No Gólgota, havia dois ladrões, cada um de um lado de Jesus, recebendo o mesmo suplício que ele. Assim como eles, milhares de pessoas foram crucificadas no Império Romano. A morte de nenhuma dessas pessoas tem o poder redentor, mesmo sendo o mesmo tipo de morte. O que torna a morte de Cristo diferente? O que faz com que ela seja redentora? O que havia de diferente naqueles sofrimentos?
Com certeza aquele não foi o primeiro ato de injustiça cometido numa crucificação. Inocentes foram mortos antes e outros o foram depois. No entanto, um dos documentos cristãos mais antigos que temos, o hino crístico de Filipenses 2:5-11, aponta uma das primeiras interpretações teológicas da morte de Cristo: ele foi obediente até à morte de cruz (a mais abjeta) e, por isso, Deus o exaltou dando-lhes um nome acima de qualquer outro, para que todos o confessem como Senhor.
A obediência Cristo é recompensada com um prêmio. O humilhado é exaltado. Como em Daniel 7, isso significa que o tirano é deposto no Concílio Divino. Isso está na essência do querigma: Cristo entraria na glória através do sofrimento (Lc 24:26; Hb 12:2; 1Pe 1:11), da mesma maneira que ele nos ensina a fazer. Ele venceu e, com isso, pode abrir o Livro da Vida (Ap 5:9-10).
Ao tomar sobre si essas dores, particularmente a cruz romana, Cristo estava sofrendo nas mãos do Quarto Império, em conformidade com a profecia, tudo em razão do castigo de Israel pronunciado por Jeremias. O sofrimento de Cristo é uma continuação e o ápice do Cativeiro Babilônico. Como o representante do Servo de Javé (Israel) de Isaías 53, Cristo sofre nas mãos dos gentios. Nele, todo o castigo de Israel é consumado.
Mas se Cristo sofre o castigo de Israel nas mãos de Israel, isso significa o fim da Antigo Aliança. O Deus de Israel é morto por Israel nas mãos dos gentios. O fim da aliança significa o fim do domínio do escrito de dívida que é a Torá (Cl 2:14-15), e, com isso, a salvação é aberta para o mundo todo, para aqueles que estão fora da Torá. Cristo se faz maldição (não maldito!) para que, com isso, a benção de Deus possa passar aos gentios (Gl 3:13-14). Ele é rejeitado pelos homens para que eles sejam abraçados por Deus. Em Gálatas 3 (todo o capítulo), essa bênção prometida é a justificação pela fé — ou seja, o recebimento do Espírito Santo, a Nova Vida escatológica (cf. At 2:32-33). Em suma, com sua morte, Cristo derrama o Espírito sobre o mundo, rompendo as barreiras nacionais colocadas (temporariamente) pela Torá. Somente Cristo poderia fazer isso, pois nenhum outro israelita é o Deus de Israel.
Se o domínio da Torá termina, perdem seu poder os Arcontes Elementais do Mundo (ta stoicheia tou kosmou), que a usavam para dividir e dominar. Cristo instaura a nova era, que não é a dos anjos (Hb 2:5), mas a do Filho do homem. Sua morte é, portanto, uma vitória libertadora, um grande exorcismo do mundo, um livramento dos cativos: Christus Victor. Tudo isso já havia iniciado quando Cristo curou os oprimidos do diabo e exorcisou os homens — sua missão é batalha espiritual, o poder do Espírito é sinal da chegada do Reino escatológico, sua morte é “a hora e o poder das trevas” pela traição de um discípulo endemoniado.
Mas o juízo que Cristo sofre do Sinédrio e de Pilatos é irônico. Ele aparece como o juízo do mundo, pois cabe ao Filho, e não ao Pai, exercer todo o juízo (Jo 5:22,27): Christus Judex. Na cruz, ele expulsa o príncipe deste mundo (Jo 12:31-33), ele anula o poder do diabo (Hb 2:14-15), pois foi para isso que ele se manifestou (1Jo 3:8). Essa é a dimensão apocalíptica de sua obra: a redenção (alforria) é justificação, e a justificação é Deus colocando ordem no mundo.
Na raiz de todo o problema está o pecado: a desordem maligna que invade a bela criação de Deus. Pois o pecado não é só uma violação ou ofensa, mas corrupção, destruição. O Messias é o médico que vem aos pecadores para curá-los pelo arrependimento escatológico: Christus Medicus. Sua obra redentora aplica a justiça restaurativa e medicinal (não meramente punitiva) de Deus.
Em tudo isso, Cristo cumpre não só a vocação de Israel, mas recapitula a vocação de Adão. Ele é o segundo Adão que recupera e supera (com sua obediência) tudo o que foi perdido no primeiro (com sua desobediência); onde abundou o pecado, superabundou a graça. Adão provocou morte; Cristo, vida. No primeiro todos morrem; no segundo todos serão vivificados. Esse é, mais uma vez, o prêmio de sua obediência.
Com isso, Cristo cumpre a missão para a qual os sacrifícios expiatórios da Torá eram meras sombras. Como se descobriu na Era Axial, a essência dos sacrifícios estava no coração contrito (Sl 51:16-17), para o qual o rito exterior do oferecimento dos animais (e outras coisas) eram símbolos. O sangue era a vida (não a morte) oferecida a Deus, intercessoriamente, pela purificação dos homens. Na Lei, “expiar” é “cobrir” — não encobrir culpas, mas cobrir feridas. É o rito de cura (Barker). Cristo, através de sua obediência (fazendo a vontade do Pai), realiza o que os sacrifícios não podiam (Hb 10:2-10). Ele realiza, através de sua obediência, a intercessão que não se podia fazer. Por isso, sua obra não foi concluída na cruz. Ele continua a interceder (Rm 8:34; Hb 7:25; 9:24). Ele conquistou essa intercessão, inclusive pelo envio do Espírito Santo (Jo 14:16).
É nesse sentido que somos reconciliados com Deus. Cristo intercede pelos nosso perdão e nos purifica de toda a corrupção de nossas almas, através da obra contínua Espírito Santo. Todo o sistema de pureza e sacrifício da Lei repousa no princípio de que o impuro não pode adentrar no espaço sagrado e tocar no que é santo — que não se dê as coisas santas aos cães. Não há comunhão de Deus com as trevas. Purificando nossa alma, Cristo nos permite tornar à comunhão. Eis a essência da reconciliação. É nesse sentido que somos perdoados através da morte de Cristo. Não há perdão sem purificação. É somente no sentido de intercessão e purificação que podemos falar de “satisfação”.
Consistentemente, a Escritura sempre ensina que somos reconciliados com Deus, e jamais que ele é reconciliado conosco, ou propiciado em nosso favor. (Tais coisas só fazem sentido como linguagem figurativa.) Pois Deus é imutável, impassível — o Amor imutável, a Compaixão impassível. Todo o problema está em nós, não em Deus; por isso, na redenção, toda a mudança ocorre em nós, não em Deus. Nós retornamos à comunhão com ele, por iniciativa daquele que se assentou com pecadores para curá-los.
A cura que Cristo realiza consiste em fazer habitar nós o seu Espírito, o Espírito de Cristo, que mana do trono de Deus e do Cordeiro, e que nos cristifica e cruciforma. Nesse sentido, os sofrimentos de Cristo não são substitutos — ele não sofreu em nosso lugar em sentido literal —, mas representativos e participativos: ele sofre conosco, em nós, e nós completamos os seus sofrimentos (Cl 1:24). Nós participamos dos sofrimentos do Messias para, com ele, podermos entrar em sua glória (Rm 8:17; 2Co 1:5; Fp 3:10; 2Tm 2:11-12; 1Pe 4:13-14 ).
Nossa transformação consiste em revivermos toda a história de Cristo: renascemos com ele, padecemos com ele, morremos com ele, somos sepultados com ele, com ele revivemos, com ele ascendemos, com ele herdamos o Reino. Somos conformados à Imagem (eikōn, ícone) do Homem Celestial, sendo diariamente glorificados para refletir a sua imagem. Isso não é mero exemplarismo e imitação; é o poder do Crucificado e Ressuscitado habitando nos homens, pela fé, na vida batismal.
Os sofrimentos de Cristo são partilhados por nós: ele não bebeu nosso cálice em nosso lugar, mas nos chama a beber, com ele, do seu cálice; ele não levou sobre si a nossa cruz em nosso lugar (literalmente), mas nos chama a carregarmos a cruz com ele; ele não foi expulso da cidade terrena em nosso lugar, mas abriu a porta para que saiamos com ele, carregando com ele o seu vitupério. Não há substituição aí. Há participação. Tudo isso nos ajuda a entender o que foram os sofrimentos de Cristo na economia da redenção, pois nós participamos deles e sabemos que o que Deus deseja de nós não é o mero sofrimento (sádico), mas a obediência em meio aos sofrimentos. Assim foi também com Cristo.
Com tudo isso, podemos dizer: a obra da redenção não é apenas a cruz, embora ela esteja no centro. A redenção é sua paixão, morte, descenso, ressurreição, ascensão, intercessão e futura parusia. Particularmente sua ressurreição é responsável por nossa justificação (Rm 4:25), ou seja, por nossa libertação do poder da morte, cujos grilhões ele destruiu ao ressurgir vitoriosamente.
Diante dessas coisas, discussões sobre expiação limitada ou ilimitada perdem muito do sua utilidade. Elas fazem algum sentido se nós nós perguntamos se Cristo morreu no lugar de alguém ou pagou o preço de alguém. Mas se Cristo ataca o inimigo, sua obra tem não apenas um potencial universal, mas um efeito universal do qual nenhum ser humano escapará: todos, justos e ímpios, ressuscitarão, uns para a vida, outros para a condenação.
Por sua obra, Cristo realiza o sacrifício que sela a aliança ente Deus e os homens, para que ele seja o seu Deus e eles sejam o seu povo. O sacrifico de Cristo é a eclesiogênese pelo Espírito, é a habitação presente dos poderes do mundo vindouro. A nova aliança está no cálice.
Beba.
Rev. Gyordano M. Brasilino