Contra o Sionismo Cristão

“Pois o verdadeiro Israel espiritual e os descendentes de Judá, Jacó, Isaque e Abraão — que foi aprovado na incircuncisão e abençoado por Deus em razão de sua fé, e chamado pai de muitas nações — somos nós que fomos conduzidos a Deus pela fé no Cristo crucificado, como veremos.” Justino Mártir, Diálogo com Trifão XI

Introdução

Sempre que as notícias de conflitos e guerras na Terra Santa atraem a atenção da mídia, vemos certos grupos evangélicos, especialmente pentecostais e neopentecostais1, se levantarem em defesa do que consideram ser o direito do estado de Israel. Nunca vemos essas vozes aparecerem para criticar, mas sempre para apoiar o estado israelense, muitos deles acreditando que assim serão abençoados por Deus2. Essas pessoas acreditam que o atual estado de Israel, que surgiu em 1948, seria um cumprimento de profecias bíblicas. Esses são os “sionistas cristãos”, que, através de uma interpretação idiossincrática dessas profecias, acreditam que haja um plano divino por trás da fundação, ações e avanço do estado moderno de Israel.

Neste texto, pretendo mostrar por que o “sionismo cristão” é incompatível com o que a Escritura Sagrada ensina. Portanto, este texto se dirige a cristãos e ataca o “sionismo cristão”. Não é um ataque (1) a judeus enquanto tais, (2) à sua autodeterminação, (3) ao sionismo judaico3. No entanto, por versar sobre a (re)interpretação das profecias israelitas e da identidade judaica, obviamente este texto inevitavelmente contradirá o que fundamenta qualquer forma de sionismo com apelo às Escrituras.

Este texto não discute a legitimidade política do estado de Israel enquanto tal, tema que pode ser discutido, até certo ponto, sem apelo a uma revelação divina específica, mas apenas uma tentativa de justificar sua existência como um estado divinamente privilegiado, com um privilégio que outros povos, como os palestinos, não teriam.

Escrevo este texto motivado por duas convicções: o “sionismo cristão” é simultaneamente (1) um impedimento para a paz e para a liberdade e (2) uma perversão doutrinal que acaba por minar as bases para a existência da religião cristã. Não é o único impedimento, e provavelmente não é o principal — é tolice reduzir a questão os conflitos na Terra Santa a uma questão puramente religiosa —, mas certamente é um impedimento, já que ele é um dos elementos que compõem parte da “opinião pública” e influenciam a direita religiosa americana. Eu concordo com os líderes cristãos que, em 2006, elaboraram a Declaração de Jerusalém sobre o Sionismo Cristão, condenando essa doutrina como um “falso ensino que corrompe a mensagem bíblica de amor, justiça e reconciliação“.

A posição defendida neste texto é a da maioria dos cristãos, não só hoje, como ao longo dos séculos, fato reconhecido até mesmo pelos “sionistas cristãos” — posição que, através de uma miríade de espantalhos e confusões históricas, é culpada de antissemitismo e todo tipo de perversidade. Em síntese, essa posição é de que o Israel de Deus, herdeiro das promessas divinas, é a Igreja de Cristo, composta originalmente pela pequena comunidade de judeus que se mantiveram fiéis ao Messias e, com o tempo, abriram suas portas à conversão de gentios, pessoas que não observavam os costumes judaicos. Em outras palavras, “tudo quanto, outrora, foi escrito para o nosso ensino foi escrito” (Rm 15:4), “foram escritas para advertência nossa” (1Co 10:11).

Não defendo que os judeus sejam piores que outros seres humanos, mas iguais. O que combato é o pensamento de que eles tenham privilégios que outros povos não têm4. Eles não são melhores, mais iguais. A doutrina aqui estabelecida aqui é a da igualdade de todos povos (judeus e não-judeus) diante das promessas e profecias divinas. É claro que essa igualdade não é tolerada pelos defensores do “sionismo cristão”. Frequentemente eles acusam de antissemitismo qualquer pessoa que diga que os judeus não são privilegiados e sim iguais ao restante da humanidade. Isso se dá porque o “sionismo cristão” é uma forma de racismo; o judeu, para eles, só pode ser concebido como privilegiado, então remover esses privilégios é um ataque ao judeu em si. É profundamente lamentável e vergonhoso que cristãos prefiram atacar seus irmãos cristãos como antissemitas.

A posição que eu apresento é o equilíbrio. O equilíbrio entre os extremos odiosos dos que odeiam judeus (verdadeiros antissemitas) e os que privilegiam os judeus (verdadeiros racistas). Entre os que não querem os judeus na Igreja e os que acham que os judeus têm promessas exclusivas, especiais. Entre os que desprezam as profecias e os que almejam um cumprimento segundo uma leitura carnal. Entre a manutenção da identidade cultural e a igualdade espiritual-profética. Esse equilíbrio precisa ser definido a partir de um princípio divino e relevado, unificador, não simplesmente através da soma de tudo o que estiver sendo dito por todas as pessoas. Não há meio termo possível entre, de um lado, a doutrina histórica dos cristãos — a Igreja é a herdeira de todas as promessas divinas através do Cabeça — e o que propõe o “sionismo cristão” — que quer tornar herdeiros das promessas divinas os infiéis.

Uma observação importante para alguns leitores: eu não sou um reformado. Não sou calvinista e não represento ou defendo sua doutrina. A crítica apresentada aqui não é uma crítica reformada. Não defendo a “teologia do pacto” ou “aliancismo”. Não se trata de um embate entre aliancismo e dispensacionalismo. Eu não defendo nenhuma dessas perspectivas; defendo outra, que ficará mais nítida ao longo desta leitura. As afirmações básicas apresentadas aqui, ainda que numa linguagem diferente, dizem respeito à doutrina cristã de maneira mais ampla. Nos pontos em que ela coincide com a doutrina reformado, isso se dá porque os reformados foram, nesses aspectos, leais à Tradição Apostólica, como também o foram outras comunidades cristãs, enquanto os “sionistas cristãos” trouxeram uma nova doutrina.

Não posso evitar, é claro, que o presente texto seja visto, pura e simplesmente, como um apoio velado aos grupos palestinos, como o Hamas, que combatem o estado de Israel, dado o contexto concreto, e não meramente teórico, em que se dá essa discussão. Nesse sentido, eu só posso lamentar a estreiteza de visão de quem pensa assim, de quem não é capaz de ver os palestinos como tais e suas urgentes necessidades como fato a considerar. Se há crianças palestinas morrendo, se há sangue inocente sendo derramado (coisa que Deus detesta), o “sionista cristão” deveria considerar se vale a pena continuar defendendo sua posição. “Ao menos”, alguém pensará, “nossa posição é bíblica”, como a aliviar o peso na consciência. Pretendo mostrar, neste texto, que ela não é bíblica. É uma fabricação posterior, sem relação direta com os personagens da Escritura Sagrada.

1. O que é “Sionismo Cristão”?

Uma maneira comum de definir o “sionismo cristão” é como um apoio cristão ao estado de Israel, ou ao retorno dos judeus a Israel, ou coisa equivalente. É o tipo de definição que você encontrará em jornais e outros materiais não especializados. Embora essas palavras estejam corretas, elas não são precisas o suficiente para explicar o que seja o “sionismo cristão”. Uma maneira melhor definir o “sionismo cristão” é a partir de suas crenças básicas, que incluem as seguintes:

I. Direito divino. Os judeus têm direito divino permanente a um estado na Terra Santa que corresponda, geograficamente, a certas “promessas” bíblicas, feitas a Abraão e a eles.
II. Particularidade. Esse direito é exclusivo deles. Os palestinos não teriam o mesmo direito divino.5
III. Abrangência. Esses “judeus” (I) são tanto os praticantes atuais do judaísmo quanto os “judeus étnicos” que não o praticam.
IV. Defesa. É responsabilidade dos cristãos defender esse direito.
V. Identificação. O atual “estado de Israel” corresponde a um cumprimento (ainda que parcial) desse direito (I).

Estou disposto a revisar a definição acima a partir de provas de que ela não corresponde à realidade do “sionismo cristão”. De todo modo, acredito que seja uma definição justa, muito diferente da caracterização que os “sionistas cristãos” fazem da maioria dos cristãos, através do espantalho da “teologia da substituição”6 ou “supersessionism7.

É preciso definir corretamente e honestamente, comparando o que é dito ao que é feito. Assim, embora seja muito frequente ver “sionistas cristãos” retratarem os muçulmanos/árabes como maus, cruéis e radicais (o que é necessário para justificar a violência contra eles), não podemos colocar isso na conta da definição do “sionismo cristão”.

Naturalmente, a crença “V” é um elemento que o sionismo cristão só passou a ter depois da fundação de tal estado. Mas, depois de incorporado, se tornou parte do pacote. Não há sionista cristão que rejeite o atual estado de Israel ou que não o veja como cumprimento, ao menos parcial, das profecias. Os “sionistas cristãos” não esperam um futuro estado de Israel desconectado e independente do atual. Por isso, não se trata apenas de uma doutrina abstrata, mas simultaneamente de uma ideologia política, e, portanto, de um compromisso político.

Isso significa que assumir o “sionismo cristão” não é apenas professar uma doutrina abstrata, mas prestar apoio a um estado. Não me refiro aqui, no momento, a apoio a ações do governantes. Eu sempre tenho dificuldade de encontrar os “sionistas cristãos” críticos das ações do governo de Israel enquanto essas ações acontecem; só encontro críticas estratégicas, quando os acontecimentos se passaram em outros períodos (e portanto se tornaram irrelevantes para a opinião pública) ou quando essas ações não correspondem suficientemente às expectativas do próprio “sionismo cristão”.

Mas não me refiro aqui a apoio a governantes, assunto interessantíssimo para ser discutido em outro momento. Refiro-me a apoio ao estado de Israel em si. Por conta de sua premissa fundamental, os “sionistas cristãos” não apoiarão a solução de estado único que não seja a do “estado de Israel”, o mais próximo possível da “promessa abraâmica” (ao menos como eles a leem). Rejeitarão a “solução do estado único” que seja a de um estado não-judeu, um estado que trate israelenses e palestinos, assim como as minorias presentes, como iguais em direitos e em dignidade, a state for all its citizens, sem jamais considerar as possibilidades de paz que esse estado único traria8.

Ademais, essa premissa básica de apoio ao estado de Israel orienta a interpretação dos eventos noticiados do conflito, como viés de confirmação. De tudo o que historiadores e jornalistas disserem a esse respeito, o “sionista cristão” selecionará as fontes que apoiam Israel e, com isso, apoiam também os Estados Unidos da América. Não é uma doutrina politicamente neutra, mas serve a um projeto geopolítico. Por isso, não é incomum ver o “sionista cristão” evitar encarar os palestinos como pessoas irracionais, inimigos da paz que querem tomar a terra dos judeus, que recusam acordos de paz ou como pessoas tolas que ignoram a revelação divina.

A posição defendida neste texto é a de que o “sionismo cristão” é falso e sempre foi falso. O “sionismo cristão” não é antiga verdade que foi abandonada pelo advento do cristianismo; ele sempre foi incorreto, mesmo sob o Antigo Testamento. Havia, sim, promessas de terra e monarquia feitas a uma nação chamada “Israel”, mas essas promessas nunca deveriam ser entendidas como raciais (ligadas a uma linhagem de descendência biológica) e sempre tiveram um sentido oculto, sinalizado aqui e ali, ao qual retornaremos.

2. A Tragédia Espiritual

O Novo Testamento conta, de várias perspectivas, a história de uma tragédia espiritual sofrida pelo povo judeu, quando visitado pelo seu Messias, nosso Senhor. Essa tragédia é a rejeição sofrida por Jesus de Nazaré da parte da grande maioria desses judeus, particularmente aqueles influenciados por certa elite religiosa de Jerusalém. Somente um pequeno número de judeus, de no máximo poucas centenas, aderiu ao movimento de Jesus inicialmente. Eles não foram capazes de impedir que seu mestre fosse crucificado pelos romanos, sob instigação das autoridades religiosas judaicas. Essa tragédia inclui não somente a rejeição ao próprio Messias, mas também a rejeição às testemunhas de sua ressurreição, no que se seguiu.

Essa tragédia foi representada de várias maneiras, com simbolismos diferentes, pelos autores do Novo Testamento, cada um enfatizando um aspecto distinto. Ao lado de tal tragédia, há um milagre: enquanto a maioria dos judeus não abraçou o movimento iniciado por Jesus de Nazaré, pessoas de origem gentia, sem ligação histórica com o judaísmo ou com a religião israelita, aderiram à fé pregada pelos discípulos. Essa justaposição de tragédia e milagre está presente nos relatos dos escritos do Novo Testamento. Vejamos alguns casos.

2.1. A Parábola dos Lavradores Maus: O Reino Tirado

¹ Depois, entrou Jesus a falar-lhes por parábola: Um homem plantou uma vinha, cercou-a de uma sebe, construiu um lagar, edificou uma torre, arrendou-a a uns lavradores e ausentou-se do país. ² No tempo da colheita, enviou um servo aos lavradores para que recebesse deles dos frutos da vinha; ³ eles, porém, o agarraram, espancaram e o despacharam vazio. ⁴ De novo, lhes enviou outro servo, e eles o esbordoaram na cabeça e o insultaram. ⁵ Ainda outro lhes mandou, e a este mataram. Muitos outros lhes enviou, dos quais espancaram uns e mataram outros. ⁶ Restava-lhe ainda um, seu filho amado; a este lhes enviou, por fim, dizendo: Respeitarão a meu filho. ⁷ Mas os tais lavradores disseram entre si: Este é o herdeiro; ora, vamos, matemo-lo, e a herança será nossa. ⁸ E, agarrando-o, mataram-no e o atiraram para fora da vinha. ⁹ Que fará, pois, o dono da vinha? Virá, exterminará aqueles lavradores e passará a vinha a outros. ¹⁰ Ainda não lestes esta Escritura: A pedra que os construtores rejeitaram, essa veio a ser a principal pedra, angular; ¹¹ isto procede do Senhor, e é maravilhoso aos nossos olhos? ¹² E procuravam prendê-lo, mas temiam o povo; porque compreenderam que contra eles proferira esta parábola. Então, desistindo, retiraram-se.

São Marcos 12:1-12

Um primeiro exemplo de narrativa dessa tragédia é a Parábola dos Lavradores Maus, presente nos três evangelhos sinóticos (Mc 12:1–12 par.), na qual o Senhor reconta o Cântico da Vinha (Is 5), acrescentando três elementos importantes: (1) o envio continuado de mensageiros aos arrendatários; (2) o fim trágico do último enviado, o seu próprio filho; (3) o castigo dos arrendatários. Esses mensageiros não são desconhecidos da tradição vétero-testamentária: são os profetas enviados de geração em geração, com suas contínuas advertências contra a apostasia nacional9. A morte do filho do dono da vinha se norteia, nessa parábola, pela motivação de inveja/zelo10. Essa parábola retrata os líderes religiosos de Israel como pessoas que abandonaram sua missão e tentaram usar seus privilégios em benefício próprio; em razão disso, lhes sobrevém um castigo muito duro. Para que não houvesse dúvida, a versão mateana comenta: “Portanto, vos digo que o reino de Deus vos será tirado e será entregue a um povo [ethnē] que lhe produza os respectivos frutos.” (Mt 21:43)

Uma observação importante: essa parábola não emite condenação generalizada à nação de Israel, mas aos seus responsáveis, cujo “reino” seria dado a outro povo. A autoridade que tinham os responsáveis pela nação é transferida. Há uma ruptura. Dentro da narrativa da parábola, existe uma continuidade histórica que é preservada; mesmo com diversos crimes, cometidos contra os mensageiros, os líderes se mantiveram, sob a paciência do dono da vinha. Agora, no entanto, veio um castigo único, nunca antes ocorrido. Quando Pedro e os demais apóstolos recebem as chaves do reino dos céus11, eles podem ser vistos como esse povo que recebeu, sobre Israel, a autoridade perdida pelos líderes originais.

Outras parábolas, nos evangelhos sinóticos, tocam nessa mesma tragédia, como as duas versões da Parábola do Banquete (Mt 22:1-14; Lc 14:15-24). Nela, cada um dos primeiros convidados preferiu as coisas desta vida (bens, matrimônio) ao chamamento régio. A versão lucana é breve quanto ao destino dos que rejeitaram o chamado: “…nenhum daqueles homens que foram convidados provará a minha ceia.” (Lc 14:24). A versão mateana, por seu turno, parece ter sido influenciada pela mesma preocupação simbólica da Parábola dos Lavradores Maus: enquanto os primeiros são apenas ignorados, os servos que levam o segundo convite são maltratados e mortos pelos convidados (Mt 22:6). Com isso, sobrevém terrível castigo: “O rei ficou irado e, enviando as suas tropas, exterminou aqueles assassinos e lhes incendiou a cidade.” (Mt 22:7). Essa sentença divina é uma antecipação da versão mateana do “Pequeno Apocalipse” (Mt 24-25), que ajuda a entender a destruição de Jerusalém, nas guerras judaicas, não só como um fato previsto, mas como um castigo divino.

Podemos mencionar, ainda, a Parábola das Minas (Lc 19:11-27), que apresenta um acréscimo em relação à Parábola dos Talentos (Mt 25:14-30), um elemento temático exógeno: enquanto encarregou três homens de cuidar de certos recursos, saiu para conquistar um reino (governo), mas recebeu rejeição dos seus concidadãos (19:14). Esses que o rejeitaram reaparecem ao fim da parábola, recebendo a pena capital: “Quanto, porém, a esses meus inimigos, que não quiseram que eu reinasse sobre eles, trazei-os aqui e executai-os na minha presença.” (19:27). Aqui aparece uma rejeição mais explícita do reinado de Deus.

Várias outras parábolas de Cristo podem ser vistas como expressão, ao menos parcial, dessa mesma tragédia: a Parábola do Filho Pródigo (Lc 15:11-32), a Parábola do Semeador (Mc 4:3-20 par.); a Parábola da Figueira Estéril (Lc 13:6-9) ou a Parábola do Bom Samaritano (Lc 10:25-37). Nelas, se não há uma rejeição direta à pessoa de Jesus, há ao menos uma rejeição de sua compaixão (Filho Pródigo) e de sua pregação (Semeador), infrutuosidade (Figueira Estéril) e corrupção moral (Bom Samaritano). É importante dizer: esse tipo de crítica não é exclusiva do cristianismo das origens. No terreno das formas desviantes de judaísmo, a Comunidade de Qumran é um exemplo desse mesmo tipo de crítica às autoridades judaicas oficiais, especialmente hierosolimitas, assim como a noção de que um castigo divino lhes aguardava.

2.2. A Alegoria da Oliveira: Coração Endurecido e Ramos Cortados

Paulo trata da relação entre Israel e os planos divinos em vários lugares de suas cartas, mas é em Romanos, e em particular nos famosos capítulos 9-11, que esse assunto se torna mais crítico, até mesmo emotivo, e a explicação é mais detalhada. Paulo vê todos os privilégios históricos que tinham seus irmãos nacionais e lamenta, de maneira angustiada, sua condição atual de afastamento em relação ao Messias. Esse afastamento é descrito com um nome: endurecimento, tratado como um “punição” (Rm 11:9) pela incredulidade.

Mas Paulo, ainda em busca de consolação, tem a resposta desde o começo: “nem todos os que procedem de Israel são Israel” (9:6). Essa disjunção os sionistas cristãos não aceitam; eles querem que todos os que procedem de Israel (hoi ex Israel) já sejam Israel antes de sua conversão ao Messias. Mas não é assim para Paulo. Ele sabe que a descendência carnal não é o fato determinante, por isso elenca os casos que procedem imediatamente de Abraão (Isaque/Ismael, Jacó/Esaú), nos quais fica óbvio que a descendência carnal não é determinante. Essa rejeição dos privilégios da descendência carnal não se aplica apenas aos judeus, mas também aos gentios, em outro contexto, como um igualitarismo étnico desde baixo (cf. 1Co 1:26-29). É chocante ver pessoas argumentarem que todos os judeus são “filhos da promessa”, quando na realidade Paulo usa essa expressão precisamente para mostrar que nem todos são filhos da promessa, mas apenas uma fração.

Para entender esse endurecimento sofrido pela maioria, Paulo emprega, no capítulo 11, a imagem da oliveira, ecoando representações do Antigo Testamento e da história de Israel. Israel é uma oliveira e, pela incredulidade, alguns ramos foram arrancados, enquanto outros ramos, que não são originais daquela árvore, foram enxertados em seu lugar. Há aqui uma lógica de substituição, mas não é como no fantasma da “teologia da substituição”; não é uma substituição de Israel pela Igreja, e sim uma substituição de membros de Israel. Os membros de Israel não são mais os judeus incrédulos, mas judeus convertidos ao Evangelho e gentios convertidos ao Evangelho — todos igualmente e verdadeiramente judeus, como veremos. Gentios que entraram tomam lugar de judeus que saíram. Há, portanto, também aqui uma ruptura, assim como uma continuidade.

Portanto, ao menos tempo em que há uma inclusão dos gentios convertidos na videira de Israel, há uma exclusão dos judeus incrédulos12. Paulo tem, no entanto, uma palavra de esperança: no fim, como ensina a profecia, “todo o Israel será salvo“, de uma maneira ainda secreta, não sabida, mas por um meio que Paulo conhece e reconhece: serão enxertados quando crerem. Os judeus que estão debaixo da obediência serão, então, alvo de misericórdia. Afinal, Deus colocou a todos (judeus e gentios) sob a desobediência para usar de misericórdia para com todos.

Quanto ao capítulo 11 de Romanos, os sionistas cometem uma série de confusões, e não é possível listar todas, mas considero importante mencionar três delas, que são mais cruciais:

1. Ao verem que o texto trata da restauração de Israel, eles imaginam que essa restauração tenha a ver com o estado de Israel. Esse é um erro cronológico bastante grosseiro. Quando Paulo escreveu essas palavras, aliás, durante toda a vida do Senhor e dos apóstolos, não havia nenhum estado de Israel, e isso já há séculos13. Quando Paulo fala de Israel, não se refere a um estado, mas a um povo que vivia em vários lugares do mundo. A Terra Santa coincidia mais ou menos com a Judeia, província do Império Romano. Inclusive, o nome “Judeia” é o que Paulo emprega quando se refere àquela região do mundo14, nunca Israel. A tragédia de que Paulo trata não é a perda do estado (que havia acontecido há séculos) ou mesmo perda da terra (que não havia ainda acontecido), mas a perda do Messias. A restauração de Israel não é recuperação ou criação de um estado, nem um retorno à Terra Santa, mas retorno ao plano divino, isto é, conversão ao Messias (“se não permanecerem na incredulidade, serão enxertados“, Rm 11:23). Não há nada, nem nesses capítulos, nem em todo o Novo Testamento, acerca da restauração do estado de Israel15.

2. Ao verem que o texto diz que os ramos enxertados são sustentados pela raiz (Rm 11:18), eles imaginam que essa raiz inclua os judeus inconversos, mas isto é incorreto. Paulo não está dizendo que os ramos arrancados sustentam os ramos enxertados. O que sustenta os gentios convertidos não é o que foi arrancado, mas o que não foi, o que se manteve fiel. Quem se manteve fiel? Essa é a questão. Os apóstolos de Cristo, juntamente com o “pequeno rebanho” dos primeiros discípulos. Os cristãos gentios não são sustentados por uma nação inconversa, como se o carnal pudesse sustentar o espiritual, mas sim pela nação conversa. Ou seja, usando outra imagem, os gentios inseridos estão sustentados sobre o fundamento dos “apóstolos e profetas”.

3. Ao verem que Paulo nega que Deus tenha rejeitado o seu povo, deduzem que Deus continua tendo um povo separado, ou que haja promessas divinas para os incrédulos. O texto não pode ser arrancado do seu contexto: “Pergunto, pois: terá Deus, porventura, rejeitado o seu povo? De modo nenhum! Porque eu também sou israelita da descendência de Abraão, da tribo de Benjamim… Assim, pois, também agora, no tempo de hoje, sobrevive um remanescente segundo a eleição da graça.” (Rm 11:1,5). Então quando Paulo ensina que Deus não rejeitou o seu povo, o sentido é de que há um remanescente de pessoas de origem judaica, convertidas ao cristianismo, “segundo a eleição da graça”. Por isso, ele cita o exemplo dos que não dobraram os joelhos diante de Baal. Uma rejeição significaria que nenhum judeu teria se convertido, e o plano divino estaria frustrado, o que é falso, pois, como ele escreve, “eu também sou israelita”. O pequeno número de convertidos é representante suficiente de Israel.

Romanos 11 não ensina que as promessas do Antigo Testamento dizem respeito aos israelitas inconversos, ou ao estado moderno de Israel, nem ensina que Deus tenha “dois povos” ou que os israelenses modernos tenham mais direito à Terra Santa do que os palestinos ou qualquer outro povo autóctone. O que o texto ensina é que o endurecimento que foi dado aos israelitas será retirado em um momento, então eles se converterão a Cristo e serão reenxertados no povo de Deus.

2.3. Olhos Velados: A Ignorância de Israel

Outra imagem empregada nas cartas paulinas é a de um véu, uma barreira entre os olhos e a realidade, uma ocultação da glória. Ela aparece em 2Coríntios 3, um dos capítulos de maior contraste entre a Antiga Aliança e a Nova. É feita a “leitura da antiga aliança” (3:14), “quando é lido Moisés” (3:15) nas sinagogas, mas há um véu impedindo que seja visto o Messias Jesus, véu que é removido na conversão (3:16). Há, portanto, um grau de ignorância na rejeição ao Messias. Não se trata exatamente de uma verdade vista e rejeitada, mas não vista: “os sentidos deles se embotaram” (3:14). Assim, há uma camada de significado, por trás das Escrituras Sagradas, cujo acesso está vedado àqueles que fazem certo tipo de leitura judaica.

Nesse contexto, a Antiga Aliança é retratada através de várias imagens de transitoriedade e materialidade, às vezes até negativas: tinta, tábuas de pedra, letra, morte, ministério da morte, glória desvanecente, ministério da condenação, e finalmente o véu. A Nova Aliança, por outro lado, é ligada a imagens de grande contraste em relação às primeiras: o Espírito Santo, corações, ministério do Espírito, ministério da justiça, sobre-excelente glória. Esse contraste entre o impermanente e o eterno, entre o corporal e o espiritual, é o que levou, depois, alguns dos Pais da Igreja a chamarem a leitura meramente literal da Escritura Sagrada de “corporal” ou “carnal”, e a leitura mais propriamente cristã ou alegórica de “espiritual”. Outro texto em que aparece esse mesmo contraste hermenêutico é Gálatas 4:19-31.

Algo semelhante acontece, em vários trechos do Novo Testamento, em particular textos lucanos ou pós-lucanos, em que aparece essa mesma imagem de que os que condenaram a Cristo não sabiam o que faziam ([Lc 23:34]; At 3:17; 13:27; cf. 1Co 2:8). Essa imagem contrasta com as dos outros textos em que a condição de alguns judeus é descrita como de negligência ao chamado divino ou mesmo rejeição. Esses dois retratos podem ser sintetizados numa imagem: a de uma liderança que detém as chaves do conhecimento, mas o rejeita, e mantém seus liderados sob a ignorância. No entanto, não é possível manter essa imagem uniforme no Novo Testamento, já que os próprios líderes participam de alguma ignorância, conforme os textos referenciados.

Essa imagem de ignorância não impede que as epístolas paulinas empreguem palavras pesadas para descrever a condição dos “rebeldes da Judeia”:

¹⁴ Tanto é assim, irmãos, que vos tornastes imitadores das igrejas de Deus existentes na Judeia em Cristo Jesus; porque também padecestes, da parte dos vossos patrícios, as mesmas coisas que eles, por sua vez, sofreram dos judeus, ¹⁵ os quais não somente mataram o Senhor Jesus e os profetas, como também nos perseguiram, e não agradam a Deus, e são adversários de todos os homens, ¹⁶ a ponto de nos impedirem de falar aos gentios para que estes sejam salvos, a fim de irem enchendo sempre a medida de seus pecados. A ira, porém, sobreveio contra eles, definitivamente.

1 Tessalonicenses 2:14-16

É importante dizer: esses escritos foram elaborados num ambiente histórico ainda relativamente próximo da morte de Cristo, poucas décadas depois. É um erro muito grave imputar essas condenações e culpas, individualmente, a todo judeu que viva hoje, séculos depois, e em particular a judeus que não tenham desprezo aos cristãos16. Mas certamente esse texto mostra como o sentimento de Paulo17, nesse assunto, poderia ser diferente do dos “sionistas cristãos”.

3. Identidade Redefinida

Essa tragédia espiritual não significou um fim de Israel, mas uma redefinição do seu significado18. Essa redefinição já estava implícita no que os profetas antigos haviam ensinado sobre a circuncisão do coração19, sobre a igualdade dos povos20, sobre a possibilidade da entrada de gentios na nação de Israel como Raabe e Rute (ambas da genealogia do Senhor no Evangelho de São Mateus), como os gibeonitas e quenitas , sobre as exigências da obediência e a condicionalidade das alianças. Os profetas do Israel, um após o outro, relembravam de que o povo não tinha privilégios espirituais inalienáveis tanto que a principal tragédia do Antigo Testamento constitui precisamente na perda da terra, no Cativeiro Babilônico.

Portanto, essa redefinição já estava em curso, mas se tornou mais urgente no momento em que os israelitas, em considerável maioria, rejeitaram o Evangelho. Para entender como Paulo e o Novo Testamento tratam dessa questão, é preciso lhes perguntar: Quem é judeu? Quem é filho de Abraão? O que é a circuncisão? Quem é Israel? Qual é a promessa? As respostas que o Novo Testamento dá a essa pergunta não são óbvias, e não satisfarão àqueles que estiverem apegados à “leitura carnal” do Antigo Testamento.

3.1. Quem é judeu? O que é a circuncisão?

Judeu é judeu e circuncisão é circuncisão, assim pensa o sionista cristão. O apóstolo Paulo, no entanto, não usa essas palavras de maneira rasteira. Ele traz um novo sentido, um novo conteúdo:

²⁵ Porque a circuncisão tem valor se praticares a lei; se és, porém, transgressor da lei, a tua circuncisão já se tornou incircuncisão. ²⁶ Se, pois, a incircuncisão observa os preceitos da lei, não será ela, porventura, considerada como circuncisão? ²⁷ E, se aquele que é incircunciso por natureza cumpre a lei, certamente, ele te julgará a ti, que, não obstante a letra e a circuncisão, és transgressor da lei. ²⁸ Porque não é judeu quem o é apenas exteriormente, nem é circuncisão a que é somente na carne. ²⁹ Porém judeu é aquele que o é interiormente, e circuncisão, a que é do coração, no espírito, não segundo a letra, e cujo louvor não procede dos homens, mas de Deus.

Romanos 2:25-29

Aí, Paulo emprega as mesmas antíteses entre o exterior e o interior, entre a carne e o coração, entre a letra e o espírito, presentes em 2Co 3 e Gl 4. Para Paulo, a mera posse da circuncisão nada garante. Para ele, aquele que obedece a lei é considerado judeu, sua circuncisão é interior. Outro texto em que está presente a mesma lógica, de modo mais simples e particularmente polêmico, é este:

² Guardai-vos dos cães, guardai-vos dos maus obreiros, guardai-vos da circuncisão! ³ Porque a circuncisão somos nós, que servimos a Deus no espírito, e nos gloriamos em Jesus Cristo, e não confiamos na carne.

Filipenses 3:2-3

Para Paulo, a circuncisão somos nós, isto é, os cristãos, ou, se quisermos restringir mais o texto, os apóstolos do Messias. Nos versículos seguintes, ele lista suas prerrogativas judaicas e escreve sobre como elas nada mais significam para ele. Em Cl 2:11-12, a circuncisão que de fato vale é a circuncisão do coração, não feita por mãos humanas, recebida no Batismo. Seguindo a lógica paulina, se há promessas divinas para os judeus, essas promessas não se aplicam para os judeus desobedientes (eles são considerados incircuncisos), mas somente para os obedientes (eles, mesmo sendo gentios, são considerados circuncisos). O “sionista cristão” não deseja, de maneira nenhuma, que isso aconteça; deseja empregar uma definição não-paulina de judeu e de circuncisão21.

3.2. Quem é filho de Abraão?

Quando João Batista iniciou sua pregação, segundo os evangelhos, ele teve de lidar com a oposição de mestres da lei que faziam uma alegação: somos filhos de Abraão. Essa alegação está presente também nos embates entre Cristo e os mestres da lei. João havia lhes respondido: “Produzi, pois, frutos dignos de arrependimento; e não comeceis a dizer entre vós mesmos: Temos por pai a Abraão; porque eu vos afirmo que destas pedras Deus pode suscitar filhos a Abraão.” (Mt 3:8-9). Em outras palavras: se afirmarem como filhos de Abraão, sem frutos dignos, não significava nada. A mera descendência natural não significava nada sem a conversão. A mensagem é muito semelhante à de Paulo, nesse aspecto22.

Está implícita aí uma nova forma de ver a relação entre pai e filho, não como um dado genealógico petrificado, mas como uma identidade a ser apropriada pelas ações: “Se sois filhos de Abraão, praticai as obras de Abraão.” (Jo 8:39). O filho é filho de fato quando pratica as obras do seu pai. O mesmo se dá no relacionamento com o Pai Supremo, já que nós nos tornamos seus filhos o imitando (Mt 5:45). Essa relativização da paternidade natural23 é parte do mesmo processo em que Paulo estabelece quem são, de fato, os filhos de Abraão:

“¹⁶ Essa é a razão por que provém da fé, para que seja segundo a graça, a fim de que seja firme a promessa para toda a descendência, não somente ao que está no regime da lei, mas também ao que é da fé que teve Abraão (porque Abraão é pai de todos nós, ¹⁷ como está escrito: Por pai de muitas nações te constituí.), perante aquele no qual creu, o Deus que vivifica os mortos e chama à existência as coisas que não existem.”

Romanos 4:16-17

Para Paulo, as promessas divinas feitas a Abraão não se aplicam somente aos que procedem da lei (ek tou nomou), mas também aos que procedem da fé (ek pisteōs). A melhor maneira de entender esses dois grupos é como dois momentos históricos do povo de Deus: os que são da lei são aqueles que viveram antes de Cristo, e os são da fé são os que agora estão em Cristo24. O advento da fé (“tendo vindo a fé“, Gl 3:25) põe fim à época da lei, saímos de debaixo do aio que nos mantinha em condição análoga à do escravo. Ao menos esse é o sentido em Gl 3–4, texto em que Paulo faz declarações semelhantes:

⁷ Sabei, pois, que os da fé é que são filhos de Abraão. ²⁹ E, se sois de Cristo, também sois descendentes de Abraão e herdeiros segundo a promessa.

Gálatas 3:7,29

De uma maneira e de outra, Paulo nos garante que os que têm a fé em Jesus Cristo são, de fato, descendentes de Abraão, e as promessas divinas dizem respeito a eles, portanto. Os “sionistas cristãos”, naturalmente, não ficarão satisfeitos com essa redefinição da filiação abraâmica. Mas Deus não se sujeita às nossas definições. Até das pedras ele pode dar filhos a Abraão. É a partir dessa redefinição que Paulo pode dizer, por exemplo, que que os habitantes da Jerusalém terrena eram descendentes de Agar, enquanto os cidadãos da Jerusalém do alto eram descendentes de Sara (Gl 4). O herdeiro das promessas divinas é Cristo, e nós somos herdeiros dessas promessas porque somos de Cristo, porque estamos em Cristo.

Nascimento e ascendência são os meios por excelência de transferência de privilégios, portanto fundamentais na manutenção de qualquer aristocracia. Ao redefinir a filiação, Deus elimina os privilégios. Deus escolheu os que não são para confundir os que são.

3.3. Quem é Israel?

Como já notamos, Paulo redefine Israel: “nem todos os que procedem de Israel são Israel.” (Rm 9:6). Essa redefinição reaparece em vários trechos do Novo Testamento. Um texto em que isso acontece e que elimina qualquer possibilidade de dúvida é este trecho de Efésios:

“¹¹ Portanto, lembrai-vos de que, outrora, vós, gentios na carne, chamados incircuncisão por aqueles que se intitulam circuncisos, na carne, por mãos humanas, ¹² naquele tempo, estáveis sem Cristo, separados da comunidade [politeia] de Israel e estranhos às alianças da promessa, não tendo esperança e sem Deus no mundo. ¹³ Mas, agora, em Cristo Jesus, vós, que antes estáveis longe, fostes aproximados pelo sangue de Cristo. ¹⁴ Porque ele é a nossa paz, o qual de ambos fez um; e, tendo derribado a parede da separação que estava no meio, a inimizade, ¹⁵ aboliu, na sua carne, a lei dos mandamentos na forma de ordenanças, para que dos dois criasse, em si mesmo, um novo homem, fazendo a paz, ¹⁶ e reconciliasse ambos em um só corpo com Deus, por intermédio da cruz, destruindo por ela a inimizade. ¹⁷ E, vindo, evangelizou paz a vós outros que estáveis longe e paz também aos que estavam perto; ¹⁸ porque, por ele, ambos temos acesso ao Pai em um Espírito. ¹⁹ Assim, já não sois estrangeiros e peregrinos, mas concidadãos dos santos, e sois da família de Deus,”

Efésios 2:11-19

A condição prévia dos efésios: gentios, incircuncisos, sem o Messias, separados de Israel, estranhos às alianças, sem esperança, sem Deus, estrangeiros e peregrinos. Sua condição atual: aproximados, feitos um só com Israel, sem separação em relação a Israel, uma nova humanidade, um só corpo, concidadãos, família. Qualquer possibilidade de considerar que os judeus constituem um povo à parte, herdeiro de promessas particulares, é totalmente eliminada por essa linguagem. Os gentios cristãos não são estrangeiros em relação ao povo de Israel. Eles estavam em outra comunidade política (politeia), mas não estão mais. Preservar qualquer noção de que Deus tenha “dois povos”, como fazem vários “sionistas cristãos”, é um ataque ao plano divino de unidade. Essa unidade e co-herança era um segredo, oculto à humanidade, mas revelado agora, por meio do evangelho (Ef 3:5-6). Interpretar as promessas do Antigo Testamento sem levar isso em conta é pensar como quem ainda não conhece esse segredo. Os próprios profetas que escreveram o Antigo Testamento não sabiam desse segredo, pois estava oculto. Os gentios e os judeus não são duas comunidades distintas, com promessas distintas, mas herdam juntamente, como parte da mesma politeia.

Essa identidade reformulada parte de uma hermenêutica distintamente platônica, empregada pelo apóstolo Paulo. Não houve um “sionismo cristão” antes da Reforma Protestante25 porque tal doutrina só poderia surgir no momento em que a hermenêutica apostólica26 fosse abandonada em favor de uma leitura mais “simplista” ou “literalista” (não realmente literal), que caracterizou diversos movimentos dentro do protestantismo.

3.4. Qual é a promessa?

Os “sionistas cristãos” gostam de defender a ideia de que Deus teria prometido a Abraão um território específico, e que caberia aos seus descendentes esse território. Já vimos que, dentro da doutrina apostólica, os descendentes de Abraão não são quem esses sionistas imaginam. Agora é importante mostrar algo mais: que também a promessa que esses descendentes herdam também não é conforme o sionismo. O que Paulo escreve sobre a promessa feita a Abraão é:

¹³ Não foi por intermédio da lei que a Abraão ou a sua descendência coube a promessa de ser herdeiro do mundo, e sim mediante a justiça da fé.

Romanos 4:13

Em vão os “sionistas cristãos” citarão textos do Antigo Testamento que delimitem a promessa feita a Abraão. A promessa divina, explica a o apóstolo, de posse do segredo divino, é a de que Abraão seria herdeiro do mundo, não só da terra de Israel. Talvez Paulo visse algo disso implícito nas declarações de que Abraão seria “pai de muitas nações” (isto é, pai de muitos gentios), ou de que nele seriam “benditas toda as famílias da terra“, ou a vários outros textos. Independentemente de onde isso aparecesse, em sua leitura do Antigo Testamento, o fato é que a promessa divina feita a Abraão, nos informa o apóstolo, diz respeito ao mundo inteiro, não só à terra de Canaã. Talvez por isso, o apóstolo nunca mencione qualquer promessa de terra especificamente.

Essa ampliação da promessa aparece na maneira como o Novo Testamento interpreta certas referências à terra de Israel, no Antigo Testamento. Vários mandamentos do Pentateuco trazem a promessa divina de longevidade na habitação da terra de Israel, e o caso mais famoso é o do mandamento da honra aos pais (quarto mandamento ou quinto, dependendo de quem faça a contagem). Assim, por exemplo:

¹ Filhos, obedecei a vossos pais no Senhor, pois isto é justo. ² Honra a teu pai e a tua mãe
(que é o primeiro mandamento com promessa), ³ para que te vá bem, e sejas de longa vida sobre a terra.

Efésios 6:1-3

A Escritura fala aí a gentios, os mesmos gentios de que tratamos a propósito de Efésios 2. Esses gentios recebem, ao obedecerem o mandamento, a promessa de que teriam “longa vida sobre a terra”. Em seu contexto original (Êx 20; Dt 5), essa “terra” era a terra de Israel. Eles viveriam longamente nela se obedecessem aos mandamentos divinos. Mas agora essa promessa é aplicada a gentios que vivem em outro país, que não tinham qualquer plano de se mudar. Nessa interpretação, a “terra” da promessa da lei não é mais apenas a “terra de Israel”.

No Antigo Testamento, Deus já havia dito ao povo de Israel que eles não tinham nenhum título permanente em relação à terra: “Também a terra não se venderá em perpetuidade, porque a terra é minha; pois vós sois para mim estrangeiros e peregrinos” (Lv 25:23). Numa oração posterior, lemos coisa semelhante: “somos estranhos diante de ti e peregrinos como todos os nossos pais” (1Cr 29:15). Isso afasta qualquer noção de um direito inalienável, que na verdade só pertence a Deus. Por essa razão, os antigos habitantes de Judá foram expulsos de sua própria terra, no trauma do Cativeiro Babilônico. Essa relativização do direito à terra faziam com que os estrangeiros também tivessem direito a ela: na profecia de Ez 47:21-23, os estrangeiros residentes na Terra Santa seriam iguais aos naturais e teriam igual direito. Há aqui obediência ao antigo princípio de isonomia entre o natural e o estrangeiro27, que elimina o privilégio racial, ao menos de uma perspectiva legal-formal. Os estrangeiros não eram só pessoas que podiam viver ali enquanto a terra fosse dos israelitas (“they can stay, but the land is ours“); não, eles eram iguais aos naturais e tinham, sim, direito à terra.28 O antigo mandamento do Jubileu, que aparece na declaração de missão do Jesus lucano (Lc 4:16-19), garantiria que, mesmo que os estrangeiros vendessem suas terras, elas não seriam vendidas em perpetuidade, e por isso teriam de retornar (Lv 25:10). Os israelitas não deveriam se tornar donos de toda a terra, segundo o que exigia o próprio Antigo Testamento. Com todos os problemas que isso envolve, há um importante freio ao desejo de dominar e conquistar.

Aproveitando-se dessa imagem dos antigos como “estrangeiros e peregrinos“, isto é, pessoas que não haviam chegado ainda ao seu destino final, mas que estavam ali apenas de passagem, e inclusive seguindo um velho costume midráxico judaico de interpretação, a Carta aos Hebreus reconta a história dos antigos patriarcas, santos e herois da história de Israel como sendo a mesma história dos cristãos, a caminho da mesma cidade: “Abraão… com Isque e Jacó… aguardava a cidade que tem fundamentos… aspiram a uma pátria superior, isto é, celestial. Por isso, Deus não se envergonha deles, de ser chamado o seu Deus, porquanto lhes preparou uma cidade.” (Hb 11:8-10,17), “Moisés… considerou o opróbrio de Cristo por maiores riquezas do que os tesouros do Egito” (11:23,26). Na leitura alegórica que faz a carta, os antigos não receberam a concretização da promessa em sua própria época, mas hoje estão na Jerusalém Celestial.

Essa preferência apocalíptica pela Jerusalém Celestial em relação à Jerusalém terrena corrupta (assim como a preferência pelo Templo Celestial em relação ao Templo terreno corrompido) é uma herança apocalíptica judaica, presente também em São Paulo (“…Jerusalém atual, que está em escravidão com seus filhos“, Gl 4:25) e também no Apocalipse de São João (“…da grande cidade que, espiritualmente, se chama Sodoma e Egito, onde também o seu Senhor foi crucificado.”, Ap 11:18). Tanto Paulo, Hebreus e o Apocalipse estão no mesmo terreno simbólico, ainda que em ambientes distintos, e esse terreno era compartilhado pelo judaísmo apocalíptico da época.

4. Isaque, Ismael e ascendência

Um assunto que frequentemente vem à tona, na discussão do “sionismo cristão”, é a interpretação dos conflitos entre israelenses e palestinos como sendo um elemento da disputa entre Isaque (o filho “legítimo”) e Ismael (o filho “ilegítimo”). No pensamento de muitos “sionistas cristãos”, os descendentes de Isaque seriam os judeus e esses seriam os herdeiros da promessa feita a Abraão; os descendentes de Ismael teriam algumas promessas divinas inferiores, mas não herdariam juntamente com Isaque. Esse tipo de bobagem, repetida a torto e a direito por grupos evangélicos sionistas, só serve para dar aos conflitos na Terra Santa uma interpretação errada e legitimarem certas formas de supremacia, violência e exclusão, que inclusive inferioriza os cristãos palestinos.

É preciso dizer, de maneira muito direta: posto que Isaque e Ismael sejam figuras históricas, não existe nenhuma maneira de verificar quem é, hoje, descendente desses personagens. Não há nenhuma genealogia inteiramente bem documentada que nos leve de um judeu ou palestino de hoje até uma dessas figuras. Se é assim com indivíduos, muito pior com nações inteiras. O que podemos fazer são estudos e testes genéticos que comprovem que certas populações de hoje têm antepassados em comum, cujos nomes nos são desconhecidos, e que certas pessoas do passado, cujos ossos estejam preservados, são seus parentes em algum nível.

O que esses testes comprovam? Que muitos judeus atuais têm antepassados em comum com muitos palestinos e árabes atuais29. Considerando como os casamentos mistos e conversões aconteceram ao longo dos séculos, presumindo que os habitantes da Judeia na época de Jesus eram descendentes de Isaque, provavelmente os atuais palestinos são descendentes de Isaque também, grande parte dos quais se converteu ao cristianismo e islamismo. O judaísmo atual privilegia a ascendência matrilinear, mas a promessa feita a Isaque nada diz a esse respeito.

Os brasileiros que têm alguma ascendência portuguesa são também descendentes de árabes, em razão dos casamentos mistos ocorridos durante a idade média na península ibérica. Isso se refere à maioria dos brasileiros, inclusive os afro-brasileiros, que, na sua maioria, também têm ascendentes portugueses (e árabes por ainda outras vias, propriamente africanas). Isso sem contar o grande número de brasileiros (especialmente nordestinos) que, além de descenderem de árabes, descende de judeus sefarditas.

Então, supondo que os árabes sejam descendentes de Ismael — o que não pode ser provado de maneira nenhuma, já que historicamente Ismael só é associado a algumas tribos árabes (no sentido genético, e não somente cultural, da palavra “árabe”) —, isso significaria que nós brasileiros somos, na maioria, descendentes de Ismael também. Tão certamente descendentes quanto qualquer árabe supostamente seria30.

Os próprios israelenses também têm, em alguma medida, contribuição genética “árabe” (no sentido mais amplo), e seriam também, eles mesmos, descendentes de Ismael. Do mesmo modo, ao longo dos séculos os judeus sefarditas e mizraítas da Diáspora — supondo, desta vez, que sejam descendentes de Isaque — deixaram descendência muçulmana, e, portanto, também descendentes de Isaque entre os árabes, aos milhões. Conforme o tempo passa e as linhas genealógicas se entrelaçam cada vez mais, mais israelenses têm ascendência árabe em alguma linha dos seus antepassados.

Esse é um dos motivos por que é completa ignorância atribuir aos conflitos atuais alguma relação com Isaque e Ismael, ou atribuir às pessoas direitos com base em ascendência de quatro mil anos atrás. O mais provável é que todos nós somos descendentes de todas as pessoas que viveram há quatro mil anos, desde que tenham deixado descendentes que se perpetuaram.

De fato, o atual estado de Israel considera como judeus, para efeito da legislação do direito de “retorno”, isto é, migração para Israel, tanto os convertidos ao judaísmo quanto os descendentes próximos de convertidos31. Por outro lado, esse mesmo estado não considera como judeus, para efeitos do mesmo direito, pessoas que comprovem, com testes genéticos, descenderem das populações originais (judias ou não judias) habitantes da Terra Santa.

O direito é para os judeus “recentes”, quaisquer que sejam suas origens genealógica, não para os descendentes dos judeus antigos. Só pode ser assim, é claro; pois, se a ancestralidade real pudesse ser levada em conta, os palestinos seriam tão “judeus” quanto qualquer outra pessoa. Ou seja: o que está em jogo ali não é, de maneira nenhuma, os supostos “judeus originais” terem direito a voltar à sua terra. Isso é ficção propagada pelos “sionistas cristãos”, uma ficção muito conveniente, é claro, mas que o próprio estado de Israel não leva a sério. Pertencer genealogicamente a uma população de milênios atrás não confere nenhum direito de cidadania ou terra em lugar nenhum32.

5. Aliança e Profecia

Os “sionistas cristãos”, com muita frequência, apelam para os textos bíblicos do Antigo Testamento considerados proféticos, nos quais haveria certas promessas inalienáveis para o povo de Israel. Deus seria mentiroso, pensam eles, se essas profecias não se cumprirem literalmente, com a prosperidade do povo de Israel na terra de Israel.

Essa lógica está errada em vários níveis, e não é realmente uma leitura literal da Bíblia. O apelo à literalidade não nos diz nada sobre o modo como os “sionistas cristãos” interpretam a Bíblia — quando comparamos as profecias bíblicas ao estado moderno de Israel, os “sionistas cristãos” sempre tem que admitir, com vergonha, que as coisas não se cumpriram “literalmente”, que “nem tudo é perfeito” (sic) —, mas tem a ver com a maneira como eles legitimam sua própria interpretação como sendo mais fiel. Esse apelo à literalidade representa, na verdade, infidelidade à hermenêutica apostólica, infidelidade à maneira como os apóstolos interpretam as profecias na Bíblia, mas esses sionistas não são tão literais como imaginam. Eles tomam uma profecia que diz respeito ao reino dos mártires cristãos (“vi as almas daqueles que foram degolados pelo testemunho de Jesus e pela palavra de Deus“, Ap 20:4) e a aplicam para um futuro “reino milenar” sionista, preenchendo esse reino de profecias que não tem qualquer relação com esse texto do Apocalipse, e consideram que essa interpretação é literal, o que é um absurdo. Em alguns casos, eles podem simplesmente ignorar a literalidade da profecia (cf. 5.3. infra).

5.1. A condicionalidade da Antiga Aliança

Qualquer pessoa que se dê ao trabalho de estudar as promessas do Antigo Testamento notará, em vários momentos, que elas são condicionais, e nem sempre essa condicionalidade é explícita. Em várias situações, não há nenhuma condição textualmente afirmada e, ainda assim, o desenrolar dos acontecimentos mostra que não se tratava de uma promessa absoluta.

Jonas profetizou destruição, nada disse sobre arrependimento; mas, arrependido o povo, foi perdoado por Deus. O próprio Jonas, que não mencionou essa condição, sabia que Deus perdoaria o povo, não porque Deus tivesse dito que perdoaria, mas com base no credo básico de Israel: “…Por isso, me adiantei, fugindo para Társis, pois sabia que és Deus clemente, e misericordioso, e tardio em irar-se, e grande em benignidade, e que te arrependes do mal.” (Jn 4:2). Como Deus é misericordioso, ele perdoa os arrependidos; não é necessário que ele diga, toda vez, que o castigo é condicional. A condição está implícita no fato de que a promessa de castigo não está acima da própria bondade divina. Jonas tinha problemas morais, mas era um teólogo bom o suficiente para saber que deveria interpretar a mensagem divina à luz da essência divina.

Os profetas Jeremias e Ezequiel ensinam a mesma coisa: pessoas ou povos que receberam promessas divinas (de bênçãos ou castigos), caso mudem (da justiça para a impiedade ou o inverso), a promessa não lhes dirá mais respeito33. Tanto faz se Deus disse na profecia que se tratava de uma promessa eterna, portanto inquebrável. Promessas perpétuas podem, sim, ser anuladas. Por exemplo:

“Portanto, diz o Senhor Deus de Israel: Na verdade tinha falado eu que a tua casa e a casa de teu pai andariam diante de mim perpetuamente; porém agora diz o Senhor: longe de mim tal coisa, porque aos que me honram honrarei, porém os que me desprezam serão desprezados.”

1 Samuel 2:30

Eu tinha falado… porém agora… longe de mim tal coisa! Deus não se compromete com ímpios, senão no compromisso de lhes tirar a impiedade. Deus fez uma promessa para toda aquela linhagem sacerdotal, perpetuamente. Mas quando a impiedade e a desonra dessa linhagem ultrapassaram o insuportável, a promessa perpétua foi anulada.

O mesmo se dá com a linhagem davídica passando por Jeconias. Deus havia prometido linhagem perpétua aos sucessores de Davi, e inclusive havia dito que, mesmo que eles fossem maus, não anularia sua promessa34. No entanto, a impiedade dessa linhagem atingiu o insuportável, e, assim, a promessa lhes foi de todo anulada: “Assim diz o Senhor: Registrai este como se não tivera filhos; homem que não prosperará nos seus dias, e nenhum dos seus filhos prosperará, para se assentar no trono de Davi e ainda reinar em Judá.” (Jr 22:30)

O Deus das Escrituras Hebraicas é incompatível com o biblicismo de quem acredita em promessas que lhe obriguem a abençoar ímpios. É comum ver os “sionistas cristãos” defenderem que, diferentemente de outras alianças, aquela feita com Abraão é incondicional, tudo isso para dizer que os seus herdeiros jamais poderiam perder o direito à terra em razão de desobediência. McDermott é um exemplo desse tipo de argumentação. No entanto, é falso que a aliança com Abraão seja incondicional, e é tão fácil prová-lo que surpreende que alguém argumente em contrário. Há várias condições na aliança de Deus com Abraão. O exemplo mais importante é a circuncisão:

⁹ Disse mais Deus a Abraão: Guardarás a minha aliança, tu e a tua descendência no decurso das suas gerações. ¹⁰ Esta é a minha aliança, que guardareis entre mim e vós e a tua descendência: todo macho entre vós será circuncidado. ¹¹ Circuncidareis a carne do vosso prepúcio; será isso por sinal de aliança entre mim e vós. ¹² O que tem oito dias será circuncidado entre vós, todo macho nas vossas gerações, tanto o escravo nascido em casa como o comprado a qualquer estrangeiro, que não for da tua estirpe. ¹³ Com efeito, será circuncidado o nascido em tua casa e o comprado por teu dinheiro; a minha aliança estará na vossa carne e será aliança perpétua. ¹⁴ O incircunciso, que não for circuncidado na carne do prepúcio, essa vida será eliminada do seu povo; quebrou a minha aliança.

Gênesis 17:9-14

Então não, a aliança com Abraão não era incondicional. O descendente de Abraão que não fosse circuncidado deixaria de ser parte do seu povo. O advento posterior da lei mosaica estabelece diversas outras condições para que um israelita continuasse sendo parte do povo de Israel. Como vimos acima (3.2), havendo desobediência, a circuncisão se torna como incircuncisão.

Os antigos israelitas gostariam de pensar que estavam protegidos por uma promessa incondicional, mas o ministério dos profetas era precisamente o de lhes mostrar que não estavam. Os falsos profetas lhes adulavam com promessas de bênçãos, mas, na linguagem de Jeremias, Deus “se arrependeu” do bem que lhes disse que faria. Esses profetas “sionistas cristãos” parecem os profetas da corte do Antigo Testamento, como Zedequias, que adulavam os reis de Israel e de Judá com promessas de bênçãos e proteção divina para um povo inconverso. Epimênides, poeta pagão, é chamado de profeta em Tito 1:12-13a: “Foi mesmo, dentre eles, um seu profeta, que disse: Cretenses, sempre mentirosos, feras terríveis, ventres preguiçosos. Tal testemunho é exato.” Que característica de profeta tinha Epimênides? A capacidade de criticar o seu próprio povo por suas impiedades. Os aduladores da nação não servem.

Isso significa que as promessas divinas que diziam respeito ao povo de Israel deixaram de existir, perderam sua aplicação? Não, não é exatamente isso. Todas as promessas divinas podem ter uma leitura mais imatura ou carnal e outra leitura espiritual, mais elevada ou profunda. Quando falamos das ruas de ouro ou das portas de pérola da Jerusalém Celestial, os mais sensuais se apegam ao que é mais visível; os perfeitos, no entanto, nos relevam o sentido mais profundo. Por isso, quanto às profecias de Israel no Antigo Testamento, podemos dizer duas coisas, cada uma delas verdadeira do seu modo.

Quanto ao seu sentido histórico-literal, essas profecias não se cumprirão, porque, sendo as promessas condicionais, as condições exigidas por Deus não foram cumpridas. Não há ninguém para receber a promessa. “E, no momento em que eu falar acerca de uma nação ou de um reino, para o edificar e plantar, se ele fizer o que é mau perante mim e não der ouvidos à minha voz, então, me arrependerei do bem que houvera dito lhe faria.” (Jr 18:9-10).

Mas quanto ao seu sentido alegórico-espiritual, no entanto, as profecias terão cumprimento pleno, glorioso, muito mais elevado que o que os primeiros herdeiros poderiam imaginar. Nenhuma delas sequer cairá por terra, mas todas terão em Cristo, e só nele, o seu “sim” e “amém”. As coisas velhas já passaram. Nesse sentido, a leitura alegórico-espiritual das profecias é a ressurreição daquilo que morreu, quanto ao seu sentido histórico-literal. A Nova Aliança é ressurreição, em “corpo glorificado”, da Antiga Aliança. Uma prova disso é a maneira como os apóstolos interpretam, no Novo Testamento, as profecias contidas no Antigo.

5.2. A hermenêutica apostólica contra a hermenêutica sionista

Uma característica da tradição cristã é a imitação do modo de vida apostólico. Muito os apóstolos ensinaram por escrito, muito mais ensinaram de viva voz, mas provavelmente nada disso teria sentido, para as pessoas daquela época que os acompanharam, não fosse pelo mar de ensino que se deu através da vida dos próprios apóstolos. Seu procedimento na rua e na igreja, de joelhos e de pé, na compaixão e na oração, ensinou o real significado de amor e humildade, de fé e de zelo, para aqueles que tiveram o privilégio de conhecê-los, ajudando-os a aplicar concretamente os ensinamentos verbais. Os próprios apóstolos tinham consciência da importância disso, por isso instavam as comunidades a ativamente os imitarem, e os louvavam quando isso acontecia bem, como percebemos ao longo das cartas paulinas. Quem pensaria que, muitos séculos depois, alguém acabaria por dizer que os cristãos não devem imitar a maneira como os apóstolos interpretavam as Escrituras Sagradas? Afinal, as palavras do apóstolo foram: “Tudo o que aprendestes, recebestes, ouvistes e vistes em mim, isso praticai” (Fp 4:9). Imitar o modelo apostólico é também imitar a maneira apostólica de interpretar as profecias.

Quando o assunto é a divindade de Cristo, vários textos bíblicos têm interpretações disputadas, inclinadas à afirmação de divindade inferior (à maneira ariana) ou à consubstancialidade com o Pai (à maneira ortodoxa). Mas um fato insofismável é que os escritores do Novo Testamento aplicam para Jesus Cristo profecias e textos do Antigo Testamento que, em seu contexto original, referiam-se ao Deus Altíssimo. Assim, em João 12:37-41, por exemplo, o texto sagrado aplica para Cristo a visão de Javé no trono celestial em Isaías 6:9-10. O mesmo fenômeno aparece nas cartas paulinas; o texto de Is 45:23 aparece em Fp 2:9-11 e também em Rm 14:11; no trecho de Filipenses, essa profecia é aplicada com respeito ao culto a Cristo. Um caso famoso é o uso de Is 40:3 em Mt 3:3 e Mc 1:3, textos que falam do “caminho do Senhor” (que no texto de Isaías é Deus, é o tetragrama divino), agora aplicados à pessoa de Jesus Cristo. Isso é indício de que, desde muito cedo, os cristãos identificavam Cristo com o Deus do Antigo Testamento35.

Nenhuma interpretação que negue a divindade plena de Cristo, ou que negue essa identificação por parte dos cristãos, faz jus a esse fenômeno intertextual. Se, por um lado, os primeiros escritores cristãos não nos legaram nenhuma explicação textual dogmática da divindade de Cristo, no entanto, sabemos que algo assim era a doutrina correta em seus pensamentos. Eles olhavam para o Antigo Testamento e viam o seu Cristo no Deus de Israel, mesmo que não usassem, ainda, a linguagem da consubstancialidade (homoousios). A maneira como os apóstolos interpretavam deve ser o modelo para nós, certo? Imitemos o seu exemplo.

Esse fenômeno, no entanto, não está limitado a Cristo. O mesmo acontece com a Igreja: vários textos das Escrituras, que no Antigo Testamento se referem ao povo de Israel, são aplicados à Igreja. Um caso famoso é o uso de Jr 31 em Hb 8; o texto fala do fim da Antiga Aliança (anulada pelos pecados do povo) e menciona uma “Nova Aliança” com Israel, mas o uso neotestamentário o aplica para os cristãos. Assim também, as palavras em Êxodo 19:5-6 (particularmente em uma versão grega), texto que trata da “nação santa” e exclusiva, são aplicadas à Igreja em 1Pe 2:9. Note-se que, aí, a promessa para a nação santa é condicional à obediência (“se diligentemente ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança“, Êx 19:5). É importante dizê-lo, já que alguns “sionistas cristãos” teimam em dizer que os israelitas são nação santa e exclusiva mesmo na desobediência.

Um caso particularmente importante, em que isso acontece, é 2Co 6:16-18:

“¹⁶ Que ligação há entre o santuário de Deus e os ídolos? Porque nós somos santuário do Deus vivente, como ele próprio disse:
Habitarei e andarei entre eles; serei o seu Deus, e eles serão o meu povo.
¹⁷ Por isso, retirai-vos do meio deles, separai-vos, diz o Senhor;
não toqueis em coisas impuras;
e eu vos receberei,
¹⁸ serei vosso Pai, e vós sereis para mim filhos e filhas, diz o Senhor Todo-Poderoso.

2 Coríntios 6:16-18

Esse texto concatena várias profecias do Antigo Testamento, identificadas pelas cores. O v. 16 cita explicitamente uma profecia, em Levítico 26:12 e Ezequiel 37:26-27, que trata da restauração de Israel, mencionando, inclusive, a terra de Israel e o santuário de Israel. Com pode o autor sagrado tomar textos que se referem à restauração de Israel em sua própria terra e no seu próprio Templo e aplicá-los a uma igreja, muito longe dali, dizendo, inclusive “nós somos santuário do Deus vivente“? Só há uma explicação sustentável: Paulo36 via que as profecias do Antigo Testamento se cumpriam na Igreja.

O v. 17a cita Isaías 52:11, cujo contexto é, mais uma vez, a restauração de Judá (no contexto do exílio babilônico), com referências explícitas, no contexto, a Sião (52:1), Jerusalém (52:1), ao povo que havia descido ao Egito (52:4) e a utensílios do Templo (52:11). É de Israel que estamos falando, indubitavelmente. Há, até mesmo, referência ao zelo pela pureza no toque (“não toqueis em coisas impuras“), uma referência óbvia às leis de pureza do Pentateuco. Onde Paulo vê o cumprimento desse trecho? Na Igreja.

O v. 17b (“e eu vos receberei“) cita um pequeno trecho de Ezequiel 20:34 LXX37. Adivinhem só: mais uma profecia de restauração de Israel! O contexto de Ezequiel é bastante duro, e reconta, da perspectiva profética, a história da nação de Israel desde o Egito até a época do profeta, particularmente quanto às suas apostasias nacionais. Os israelitas pensam que imitarão a idolatria dos gentios (20:32). Deus promete, no entanto: “hei de reinar sobre vós” (20:33). Para Paulo, essa profecia de receber os israelitas saindo da idolatria se aplica em gentios convertidos da idolatria.

Chegamos então no v. 18. Neste momento, você pensa: já entendi, todos são textos que se referem à restauração nacional de Israel, então esse último deve se referir à mesma coisa. Na verdade, o último versículo é uma citação modificada da profecia da linhagem davídica, em 2Co 7:8,14, na qual Deus escolhe a linhagem de reis de Israel, cada um dos quais seria tido por filho de Deus; Paulo pluraliza (“filhos”) e amplia (“e filhas”) o texto original.

Em suma, Paulo vê se cumprir tudo na Igreja: a terra de Israel, Jerusalém, o Templo com seus utensílios, a linhagem real, e para isso ele cita algumas das principais profecias de restauração (Levítico, Isaías, Ezequiel). Assim como os primeiros cristãos olhavam para Cristo e viam o seu Deus, eles olhavam para a Igreja e viam Israel, o único povo de Deus. Qualquer outro tipo de hermenêutica é, realmente, fugir da maneira apostólica de interpretar as Escrituras Sagradas. Muitos “sionistas cristãos” arrotam lealdade às profecias, mas poucos deles têm consciência desse fenômeno intertextual, isto é, da maneira como a Bíblia interpreta a Bíblia.

Há vários outros exemplos, na Bíblia, desse mesmo processo. Em 1Co 5:7, Paulo toma como referência para os cristãos a orientação de remover o fermento, refere à Páscoa judaica originalmente, alegorizando um mandamento. No mesmo capítulo, no v. 13, há uma citação de Dt 17:7 LXX38, aplicando no contexto da disciplina eclesiástica um trecho que originalmente dizia respeito ao procedimento criminal deuteronômico, visando afastar a comunidade da culpa pessoal do criminoso. Creio que os exemplos citados até aqui sejam suficientes. Foi com os apóstolos que os Pais da Igreja aprenderam a olhar para o Antigo Testamento e saber que aquela era sua Escritura Sagrada.

5.3. Um absurdo da hermenêutica sionista

Muitos problemas surgem quando abandonamos a hermenêutica apostólica e seguimos a sionista; essa leitura sempre tenderá a anular ou ao menos diminuir o cristianismo, de maneiras bastante vexaminosas. Podemos tomar como exemplo um dos capítulos citados acima, Isaías 52, que, segundo vimos, é lido, secundum apostolicam sapientiam, como tendo cumprimento da Igreja. O capítulo canônico começa com a seguinte declaração chocante:

“Desperta, desperta, reveste-te da tua fortaleza, ó Sião; veste-te das tuas roupagens formosas, ó Jerusalém, cidade santa; porque não mais entrará em ti nem incircunciso nem imundo.

Isaías 52:1

Os incircuncisos estarão proibidos de entrar na Jerusalém restaurada e profetizada. Como podem os sionistas lidar com essa questão, caso não queiram simplesmente desconversar? A pergunta é: os cristãos gentios incircuncisos, que deram a vida pelo Messias, estarão eternamente proibidos de entrar na cidade do Messias? Podemos inclusive perguntar se esses “cristãos sionistas” não deveriam se abster, já hoje, de entrar em Jerusalém, o que eu consideraria bastante benéfico, já que essa parece ser a vontade divina, ao menos segundo a hermenêutica sionista, mas, para não complicar a pergunta, mantenhamos a questão inicial: assim como cristãos não podem entrar em Meca, eles serão barrados de entrar na cidade do Messias, Jerusalém?

O sionista deve responder assim:

(1) Ou Jerusalém de fato terá, por ordem divina, entrada proibida para os cristãos gentios durante o suposto “reino milenar” (ou outro momento da história), um apartheid divino, de maneira que no Messias continue havendo muralha de separação entre judeu e gentio (contra Ef 2);

(2) Ou os “circuncisos”, na profecia de restauração, serão os circuncisos de coração, e, portanto, o fundamento nacional-religioso do “sionismo cristão” desaparece por completo. Como Paulo ensinou, “nós somos a circuncisão“. Isso reafirma a leitura alegórica paulina de Is 52:11. Escolher essa opção obriga o “sionista cristão” a reinterpretar essa e outras profecias, eliminando seu sionismo.

6. Deus está do lado da ocupação?

Em sua língua, os palestinos usam duas palavras para descrever sua condição histórica: nakba (“tragédia”) e iḥtilāl (“ocupação”). Todos os palestinos que vi até hoje, seja presencialmente, seja por escrito ou por vídeo, manifestam, de maneiras variadas, esse mesmo tom. Ele sentem que a conquista da terra envolvida na constituição do estado israelense envolveu uma imensa tragédia, que permanece até hoje, não só impedindo os palestinos de terem inteiro direito à terra, mas também lhes negando o direito de retorno à terra. Eles têm uma maneira de contar sua história à qual os “sionistas cristãos” raramente dão atenção ou mesmo ouvem, em razão do filtro da doutrina sionista. Qualquer pessoa com o mínimo de compaixão, no entanto, deve se perguntar se não há ao menos alguma razão para tanta insistência por parte dos palestinos.

Eles não são os únicos a protestar. Quanto o assunto do sionismo vem à tona, logo aparece também a opinião dos rabinos antissionistas (como os dos grupos Satmar e Naturei Karta), ainda que frequentemente eles sejam injustamente retratados e não recebam devida atenção da mídia internacional, a qual deu uma guinada decisiva em favor da narrativa sionista secularizada. Embora a tese desses rabinos, de que não há autorização divina para a constituição de um estado judeu na Terra Santa, e de que a criação do estado moderno de Israel vai contra a tradição judaica, possa ser descartada por alguém como um biblicismo imaturo, um apelo ao passado sem atenção às circunstâncias do presente, creio que haja algo dela que toca na raiz de um dos problemas do “sionismo cristão”.

De uma perspectiva cristã, a legitimidade de qualquer estado é regulada pela Lei Natural — a Justiça — e pelo conjunto de costumes internacionais mais consensuais (o direito consuetudinário e o ius gentium) que decorrem, proximamente, da Lei Natural. Nisso, todo estado é igualmente legitimo e nenhum estado tem, a priori, a prerrogativa de submeter ou expulsar qualquer outro povo, salvo como resultado de uma guerra justa (defensiva). Assim, mesmo que haja um vínculo histórico de um povo com um lugar, isso não lhe confere nenhum direito privilegiado, tanto quanto a origem africana comum da humanidade, por si só, não confere a nenhum povo não-africano um direito a um trono naquele continente. Até porque diversos povos já habitaram na Terra Santa e os antigos israelitas não foram os primeiros nem os últimos.

Só um fato poderia criar uma exceção: uma intervenção divina profética. Como Deus é o dono de toda a terra, ele pode dar um pedaço dela a quem quiser e tirar de quem ele quiser, sem precisar prestar contas. Para isso, é necessário que profetas de manifesta santidade falem em nome de Deus e provem sua afirmação com milagres, como, segundo a Bíblia, fez Moisés39. Considerando que não haja qualquer maneira de deduzir, daquilo já revelado nas Escrituras Sagradas, que os judeus da Diáspora teriam direito40 a estabelecer, na Terra Santa, um estado divinamente sancionado, quem “argumentar” por essa via correrá o risco de cometer pecado contra o mandamento: tomou o nome do Senhor em vão.

Nesse sentido, aquele que fala acima da razão humana precisa falar. Se não o fizer, manifestando sua Sabedoria transcendente, devemos nos regular pela Lei Natural, que coloca todos os povos em pé de igualdade e, segundo o costume universal, desconhece privilégios ancestrais milenares. Nesse sentido, a menos que profetas verdadeiros e santos operem milagres incontestáveis, não há como garantir o direito dos judeus do jeito que querem os “sionistas cristãos”.

7. Uma síntese e um mistério

As promessas divinas não são e nunca foram atreladas à mera descendência natural, mas sempre à obediência a Deus. Essa foi a mensagem de todo o coro dos antigos profetas, repetida por Cristo. Os filhos de Abraão, herdeiros da promessa, são os batizados em Cristo. Para Deus, não há diferença entre judeus e gentios: o judeu é o interior, não o exterior; a circuncisão é a do coração, não a da carne. A promessa divina dada a Abraão diz respeito ao mundo inteiro, não se limita à Terra Santa. Deus só tem um povo, que é o Israel de Deus, ou seja, a Igreja. Deus não tem nenhum Israel além do Israel de Deus.

A Antiga Aliança acabou. Passou. Caducou41. A primeira foi tirada, para que se estabelecesse a segunda. Deus já havia avisado que a primeira terminaria. A Igreja não é um segundo plano, mas o plano original, a consumação de Israel. Qualquer pessoa que diga que “Deus ainda tem promessas a cumprir em Israel”, fazendo separação entre Israel e a Igreja, não entendeu o que é a Igreja, e a trata, mesmo sem querer, como segundo plano42.

No dia de Pentecostes, quando o Espírito Santo veio sobre aqueles judeus reunidos, inclusive sobre a Virgem Maria, sobre os apóstolos, sobre aquela pequena multidão reunida em oração, ele lhes fez falar, miraculosamente, nas línguas de vários povos que ali estavam para celebrar a festa. Aqueles eram judeus de outras nações e prosélitos do judaísmo, mas representavam, desde já, os vários povos sendo alcançados pelo poder divino. O Espírito Santo manifestou ali seu desejo de transformar toda a humanidade (“toda carne”), desfazendo a confusão das línguas. Deus estava gerando uma nova identidade para o seu povo, composto de todos os povos, tribos, línguas e nações. Daquele dia em diante, os apóstolos revestidos do poder divino anunciaram a fé e converteram multidões, realizando milagres assombrosos que testemunhavam um novo acontecimento, um novo tempo. Foi através de judeus fiéis ao Messias que isso aconteceu. Foi através das orações deles que o Espírito Santo originalmente gerou a Igreja, a restauração do povo de Israel.

Mas o que dizer daqueles que não reconheceram a visitação divina? Mesmo falando com tristeza da condição espiritual dos seus compatriotas, Paulo apresenta um mistério de esperança: os judeus deixarão a incredulidade e o endurecimento. Eles serão reenxertados e assim se cumprirá a profecia de que “todo o Israel será salvo”, não somente parte, quando aqueles judeus se tornarem novamente Israel, por fidelidade ao Messias. Pois a restauração de Israel não é ter um estado, não é ter terra, é ter comunhão com Deus.

Não sabemos como será aquele dia. Quando os setenta anciãos foram cheios do Espírito Santo e alcançaram o êxtase profético, as palavras de reação de Moisés, segundo a Escritura, foram: “Tomara todo o povo do Senhor fosse profeta, que o Senhor lhes desse o seu Espírito!“. Moisés não se enciumava de que o Espírito Santo estivesse sobre outras pessoas além dele, antes desejava que assim fosse com todo o povo.

Como será, então, naquele dia ou naqueles dias em que os judeus retornarem ao Israel de Deus, participando mais uma vez da raiz e da seiva da Oliveira, agora sob o ministério do Espírito? Será tudo em um dia ou em muitos dias? Como será aquela chuva torrencial a se derramar sobre os filhos de Raquel? Como será aquele rio de água pura a inundar a face da terra, levando vida por onde passar? Como serão as lágrimas e a alegria quando Deus derramar sobre o seu povo o espírito de graça e de suplica? Como será o abraço entre Sara e Agar, entre a princesa e a rejeitada? Como será, naquele dia, o reencontro entre Isaque e Ismael, entre Jacó e Esaú, entre os irmãos afastados, entre o primogênito de nascimento e o primogênito de herança? Como será o momento em que finalmente todos serão um e retornarmos ao princípio de tudo? Como será o momento em que o irmão mais velho finalmente entrará para o banquete? Como serão aqueles últimos profetas da Igreja, quando o fim for como o início?

Como será o dia em que se realizará o sonho de Moisés?

Rev. Gyordano M. Brasilino

  1. Há sionistas evangélicos que se identificam com o “novo sionismo” (New Zionism), não ligado ao dispensacionalismo pentecostal e neopentecostal. Para efeitos do que aqui se discute, não há diferença substancial entre esses grupos. Nos momentos relevantes, o texto critica diretamente os dispensacionalistas e essa crítica não deve ser entendida como uma generalização que inclua os novos sionistas. ↩︎
  2. Esses se baseiam no texto em que Deus diz a Abraão “Abençoarei os que te abençoarem e amaldiçoarei os que te amaldiçoarem” (Gn 12:3). Eles dão dois saltos: aplicam essa promessa para os judeus e então para o estado moderno de Israel. ↩︎
  3. Os apologistas do “sionismo cristão”, identificando “autodeterminação” com “sionismo”, tratam qualquer negação do sionismo como negação da autodeterminação e, portanto, como a exclusão de um direito humano geral apenas aos judeus, o que seria, nessa lógica, antissemitismo. O mote é “antissionismo é antissemitismo”. Mas o “sionismo cristão” não é apenas a defesa da autodeterminação, como concordam os judeus antissionistas. ↩︎
  4. Algum judeu pode ler essas palavras com certo estranhamento, por pensar que nunca pediu para ser tratados como melhores que o restante da humanidade. Por isso, reafirmo: o texto se dirige a cristãos que têm essas crenças. Judeus que se considerem iguais ao restante da humanidade e sem privilégios divinos estão isentos da crítica, naturalmente. ↩︎
  5. Há opiniões diferentes, entre os “sionistas cristãos”, sobre o que fazer com os palestinos. Alguns consideram que, embora os palestinos não tenham o mesmo direito divino, teriam certo direito a continuarem na terra, seja com um estado próprio, seja debaixo do “estado de Israel”. Eu enfatizo o direito divino na argumentação “sionista cristã” para mostrar o elemento mais propriamente racista ou discriminatório dessa doutrina. ↩︎
  6. Não acredito em “teologia da substituição ” e não conheço nenhuma pessoa que acredite nisso, mas é hilária a maneira como os sionistas a usam como acusação. Se você diz que os cristãos são os herdeiros das promessas de Abraão, você defende a teologia da substituição. Se você diz que a Igreja é o Israel de Deus, você defende a teologia da substituição. Se você diz a circuncisão somos nós, você defende a teologia da substituição. Se você diz que os israelitas incrédulos foram arrancados da Oliveira (e outros ramos colocados em seu lugar) e só serão enxertados quando se convertem a Cristo, você defende a teologia da substituição. Se você diz que a primeira Aliança, temporal, terminou, e que agora só é válida a Nova Aliança, você defende teologia da substituição. Se você diz que para Deus não há diferença entre judeus e gentios, você defende teologia da substituição. Ou seja, basta ensinar as mesmas coisas que o apóstolo Paulo ensinou, e você se torna, na cabeça dessas pessoas, defensor de “teologia da substituição”. É o “comunista” ou “fascista” desse pessoal. ↩︎
  7. Em português, não existe “supersessionismo”. É criação de tradutores ruins. ↩︎
  8. Os “sionistas cristãos” são, na maioria, dispensacionalistas, portanto suspeitam dessas propostas de paz como coisa do anticristo. O anticristo promove a paz e Cristo promove a guerra. Vai entender. ↩︎
  9. 2Cr 36:15; Jr 7:13,25; 26:5; 29:19; 44:4; Zc 7:7 etc. ↩︎
  10. Esse tema está presente nas narrativas da Paixão de Cristo e nos sofrimentos dos apóstolos posteriormente, que são, de certo modo, continuação do sofrimento do Messias. cf. Mt 27:18; Mc 15:10; At 5:17; 7:9; 13:45; 17:5. ↩︎
  11. Prometida previamente, em Mt 16:19; 18:18-19. ↩︎
  12. Algumas pessoas que defendem uma teologia igual ou semelhante à minha a chamam às vezes de “teologia da inclusão”. É preciso reconhecer: trata-se tanto de uma teologia da inclusão quanto de uma teologia da exclusão. É a inclusão de todos os povos (judeus e gentios igualmente) e a exclusão de todos os incrédulos. ↩︎
  13. Estamos considerando, é claro, que seja possível usar a palavra “estado” para descrever o Israel da antiguidade. Concordo inteiramente, com quem estranhe essa linguagem, que aquilo que chamamos de “estado” hoje não existiu antes da modernidade. Estou empregando aqui a mesma palavra levando em conta mais uma analogia do que propriamente uma identidade, apenas para não complicar desnecessariamente o argumento. ↩︎
  14. Rm 15:31; 2Co 1:16; Gl 1:22; 1Ts 2:14. ↩︎
  15. Alguns “sionistas cristãos” apelam para At 1:6, em que os apóstolos perguntam sobre quando seria restaurado o reino a Israel. Tudo depende do que significa esse “reino”. Aconteça o que acontecer, o estado moderno de Israel não é um reino, então a pergunta dos discípulos aí não pode ter a ver com esse estado. Como em vários casos, há uma confusão entre o povo de Israel na Antiguidade, a terra de Israel, o judaísmo e o estado moderno de Israel, como se tudo isso, além de ser a mesma coisa, ainda fosse um reino. A melhor maneira de entender o “reino”, aí, é como a autoridade espiritual residente na linhagem de Davi (1Cr 28:5; 13:8). Na Parábola dos Lavradores Maus, essa autoridade, que parecia residir nos líderes religiosos de Israel, lhes foi tirada (Mt 21:43). É importante dizer: eles não tinham, aí, nenhum estado, então não há como conectar com o estado de Israel. ↩︎
  16. Possivelmente, ao falar “judeus”, Paulo quer dizer, contextualmente, os “habitantes da Judeia”, já que, assim como ele mesmo, aqueles cristão da Judeia também eram de “origem judaica”. ↩︎
  17. Na crítica histórica, discute-se se esse trecho seria uma interpolação (por emenda conjectural). Como consideramos que o texto original e o interpolado têm o mesmo valor, e como mesmo a interpolação é incerta, essa questão não muda em nada o quadro que temos diante de nós. ↩︎
  18. Embora eu advogue uma leitura amplamente apocalíptica de Paulo, a qual vislumbra uma novidade em sua mensagem, uma ruptura fundamental em relação à religião que Paulo viveu antes de aderir à fé cristã, devo dizer que a novidade apocalíptica é constituída de elementos já presentes na religião dos profetas de Israel, agora recebendo um relevo renovado. Um deles, por exemplo, é a imagem da circuncisão do coração como o sentido profundo da circuncisão da carne. O ingresso do reino vindouro no presente inclui, portanto, em certa medida, um retorno à origem — não tanto a um passado que foi, mas a um passado que poderia ter sido; se não a uma realidade primitiva, ao menos a uma esperança primitiva. Uma forma de colocar essas coisas, através do dito patrístico, é de que a redefinição apocalíptica estava oculta na religião antiga, a nova aliança estava oculta na antiga. ↩︎
  19. Lv 26:41; Dt 10:16; 30:6; Jr 4:4; 9:25-26; Ez 44:7. ↩︎
  20. Is 19:23-25; Am 9:7; cf. Êx 12:49; 22:21; Lv 19:34. ↩︎
  21. Alguns “sionistas cristãos” se apegam ao fato de que Paulo continua empregando palavras como “judeu”, “circuncisão” e “Israel” no sentido antigo. É claro que ele continua a fazê-lo. Também eu e todos os defensores da posição majoritária o fazemos, com muita frequência. Em geral, não saímos por aí nos identificando como judeus, e sim como cristãos. Afinal, palavras não se mudam ao bel prazer do falante ou escritor. Mas isso não significa que Paulo opere sob a lógica do “sionismo cristão”. Dizemos que somos cristãos e não judeus, sabendo que somos judeus no espírito e não judeus na carne. ↩︎
  22. De fato, a espiritualização, desliteralização ou sublimação do simbolismo religioso material, em favor de uma virtude interior e pessoal, não é ideia nova dos cristãos. Ela já estava presente na religião israelita (portanto não se trata de um contraste entre um judaísmo “exterior” e “materialista” e um cristianismo “interior” e “espiritualizado”) e em diversas outras religiões da “Era Axial”. O sacrificium cordis, a oblação dos recessos mais interiores da alma, já está lá no seio do cântico de Israel, transfigurando a prática ritual. Esse processo não elimina o simbolismo religioso, mas lhe dá uma nova forma, e naturalmente cria uma tensão entre as castas mais antigas, de autoridade aristocrática e “legal”, que detêm nas mãos o poder dos símbolos materiais (o templo, o sacrifício, o rito, o território sagrado, a linhagem pura), e a nova linhagem, de autoridade carismática e popular, com sua nova estrutura simbólica, marcada por hibridações. A definição agostiniana de sacramento, como sinal visível de uma graça invisível, encapsula, de uma perspectiva cristã, toda essa mudança de mentalidade. Essa priorização facilitou a adesão do cristianismo ao platonismo. ↩︎
  23. Não relativização de sua importância, mas de sua suficiência. ↩︎
  24. Não se quer dizer, com isso, que os que viveram antes de Cristo não tinham uma fé, nem que os que estão em Cristo estão sem lei. O que está em jogo é certa maneira de identificação, uma centrada na lei, a outra centrada na fé. A “fé”, ali, não designa primeiramente um hábito pessoal ou crença interior, mas sim a religião cristã como realidade no mundo. ↩︎
  25. Às vezes, os “sionistas cristãos” tentam colocar no seu time algumas referências esparsas (anteriores à Reforma Protestante) à conversão dos judeus ou ao seu retorno à Terra Santa, como um fato a se dar no futuro. Que eles nunca tentem mostrar que essas pessoas subscreviam ao programa sionista (portanto apoio cristão à formação de um estado judeu) ou a uma definição de sionismo, já demonstra a falta de seriedade dessa abordagem. A afirmação de que os judeus um dia se converterão não é “sionismo cristão”. ↩︎
  26. Neste texto, entenda-se “hermenêutica apostólica” como sendo a leitura alegórica dos textos do Antigo Testamento, prática seguida pelos apóstolos de maneira abundantemente consistente. É muito difícil encontrar qualquer citação do Antigo Testamento no Novo Testamento em que não haja interpretação alegórica; pessoalmente, acredito que não haja nenhuma. Essa preferência pela alegoria justifica o nome de “hermenêutica apostólica”. Mas devo admitir que uso esse nome, também para provocar os literalistas, que se consideram mais leais ao texto por defenderem o literalismo. ↩︎
  27. Êx 12:49; Nm 15:15,29; Dt 1:16. ↩︎
  28. É importante dizer que há vários textos no Pentateuco apresentando certas limitações para pessoa de certos povos, como egípcios e especialmente amonitas e moabitas. No entanto, o próprio Antigo Testamento relativiza esses textos, mostrando a entrada de Rute (uma moabita) e de sua descendência (inclusive o rei Davi ao fim) no povo de Judá, coisa que não poderia acontecer se tratássemos a proibição de Dt 23:3-6 como literal, absoluta e atemporal. O livro de Rute parece, ao contrário, disposto a mostrar compaixão e acolhimento àquela moabita e justificar a linhagem de Davi. ↩︎
  29. Ver (1) aqui, (2) aqui e (3) aqui. ↩︎
  30. Ainda que esses árabes o sejam por mais linhas genealógicas do que nós. ↩︎
  31. The Law of Return, 5730-1970: 2nd Amendment 4B. For the purposes of this Law, “Jew” means a person who was born of a Jewish mother or has become converted to Judaism and who is not a member of another religion. ↩︎
  32. Mesmo os indígenas, no Brasil, que não têm estado próprio, não são apenas descendentes de pessoas que viveram há milênios, mas pessoas que viveram no Brasil desde sempre, embora tenham sido submetidas a um processo violento de conquista e colonização. ↩︎
  33. Jr 18:7-10; Ez 18:24; 33:13. ↩︎
  34. 2Sm 7:12-16; Sl 89:3-4; Sl 132:11-12. ↩︎
  35. Alguém pode argumentar que os primeiros escritores cristãos o fizeram por ignorância, e não por intenção de identificar esses textos com Cristo, porque teriam entendido mal o texto do Antigo Testamento. Essa hipótese depende de que: (1) esses primeiros cristãos só conhecessem o texto grego, para que o tetragrama ficasse oculto (traduzido como kyrios, “Senhor”), o que é falso; (2) eles fossem bastante desatentos para o contexto original, que, em alguns casos, é inconfundível. A soma dessas hipóteses é tão improvável que o mais racional é acreditar que eles fizeram o que fizeram de modo consciente e intencional, não por ignorância. ↩︎
  36. Pessoas preocupadas com a questão da autoria paulina ou paulinista de 2Coríntios devem deixar essa questão para outro dia… ↩︎
  37. O trecho, em 2Co 6:17, é “κἀγὼ εἰσδέξομαι ὑμᾶς“. O versículo inteiro de Ezequiel 20:34 LXX, com o trecho relevante grifado, é: “καὶ ἐξάξω ὑμᾶς ἐκ τῶν λαῶν καὶ εἰσδέξομαι ὑμᾶς ἐκ τῶν χωρῶν οὗ διεσκορπίσθητε ἐν αὐταῖς ἐν χειρὶ κραταιᾷ καὶ ἐν βραχίονι ὑψηλῷ καὶ ἐν θυμῷ κεχυμένῳ↩︎
  38. A frase, em 1Co 5:13, é “ἐξάρατε τὸν πονηρὸν ἐξ ὑμῶν αὐτῶν“. O versículo inteiro de Deuteronômio 17:7 LXX, com o trecho relevante grifado, é: “καὶ ἡ χεὶρ τῶν μαρτύρων ἔσται ἐπ᾽αὐτῷ ἐν πρώτοις θανατῶσαι αὐτόν καὶ ἡ χεὶρ παντὸς τοῦ λαοῦ ἐπ᾽ἐσχάτων καὶ ἐξαρεῖς τὸν πονηρὸν ἐξ ὑμῶν αὐτῶν“. ↩︎
  39. O retorno dos judaítas do Exílio, ainda que acompanhado por profetas, não cumpre esse requisito pelo simples motivo de que ele não foi uma invasão sancionada divinamente, mas sim uma concessão de quem detinha o imperium: a Pérsia. ↩︎
  40. Nesse ponto, o sionismo cristão comete um salto lógico: há prenúncios, portanto há direito, raciocínio incorreto. O prenúncio em si nunca cria nenhum direito, mas apenas anuncia a sua futura criação. ↩︎
  41. Hb 8:6-13; 10:9. ↩︎
  42. Nesse ponto, os dispensacionalistas parecem ser mais sinceros que os “novos sionistas” no papel subalterno conferem à Igreja no plano divino. ↩︎

A Epifania do Senhor e os Reis-Magos

Hoje, 6 de janeiro, é o dia da Epifania do Senhor, o momento em que “uns magos” foram honrar o menino Jesus, o Rei dos judeus, que havia nascido. O significado desse dia se torna mais forte quando entendemos por que, ao menos no Ocidente, eles foram identificados como reis e como três.

Na antiga profecia hebreia, reis gentios viriam trazendo presentes e tributos, inclusive ouro, incenso e adoração (Sl 68:28–29; 72:10—11; Is 49:7; 60:3,6). Eles vieram a Jerusalém “para adorá-lo” (Mt 2:2), isto é, para se curvarem diante dele como seus tributários. A chegada dos reis-magos sinaliza, por isso, a luz do mundo atraindo os gentios à salvação. Ela representa uma tardia hospitalidade ao Rei de Israel, enquanto, em sua própria nação, os sinais dos tempos não eram percebidos.

O Evangelho nos diz que eram “uns magos”, então eram, no mínimo, dois ou três, e, provavelmente, não muitos, já que os presentes foram apenas três — a menos que houvesse repetição nos presentes, seria desonroso que muitos levassem apenas alguns presentes. Mas esse número de três se liga tipologicamente a outras histórias do Antigo Testamento, como os três valentes de Davi que foram até Belém, quando ela estava sob o domínio estrangeiro, para buscar a água preciosa para o rei — água que depois é rejeitada pelo rei e derramada em sacrifício.

Tradicionalmente, os três magos aparecem como sendo de três nações diferentes, um um negro, um branco e um asiático, recordando os três filhos de Noé que, na narrativa do Gênesis, teriam dado origem a todos os povos do mundo. Nesse símbolismo está, ao mesmo tempo, a igualdade entre eles, sua grandeza comum, e também o reconhecimento comum do Rei dos reis.

Os reis da terra, no Salmo 2, se unem contra Cristo, como vemos acontecer no Apocalipse (19:9), mas ali eles são exortados a “beijarem o Filho”. No Apocalipse, o cenário muda e vemos que “os reis da terra trarão para ela a sua glória e honra” (Ap 21:24). A chegada dos reis magos é só um pequeno sinal dessa esperança final da paz universal sob o Ungido de Deus. Por isso, a Epifania é a festa da esperança da salvação para todos os povos. Ele é o Rei dos reis, “o Esperado das Nações” (Gn 49:10 LXX), “em seu nome os gentios confiarão” (Is 42:4).

Por isso, o mistério profundo da Epifania é, ao mesmo tempo, o cuidado de Deus para com todos os povos da terra, e o modo como todos os povos, sem saber, desejam e esperam o Cristo de Israel. Ele é a satisfação de todo o desejo.

“As nações se encaminham para a tua luz, e os reis, para o resplendor que te nasceu. A multidão de camelos te cobrirá, os dromedários de Midiã e de Efa; todos virão de Sabá; trarão ouro e incenso e publicarão os louvores do Senhor.”
Isaías 60:3,6

Rev. Gyordano M. Brasilino

Magnificat

O Cântico de Maria é um dos três belos cânticos que vemos no início do Evangelho de Lucas, aquele que conta mais detalhadamente sobre o nascimento de Jesus. Os três cânticos estão cheios de alegria e esperança messiânica.

O Magnificat tem quatro partes. A primeira é a adoração profunda e alegre de Maria. A segunda é a exaltação dela por Deus. A terceira é a reviravolta e inversão no mundo pela visitação de Deus: os pobres e pequenos são exaltados, os ricos e poderosos são rebaixados. A quarta é o fundamento de tudo, a lealdade de Deus a promessa feita aos antepassados da nação de Israel.

Assim, é em razão do juramento e da aliança que Deus cumpre agora sua promessa de trazer justiça ao mundo, alegrando o coração de Maria.

Entre a segunda e a terceira partes, há uma transição abrupta. Na segunda parte, Deus exalta a humilde Maria; na terceira, ela fala da mesma coisa acontecendo com o mundo. Mas essas coisas ainda não haviam acontecido; Maria fala no passado de coisas que se fariam no futuro. (Também o Cântico de Zacarias, o Benedictus, trata no passado coisas que se fariam no futuro.) Qual é a relação entre essas duas partes?

O que ocorre é que Maria vê, profeticamente, acontecer nela aquilo que aconteceria no mundo inteiro. Ela é o começo da salvação e redenção que Deus trouxe. A alegria de Maria é o início da alegria escatológica prometida a Israel na visitação de Deus: “Exulta, e alegra-te, ó filha de Sião, porque eis que venho, e habitarei no meio de ti, diz o Senhor.” (Zc 2:10).

É significativo que o cântico de Maria tenha sido entoado, dentro da narrativa do Evangelho de São Lucas, no momento em que Isabel e João Batista se alegram com a visitação de Jesus através de Maria. Assim como o início do Evangelho de Lucas é um pequeno Pentecostes, ele sinaliza o início da Nova Criação. Aquelas duas crianças e aquelas duas mulheres eram as pessoas mais aptas a, naquele momento, reconhecer os sinais dos tempos. Isabel e sua família eram a antiga aliança (ela era Sara), o antigo sacerdócio, o antigo profetismo, obedientes a todos os mandamentos da Lei. Jesus e Maria eram a Nova Aliança. O Antigo se alegra diante do Novo.

Ela, que não tinha filhos, teve um filho, o bendito fruto do seu ventre. Israel, que era infrutífero, agora produziria os frutos dignos do arrependimento.

O Magnificat contempla a misericórdia prometida aos ancestrais, portanto a dimensão de graça e promessa livre, assim como também a obediência de Maria e de Israel (“contemplou a humildade da sua serva”, “sua misericórdia vai de geração em geração sobre os que o temem”). Ela está em consonância com a mensagem de João Batista, segundo a qual os verdadeiros filhos de Abraão seriam aqueles que obedecessem a Deus.

A essência do cântico é Maria como um sinal profético da alegria escatológica pela visitação transformadora de Deus, como um cumprimento da aliança de Israel.

Rev. Gyordano M. Brasilino

O Batismo não é só um símbolo (parte 1)

Minha publicação (7)

Reunidos no cenáculo, os seguidores de Cristo, o discípulos, com Maria e tantas outras pessoa, oravam pela vinda do Espírito Santo, e foi naquele primeiro Pentecostes depois da Ressurreição que o Espírito veio sobre a Igreja. Cristo rogou ao Pai e ele enviou o outro Consolador, o qual, na Igreja, continuaria a missão de Cristo. Continue lendo “O Batismo não é só um símbolo (parte 1)”

Israel e a Igreja

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Um dos problemas centrais no Novo Testamento é a relação entre a Igreja e Israel, entre o povo de Deus no Antigo Testamento e o povo de Deus no Novo. Não é só uma curiosidade escatológica ou eclesiológica; é uma questão eminentemente prática, uma das preocupações fundamentais de textos dos Atos dos Apóstolos e das Cartas Paulinas. A solução desse problema conferiu aos gentios, através da revelação divina, um assento no povo de Deus igual ao dos primeiros convertidos judeus.

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O Deus misericordioso do Antigo Testamento

Oséias de Rafael

Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, porque dais o dízimo da hortelã, do endro e do cominho e tendes negligenciado os preceitos mais importantes da Lei: a justiça, a misericórdia e a fé; devíeis, porém, fazer estas coisas, sem omitir aquelas! Mateus 23:23

O uso do Antigo Testamento pela Igreja é uma das mais profundas e importantes interrogações da teologia cristã. Nas décadas anteriores à escrita dos livros do Novo Testamento, os Oráculos Sagrados dos hebreus foram a primeira Bíblia dos cristãos, como foi a Bíblia de Jesus e dos primeiros discípulos. Mortas as últimas testemunhas oculares da ressurreição de Cristo, em pouco tempo vemos já as celebrações cristãs iniciadas pela leitura das memórias dos apóstolos e dos escritos dos profetas, como nos conta o mártir Justino. Nisso se expressava a fé da Igreja não apenas na continuidade da revelação de Deus entre judeus e cristãos, mas também na continuidade do Deus da revelação, que jamais muda e não mudou entre as duas eras. Continue lendo “O Deus misericordioso do Antigo Testamento”

A terra não é a terra: duas alegorias paulinas

 

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“Toda Escritura divinamente inspirada é proveitosa para ensinar, para redarguir, para corrigir, para instruir em justiça, para que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente instruído para toda boa obra.” (II Timóteo 3:16)

“E, começando por Moisés, e por todos os profetas, explicava-lhes o que dele se achava em todas as Escrituras.” (Lucas 24:27)

Um dos traços da exegese bíblica crítica é a rejeição dos antigos métodos alegóricos de interpretação das Sagradas Escrituras. Quando se deparam com os numerosos exemplos de interpretação do Antigo Testamento registrados por autores do Novo Testamento, especialmente os evangelistas sinóticos e o apóstolo Paulo, os inimigos da alegoria reagem sempre do mesmo jeito, alegando que nós não somos Jesus nem os apóstolos, e, por isso, não temos autoridade para interpretar como eles interpretavam. Continue lendo “A terra não é a terra: duas alegorias paulinas”

Os Ramos e a Multidão

Domingo de Ramos
Este é o dia que o SENHOR fez;
regozijemo-nos e alegremo-nos nele.
Bendito o que vem em nome do SENHOR.

A vós outros da Casa do SENHOR, nós vos abençoamos.
O SENHOR é Deus, ele é a nossa luz;
adornai a festa com ramos até às pontas do altar.
(Salmos 118:24,26-27)

Ao contrário do mito popular, a multidão que gritava “Hosana!” não é a mesma que pediu a crucificação de Jesus. A multidão que preparou a entrada de Jesus em Jerusalém foi aquela que, na frente e atrás dele, ia para a festa da Páscoa (Mt. 21:9; Jo. 12:12-13), enquanto o povo de Jerusalém não fazia idéia do que estava acontecendo (Mt. 21:10-11). No Evangelho de Lucas, a multidão é chamada de “multidão dos discípulos” que louvava a Deus “por todos os milagres que tinham visto” (Lc. 19:37), o que, no Evangelho de João, era a ressurreição de Lázaro, atraindo a atenção do povo de Jerusalém e o ódio dos fariseus (Jo. 12:17-19). Continue lendo “Os Ramos e a Multidão”

Trapo de Imundícia ou Linho Fino?

Judas

“Mas todos nós somos como o imundo, e todas as nossas justiças, como trapo da imundícia; todos nós murchamos como a folha, e as nossas iniqüidades, como um vento, nos arrebatam.” (Isaías 64:6)

“Alegremo-nos, exultemos e demos-lhe a glória, porque são chegadas as bodas do Cordeiro, cuja esposa a si mesma já se ataviou, pois lhe foi dado vestir-se de linho finíssimo, resplandecente e puro. Porque o linho finíssimo são os atos de justiça dos santos.” (Apocalipse 19:7-8)

Na interpretação evangélica popular de Is. 64:6, ocorre um erro bastante comum, que é o de atribuir a esse texto uma abrangência universal: o “nossas” de Isaías se torna o “nossas” do leitor e do restante da humanidade, de modo que toda as nossas boas obras (“justiças”) passam a ser vistas como más, sujas, imundas, pecaminosas. Trapo de imundícia são os panos sujos que cobrem coisas que, pela lei mosaica, são julgadas como imundas, como a pele dos leprosos. Continue lendo “Trapo de Imundícia ou Linho Fino?”

A Serpente não é Satanás (e outras alegorias)

Leão e Serpente

A interpretação literalista da Bíblia é um fenômeno essencialmente moderno. Toda interpretação séria da Sagrada Escritura leva em conta o sentido literal do texto. Que o sentido literal deva ser preferido sempre que possível, é algo com que qualquer hermenêutica pode concordar. Orígenes, grande campeão da interpretação alegórica, podia perfeitamente concordar com essa tese. A diferença é a extensão do “sempre que possível”, havendo quem o queria alargar ou limitar. Para o mesmo Orígenes (De principiis), uma interpretação que fosse contraditória ou incompatível com o que se sabe sobre o mundo deveria ser descartada; ela não seria “possível”. Por isso, nosso conhecimento do mundo real independente do texto seria uma medida de literalidade. Continue lendo “A Serpente não é Satanás (e outras alegorias)”