perdida (“In the same way a Christian can lose the Christ-life which has been put into him, and he has to make efforts to keep it.”).

Como genuíno anglicano, Lewis não abraça nenhuma teoria sobre a Presença Real de Cristo. Afinal, nenhuma delas é capaz de resolver o mistério, de modo que  falham aquelas que buscam precisamente eliminar o misterioso dos sacramentos. “O comando, afinal, foi ‘Tomai, comei’, não ‘Tomai, entendei.'”, como escreve nas Cartas a Malcolm. Ainda assim, ele afirmava essa Presença Real no sacramento, sendo capaz de escrever (em O Peso da Glória):

“Depois do próprio Santo Sacramento, teu próximo é a o objeto mais santo presente aos teus sentidos.”

Isso significa dizer que há maior santidade no sacramento do que em qualquer outra pessoa, pois a Presença Real é o próprio Cristo, presente de maneira sobrenatural e mistérios, e nada pode ser mais santo que o próprio Cristo presente entre nós e presente aos nossos sentidos, como sacramento. Escrevendo em outro contexto, sobre a Transposição, Lewis associa uma definição de sacramento a certos outros “fenômenos”, como a relação entre uma pintura de um objeto luminoso (sol, lâmpada) e o próprio objeto luminoso (que ilumina a pintura):

“Os sóis e luzes em uma pintura parecem brilhar apenas porque os sóis ou luzes reais brilham neles: isto é, eles parecem brilhar bastante apenas porque eles realmente brilham um pouco refletindo seus arquétipos. A luz solar em uma pintura, portanto, não se relaciona à luz solar real simplesmente como a as palavras escritas se relacionam às faladas. Ela é um sinal, mas também algo mais que um sinal: e somente é um sinal porque é também mais que um sinal, porque nele a coisa significada está realmente presente de algum modo. Se eu tivesse que nomear a relação, eu a chamaria não de simbólica, mas sacramental.”

Essa é uma das definições mais adequadas para “sacramento” no sentido mais amplo do termo: um sinal (signum) sagrado em que a coisa significada (res significata) está realmente presente de algum modo. Os sacramentos, em sentido estrito, são como pinturas do Sol da Justiça iluminadas sobrenaturalmente pela presença, nelas, desse Sol, e que por isso se tornam muito mais do que pinturas, muito mais do que representações, mas re-prensentações, cada uma do seu modo.

Rev. Gyordano M. Brasilino

2 comentários em “C. S. Lewis e os Sacramentos

  1. Bom dia! Ótimo artigo. Sou Rev. Luterano o senso comum erroneamente nos atribui a a doutrina da consubstanciação com relação ao Santo Sacramento do Altar. Contudo, nossas confissões afirmam justamente a união Sacramental. Resguarda-se o mistério de como essa presença real de Cristo se dá. Acolhe-se em fé esse mistério contido nas palavras do Senhor de forma inefável e desfruta-se de suas promessas. Isto nos basta. Abraço fraterno. P. Edwin Fickel

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