A ideia mais errada sobre o Apocalipse

Quando o livro bíblico de Apocalipse é lido pela primeira vez, o leitor facilmente fica impressionado com a estranheza da mensagem. Parte disso se deve à quantidade de figuras simbólicas geralmente inesperadas: estrelas, candelabros, rolos, selos, trombetas, cálices, bestas, mulheres, mil outras coisas. Normalmente não sabemos o que fazer com essas coisas, mas elas nos parecem coisas importantes e misteriosas.

Então uma pergunta que podemos fazer é: por que esse livro foi escrito assim? Nem toda a Bíblia foi escrita assim. Existem parábolas, como as de Jesus nos evangelhos, mas elas são diferentes, ou parecem ser diferentes. Na verdade, encontramos poesia por toda a Bíblia, mas o Apocalipse é diferente. Ele é esquisito. Que propósito há por trás disso?

Existe a hipótese de que o Evangelho de João tenha sido escrito na sua linguagem altamente simbólica para que os romanos não soubessem do conteúdo, não entendessem a mensagem, pois o Apocalipse de João seria um livro considerado subversivo pelo Império, então seu escritor teria colocado tudo em linguagem simbólica mais pesada, acessível apenas ao círculo interno, ao leitor qualificado. O livro seria, portanto, “codificado”. Há acadêmicos que pensam assim, e muitas pessoas, mesmo sem conhecimento sólido de teologia bíblica e estudos críticos, acabam repetindo essa opinião desses especialistas. A ideia é evitar a censura do Império.

Embora a ideia escrever em código para fugir da repressão não seja de todo desarrazoada, ela não é coerente com o livro que temos em nossas mãos. Na verdade, os romanos não teriam dificuldade de perceber que o Apocalipse fala deles. Parte da mensagem central do livro é de que Jesus irá destruir um império mundial maligno e corrupto, um império localizado numa cidade de sete montes. Os romanos não precisariam ser muito geniais para desconfiarem. Na verdade, eles teriam que ser muito bobos para não notarem o “código”, e João teria que ser muito ingênuo para achar que isso funcionaria, se essa fosse sua intenção. Aliás, seria muito trabalho para nenhum resultando, considerando quantos símbolos “inofensivos” há no livro.

Toda essa ideia presume que João não tenha tido as visões que disse ter tido. A obra inteira teria que ser ficção. Isso nos colocaria no impasse entre a explicação sobrenatural (ou alucinação) e a ficcional. Se João realmente viu, de algum modo, o céu, a besta, a mulher coroada de estrelas, então o motivo pelo qual ele escreveu assim é apenas o de ser fiel à visão. Ele viu e escreveu. Mas se ele não teve essas visões, então ele é um escritor com uma mensagem, e pode perfeitamente imaginar a melhor maneira de comunicá-la. Então os cristãos geralmente iriam numa direção, os céticos, noutra. Qualquer tentativa de um meio termo, com algo de sobrenaturalidade, já está além das possibilidades vislumbradas pelo cético.

Mas creio que podemos seguir por uma rota metodológica que evite, em parte, esse impasse. Quando o Apocalipse de João foi escrito, os símbolos utilizados no livro em grande parte já existiam, nos escritos da religião israelita, especialmente aqueles escritos que os cristãos consideram canônicos (o Antigo Testamento), assim como, particularmente, a literatura apocalíptica do Judaísmo do Segundo Templo. Então João não criou o código que ele utilizou. Ele o empregou de certa maneira, mas isso nos leva a perguntar por que os autores apocalípticos em geral usavam esses códigos, não apenas João escrevendo sobre Roma.

Existe, é claro, a possibilidade de que João, assim como qualquer outro apocalipsista, tenha as suas próprias convicções quanto ao propósito do simbolismo apocalíptico. Alguma diferença deve haver, por exemplo, entre os apocalipsistas judeus e os cristãos, especialmente quanto ao simbolismo do Templo. Mas a maneira como entendemos essa intenção particular deve levar em conta primeiramente tratar-se de uma simbólica preexistente. Em grande parte, na verdade, esses símbolos precedem a literatura apocalíptica judaica e o Antigo Testamento, sendo encontrado nas mitologias mesopotâmicas, egípcias, canaanitas e iranianas.

Então, seja o autor do Apocalipse o vidente João de Patmos, identificado por alguns dos primeiros Pais da Igreja como o apóstolo, seja ele uma pessoa de nome desconhecido escrevendo sob pseudônimo e fazendo uso criativo da ficção literária, o fato é que o Apocalipse de João dialoga com essa literatura mais ampla.

Ademais, embora os símbolos do Apocalipse exijam sua própria interpretação, precisamos tomar cuidado para não o tratar como um código hermético e arbitrário, conhecido de poucos. A ideia de que os símbolos sejam primariamente códigos, linguagem cifrada, é inteiramente questionável. Uso que o Apocalipse de João faz de um código genuíno se limita provavelmente ao número da besta. Não é um traço característico do livro.

Na verdade, quando descrevemos as coisas com uma linguagem simbólica mais profunda, nós enriquecemos os objetos do nosso discurso, ou, antes, permitimos que sua riqueza invada nossa imaginação e a do nosso leitor. Ao descrever, por exemplo, o diabo como um dragão, João nos dá todo um conjunto de associações imagéticas que um simples código não é capaz de dar. O símbolo nos ganha pelo poder sugestivo, pela força imaginativa, ele nos torna participantes da construção da mensagem, além de interagir intertextualmente com outros escritos e com sua interpretação. João quer que leiamos Daniel, ou Zacarias, ou Ezequiel, através das mesmas lentes que ele. Talvez ele queira até mesmo que leiamos o pequeno apocalipse da tradição sinótica (Marcos 13) do mesmo jeito que ele. Ele não está apenas transmitindo uma mensagem. Ele está fazendo uma bagunça num mundo já existente, mudando as coisas de lugar.

O Apocalipse não é um velamento da realidade, ocultando a mensagem por trás dos símbolos. Pelo contrário, como seu nome indica, ele é um desvelamento. Aqueles símbolos mostram a realidade de Roma por detrás da fachada da pax romana. Aquilo que nós vemos com os nossos olhos é o código, e aquilo que o Apocalipse descreve é a realidade por trás do código. A cidade visível é uma mentira. A meretriz é real.

Rev. Gyordano M. Brasilino