Dois Tipos Políticos na Tradição Cristã (ou: Do Direito Diabólico dos Reis)

Na história da teologia cristã, duas concepções políticas ideais se entrelaçaram e competiram de maneira mais ou menos consciente, uma de tipo mais platônico e a outra mais aristotélica. A diferença entre essas duas concepções está no lugar que a lei natural ocupa no pensamento político: ela serve para criticar as instituições existentes (o status quo) ou para explicá-las e fundamentá-las? Ela serve à mudança ou à manutenção?

Essas duas perspectivas encontram raízes na própria Escritura Sagrada. Por um lado, existe a tendência de exigir dos cristãos obediência às autoridades civis através de um reconhecimento de sua origem divina, como nas famosas palavras do Senhor a Pilatos no Quarto Evangelho ou no trecho também célebre da Carta aos Romanos. Mas também há um elemento crítico, nos trechos mais apocalípticos das Escrituras, como no “entre vós não é assim” (Mc 10:42-44) ou no ensino, de sabor cínico (no sentido filosófico), de que o motivo pelo qual os cristãos devem pagar impostos é não causar escândalo (Mt 17:25-27), ou ainda, magistralmente, no Apocalipse de São João, no qual o poder político imperial da Besta tem raiz demoníaca.

O primeiro tipo percebe um maior descompasso entre a natureza e as relações sociais existentes. Ontem eu citei o trecho em que São Gregório Magno escreveu na “Regra Pastoral” (II.6): “O homem, por sua natureza, foi colocado acima dos animais irracionais e não acima dos outros homens; por isso, lhe é dito que seja temido pelos animais, e não pelos homens. É ensoberbecer-se contra a natureza o querer ser temido por um seu igual.”

O “igualitarismo” comunicado nessas palavras, que olha para a natureza humana além e acima das convenções sociais, nos leva a perceber esses problemas de maneira mais atenciosa. Nessa concepção, não é natural (no sentido de que não emerge diretamente da natureza humana) que o homem esteja acima do homem, e ao menos há um motivo para repensar quando queremos colocar um ser humano acima do outro. Recordemos das palavras de Martin Luther King Jr. na Carta da Cadeia de Birmingham (1963), em que ele recorre à noção de lei natural para dizer (corretamente) que leis injustas não têm força de lei e não devem ser obedecidas.

Outro escritor cristão que expressa essa concepção mais platônica é, obviamente, Santo Agostinho, o qual, em sua Cidade de Deus, funde a crítica social apocalíptica ao idealismo platônico. Ele escreve (XVIII, 2):

“Estendida pela terra toda e nos mais diversos lugares, ligada pela comunhão da mesma natureza, a sociedade dos mortais divide-se com frequência contra si mesma e a parte que domina oprime a outra. Deve-se isso a que cada qual busca a própria utilidade e a própria cupidez e a que o bem que apetecem não é suficiente para ninguém nem para todos, por não ser o bem autêntico. Rende-se à vencedora a parte vencida, isto é, à dominação, preferindo qualquer tipo de segurança à liberdade.”

Aqui, Agostinho vê o poder político como, ao menos em parte, inerentemente opressor. Em termos que podem nos parecer uma crítica às sociedades modernas, Agostinho contempla uma realidade social movida por satisfação individualista, e, não sendo os recursos suficientes para todos, estabelece-se uma relação de dominação, de modo que a busca livre por satisfação termina na supressão da liberdade em nome da segurança. A sociedade aí está dividida; mesmo que ela tenha uma origem orgânica — “ligada pela comunhão da mesma natureza”, isto é, da natureza humana —, ela está em tensão.

É por isso que esses escritores cristãos não tinham dificuldade em ver problemas (e não-naturalidade) em instituições como a propriedade privada e, talvez numa proporção que nos parecerá insatisfatória, também à escravidão. Se os primeiros cristãos existiram inicialmente sob uma condição de hostilidade e parcial ilegalidade, mas também desde o começo estivessem ocupando espaços sociais que exigiam maior conformidade, seus olhos puderam se voltar mais facilmente para o que estava errado na sociedade romana, um tipo de cinismo forçado. Mesmo quando o império adere ao cristianismo, continua havendo a percepção de um hiato entre os ideais sociais e as realidades políticas.

O tipo aristotélico contempla as coisas de uma maneira diferente, profundamente orgânica. Talvez uma das melhores representações dessa concepção seja o “De Regno” de São Tomás de Aquino, no qual explica como a lei natural leva a humanidade a se agruparem e estabelecerem líderes sobre si. Nesse sentido, o pensamento Aristotélico não se propõe a corrigir as instituições, mas a explicá-las e justificá-las. Isso não significa que não haja um melhor (como na discussão entre os melhores regimes políticos), mas que não há uma maneira neutra e exterior de tratar as instituições. Embora isso crie certa tensão com o pensamento cristão e produza uma recepção apenas parcial (nunca desconectada do corretor neoplatônico), há certo “relativismo conservador” no aristotelismo: até mesmo a justiça natural (physikon dikaion) é de certo modo mutável, flexível, então ela se ajusta aos modelos sociais concretos.

De todo modo, no pensamento aristotélico, é natural que o homem esteja acima do homem. Mesmo São Tomás, que não abraça o aristotelismo acriticamente, deixa de lado as palavras dos Pais de que a propriedade privada tem origem (em parte) maligna e abraça os argumentos aristotélicos em favor de sua origem e manutenção. Na “Relectio sobre o Poder Civil”, Francisco de Vitória, escolástico espanhol contemporâneo de Lutero, reproduz o organicismo aristotélico:

“Havendo, pois, sido constituídas as sociedades humanas para esse fim, ou seja, para que uns levem as cargas dos outros, e sendo a sociedade civil, entre as sociedades, aquela em que com mais comodidade os homens se ajudam, segue-se que é a sociedade é, como diríamos, um convívio naturalíssimo e muito conveniente à natureza.”

Não quero sugerir que a recepção do aristotelismo político pela cristandade se resuma a conformismo e aceitação. O mundo do pensamento é mais complicado e, por mais que fechemos a boca, não fechamos os olhos. Afinal, o enxerto do aristotelismo se deu numa árvore platônica.

De todo modo, enquanto vê a sociedade política como mais natural, o aristotelismo talvez forneça aí um juízo mais acertado quanto aos fins naturais da sociedade. Francisco de Vitória nos diz, nessas palavras, que o fim da sociedade civil (como de todas as outras) é que “uns levem as cargas dos outros”. Recordemos aqui, por exemplo, as palavras dos reformadores de que o mandamento “Não furtarás” não apenas, pelo lado negativo, proíbe tirar o que é dos outros, mas exige um compromisso positivo em ajudar a prosperidade alheia. Isso é carregar os fardos alheios. Que distância em relação aos que veem a sociedade política como orientada principalmente ao fim da guerra entre os homens ou a manutenção da propriedade privada!

Essa teleologia política pode nos parecer pura propaganda conformista, se dissermos que a sociedade já o faz, sempre o faz, que “carregar os fardos uns dos outros” é um fim já alcançado, mas pode também, num reencontro entre platonismo e aristotelismo, ser visto como um objetivo a ser ainda buscado. Que belo fim!

Rev. Gyordano M. Brasilino

Caridade e Coerção

Reflexão sobre caridade, coerção e modernidade, a propósito de Tolstói.

Em sua famosa “Carta a um Hindu” (1908), Tolstói apresenta os termos gerais de uma narrativa interessante, ainda que não muito inovadora: ele trata parte da história política humana como um conflito entre a “lei do amor” (lei espiritual inerente à natureza humana e conhecida de todas as grandes religiões) e instituições políticas de coerção e violência (punições, prisões, execuções, torturas, guerras), marcada pela tirania de uma minoria sobre a maioria.

Nisso ele está em continuidade como que já havia escrito em “O Reino de Deus está dentro de vós” (1894), agora incluindo outras tradições religiosas (particularmente o hinduísmo). Por que a humanidade não percebeu a contradição entre a lei do amor e a coerção política? Segundo Tolstói, porque as superstições religiosas e depois as superstições científicas justificaram o recurso à violência. O que há de interessante na carta é que nela o romântico Tolstói se coloca também contra parte da modernidade (até mesmo contra a teoria atômica) e contra a ilusão de que a ciência traria ordem ao mundo.

A resposta, para Tolstói, estaria na lei inerente à natureza humana. Por isso, há na carta elementos que prenunciam a pós-modernidade, mas também há um essencialismo de fundo, o Rousseau em Tolstói. De todo modo, se Tolstói via contradição entre a lei do amor e a violência, a saída não seria a violência libertária, mas simplesmente o recurso à lei do amor, com o abandono das superstições. Simples, não? Imagine all the people living for today.

Essa tensão entre amor e opressão na política não é criação de Tolstói, mas tem longa história, e pode mesmo ser vista em Santo Agostinho, o qual, contudo, soube distinguir a Cidade de Deus e a cidade dos homens, em suas aproximações e afastamentos. (Por isso, há um considerável elemento “anárquico” em Agostinho, também.)

Isso mostra aquilo que eu considero como a heresia fundamental do tolstoísmo: a sua incapacidade de perceber o elemento caritativo na política. Ou, dito de outro modo, e em termos muito claros: a necessidade de defender a lei da caridade através de alguma forma coerção. Não a tortura (que corrompe o torturador e o torturado), nem a invasão a outras nações, mas realismo. Tolstói foi traído pelo individualismo romântico.

Ou talvez o melhor seria dizer que essa é a hipocrisia fundamental, ou a ingenuidade cordial, ou mesmo a desatenção essencial. Pois, se é verdade que a política moderna procurou expulsar a influência religiosa explícita, e gradativamente trocou a ética transcendente pelo positivismo e pelo constitucionalismo (que nunca se divorcia totalmente da ética), não conseguiu desfazer a conexão com o princípio do amor: quando proibimos que se mate, quando punimos a incitação a delito, quando limitamos os danos causados sob o primado da liberdade de expressão, nós agimos por uma preocupação caritativa (mesmo que oblíqua) para com o ser humano igual a nós. De fato, quando punimos torturadores, é à lei da caridade que prestamos homenagem.

Digo que há ingenuidade no tolstoísmo, e mesmo conivência com o mal, porque, na verdade, o motivo fundamental pelo qual não há ordem política sem violência, é este: há pessoas que, mesmo que não sejam espiritualmente irredimíveis, são politicamente irreformáveis, são inobjetificáveis, estão além de toda psiquiatria repressiva, de toda pedagogia libertadora, de toda negociação ao nosso alcance. Nunca devemos presumir que estamos diante dessas pessoas, a caridade nos obriga a dar a todos a chance de mudança, e isso certamente nos inspirará a condições distintas e humanas no tratamento dos condenados criminalmente. Num mundo em que pessoas assim existem, a caridade exige que protejamos aqueles que podem estar sob sua mira.

Espírito e espírito

As traduções bíblicas não são neutras! Você sempre recebe a doutrina do tradutor junto.

Uma questão que é discutida há bastante tempo pelos tradutores da Bíblia e exegetas, mas que é praticamente desconhecida da maioria dos leitores, é o modo como traduzimos “espírito” ou “Espírito” no Novo Testamento e particularmente nas cartas de São Paulo.

Eu colocaria o problema da seguinte maneira: o texto bíblico grego não nos dá, em todos os casos, razões gramaticais suficientes para distinguir entre “espírito” (um espírito humano ou qualidade sua) e “Espírito” (o Espírito Divino). Ademais, a maneira como vertemos o texto normalmente é guiada por preocupações dogmáticas que não estavam em relevo na época, quanto à Santíssima Trindade.

Um trecho particularmente significativo é Romanos 8, onde encontramos, lado a lado, momentos que não podem ser vertidos como “espírito” (humano) e outros que não podem ser vertidos como “Espírito” (divino), e vários, entre eles, que podem ser vertidos das duas maneiras, mudando a maneira como lemos o capítulo. Paulo não parecia particularmente preocupado em deixar clara a diferença, inclusive porque ele não presumia nossas discussões sobre natureza e graça.

Um exemplo significativo de texto gramaticalmente ambíguo (vv. 5–6):

☩ “Porque os que são conforme a carne cogitam (phronousin) das coisas da carne; mas os que são conforme o espírito, cogitam das coisas do espírito. Porque a cogitação (phronēma) da carne é morte, mas a do espírito é vida e paz.

Se vertermos como “o Espírito”, a dicotomia do texto é entre o humano e o divino, mas, se vertermos como “espírito”, a dicotomia é entre duas dimensões da própria pessoa humana. Exatamente o mesmo aparece em Gl 5:17, texto que apresenta esse conflito entre carne e E/espírito.

Assim, se escolhemos “Espírito”, temos uma leitura mais agostiniana; se escolhemos “espírito”, uma leitura mais platônica — e curiosamente mais judaica também. Na segunda leitura, o Espírito Divino vem (no contexto) para solucionar uma cisão entre duas partes da natureza humana. Um dos motivos pelos quais essa leitura é particularmente interessante é o modo como ela se mostra como perfeita continuidade para a cisão que aparece no capítulo anterior (vv. 21–23):

☩ “Então, ao querer fazer o bem, encontro a lei de que o mal reside em mim. Porque, no tocante ao homem interior, tenho prazer na lei de Deus; mas vejo, nos meus membros, outra lei que, guerreando contra a lei da minha mente, me faz prisioneiro da lei do pecado que está nos meus membros.”

Rev. Gyordano M. Brasilino

O que Tiago de fato ensina?

A Carta de São Tiago é uma pérola no Novo Testamento. Ela tem ao mesmo tempo um conteúdo evangélico (em íntima ligação com a tradição sinótica), um teor sapiencial frequentemente observado pelos comentaristas, e um vigor profético e apocalíptico acentuado. Longe de ser uma epístola de palha, é uma joia no tesouro de Deus, uma flor no jardim do Senhor. Na época da Reforma Protestante, essa carta foi tema de controvérsias, havendo quem, como Lutero, não lhe valorizasse totalmente. Isso envolvia um debate sobre a compatibilidade entre a doutrina da justificação pelas obras em Tiago e a doutrina da justificação pela fé em Paulo.

O trecho relevante é Tiago 2:14-26. Sobre a justificação, o que Tiago ensina? O que Tiago não ensina?

Antes de mais nada, qualquer que seja a interpretação proposta, é errada qualquer leitura que simplesmente negue o texto. Tiago ensina que Abraão foi “justificado pelas obras” (2:21); a menos que se demonstre que ele foi irônico ou algo do tipo — hipótese descartada pela própria intenção do contexto —, erra qualquer interpretação que ensine que, na verdade, Tiago quis ensinar que não há justificação por obras. Então a leitura deve começar pelo mais básico: não negar o que está no texto, não usar nenhuma interpretação que domestique ou neutralize o texto. Também de nada adianta repetir obviedades como “Tiago ensinava uma fé prática”, que não ajudam em nada a entender o texto. Tiago falou em justificação pelas obras; o que ele quis dizer?

Uma das interpretações mais comuns, talvez a mais comum entre os protestantes, é a de que Tiago quis dizer que a nossa justificação diante dos homens se dá por obras, ou seja, as pessoas ao nosso redor olham nosso comportamento e nos declaram justos ou injustos com base na nossa ação. Assim, a doutrina de Tiago 2:14-26 seria de que precisamos mostrar nossas boas obras a outras pessoas, assim nos tornamos justo diante do mundo (coram mundo). Isso seria diferente da justificação diante de Deus (coram deo), que não levaria em conta as obras obras.

Pretendo mostrar por que eu acredito que essa interpretação não faz nenhum sentido, e, na verdade, não tem relação com o que o texto de fato comunica. Os motivos são principalmente cinco:

1. Tiago fala em salvação. Ele pergunta, no primeiro versículo do trecho em discussão: “Porventura a fé [sem obras] pode salvá-lo?” (2:14). O que Tiago discute no texto é salvação, isto é, de como a fé sem obras não pode nos salvar, e ele o faz inicialmente na forma de uma pergunta retórica. Como ele pergunta “Meus irmãos, que aproveita se alguém disser que tem fé, e não tiver as obras?”, quer dizer, com isso, que a fé sem obras não tem proveito.

De fato, Tiago menciona a salvação em outros trechos da epístola, sempre de uma maneira bastante familiar à linguagem cristã, como a salvação da alma (e do corpo), em relação à condenação (e doença): “a palavra em vós enxertada, a qual pode salvar as vossas almas” (1:21), “legislador que pode salvar e destruir” (4:12), “a oração da fé salvará o doente” (5:15), “aquele que fizer converter do erro do seu caminho um pecador, salvará da morte uma alma” (5:20). No trecho de Tg 2:13-14, fala-se sobre a misericórdia que devemos exercer e, em seguida, estamos falando de salvação; coisa semelhante ocorre em Tg 4:12. Essa conexão de ideias se enquadra muito bem na tradição sinótica que Tiago, de certo modo, representa: os misericordiosos alcançam misericórdia.

Ora, a salvação é algo que Deus realiza em nós. Mesmo que supuséssemos que a opinião alheia sobre nossas obras é de algum modo importante na nossa salvação, essa ficção não teria nenhuma relação com o que Tiago de fato ensina: para Tiago, a fé sem obras não salva.

2. O exemplo de Abraão não é de justiça diante dos homens. Para esclarecer seu ensino, Tiago dá dois exemplos interessantes, retirados do Antigo Testamento: o patriarca Abraão (no sacrifício do seu filho) e a prostituta Raabe (quando acolheu os espias israelitas em Jericó). Alguém poderia argumentar que o caso de Raabe se encaixa na justificação diante dos homens: ela teve uma atitude diante dos homens que protegeu da destruição que eles trouxeram à cidade.

Mas essa tese precisa caber nos dois exemplos, e ela simplesmente não cabe no exemplo de Abraão. Segundo Tiago, Abraão foi justificado pelas obras “quando ofereceu sobre o altar o seu filho Isaque” (2:21). Tiago não diz apenas que ela aconteceu, mas quando aconteceu: aconteceu quando Abraão estava com Isaque apenas, diante de Deus, oferecendo um sacrifício a Deus. No contexto, por ter Abraão passado por essa obra, as promessas de Deus lhe foram confirmadas (Gn 22:16-18). Ou seja, Abraão teve a atitude correta diante de Deus, para que recebesse certas promessas de Deus. Essa é a justificação pelas obras. Ela é diante de Deus, não diante dos homens. Ele não procurou ser justificado diante dos homens e não foi isso que ele recebeu.

Para entender por que Tiago dá esses dois exemplos, basta compará-los e perceber o que ele têm em comum: ambos são casos em que pessoas entraram no plano divino de algum modo, por suas ações, Raabe sendo acolhida porque acolheu, Abraão recebendo porque entregou, numa lógica profética (Ob 15).

Nos dois casos, há algo mais: em ambos, se diz que essas pessoas foram justificadas pelas obras, sem indicar por quem elas foram justificadas. Esse silêncio nos diz muito, pois se enquadra num fenômeno da linguagem bíblica conhecido como “passivo divino”, que ocorre exatamente quando o autor bíblico usa uma construção na voz passiva, da qual Deus é, implicitamente, o agente. De fato, o contexto nos provê um exemplo: é a mesma estrutura pela qual percebemos que, em Tg 2:23, “isto” que foi “imputado por justiça” (voz passiva), foi imputador por Deus, ou seja, deus é o agente da “imputação”, mesmo que o texto não o indique diretamente. (Não enfatizarei esse traço, já que certa literatura recente questiona o passivum divinum.)

3. Tiago fala de cooperação ente fé e obras (2:22), não de um tipo de justiça pela fé e outro pelas obras. Ensina, literalmente, que a fé cooperou (synērgei) com as obras e que as a fé foi aperfeiçoada ou consumada (eteleiōthē) pelas obras. Aqui há um trabalho em conjunto entre fé e obras, que ocorre, como vimos, no contexto da salvação; essas palavras não fariam sentido se a fé e as obra estivessem em planos totalmente diferentes (um com Deus e o outro com o próximo). De fato, as palavras de Deus a Abraão têm precisamente esse teor. Tiago não prega um tipo de justiça pela fé e outro pelas obras, mas uma justiça que envolve fé e obras. (Isso não significa que a fé e obras tenham necessariamente o mesmo papel, como veremos.)

4. O mais óbvio de tudo: não devemos buscar ser justificados pelos homens. Nossas boas obras devem ser reconhecidas, mas devemos ocultá-las tanto quanto possível. Buscar “justificação pelas obras” é mero exibicionismo; seria ridículo se a exortação de Tiago nos incentivasse a sermos louvados por outras pessoas. Mesmo quando Cristo ensina que as boas obras dos cristãos devem ser vistas por outras pessoas, conduzindo-as a adorar a Deus (Mt 5:16), isso não se dá num contexto em que nos esforçamos para sermos bem vistos pelos outros; contra isso, Cristo adverte que nossas obras de justiça, nossos jejuns e orações devem ser feitos, tanto quanto possível, em segredo (Mt 6). Quando deixamos de fazer más obras, naturalmente somos notados, mas isso não significa que devamos fazer boas obras para sermos vistos e elogiados por outras pessoas.

5. De fato, Tiago jamais diz que a justificação se dá diante dos homens. Em nenhum momento ele deixa claro que isso está em jogo. No v. 18, ele chega a dizer “mostra-me a tua fé sem as tuas obras, e eu te mostrarei a minha fé pelas minhas obras”, mas em nenhum momento ensina que a justificação pelas obras consiste nisso, ou seja, mostrar às outras pessoas a fé pelas obras.

Um outro elemento importante: Tiago ensina que a fé sem obras é morta, não que ela é inexistente. Para ele, a fé sem obras existe, é como a fé dos demônios.

Em síntese: a fé sem obras é morta; a fé sem obras não salva; através das obras, as promessas divinas são cumpridas; através das obras, Deus nos justifica. Basicamente repito o que o próprio texto declara, e essa leitura simples do texto é aquilo que, durante muito tempo, foi visto como coisa clara. É o que ensina Santo Agostinho, o mais conhecido pai da Igreja na discussão da doutrina da graça. Ele escreveu, por exemplo:

Sem dúvida, isso atemoriza saudavelmente, para que os fiéis não suponham que por sua fé somente, mesmo vivendo nesses males, podem se salvar; o apóstolo Tiago, contra tal pensamento, reclamando e dizendo com voz claríssima, dizendo “Se alguém disser que tem fé e não tiver obras, sua fé será capaz de salvá-lo?”.
— Santo Agostinho sobre São Tiago | De Continentia 14,30

A grande preocupação das pessoas, no entanto, quando propõem uma leitura tão descabida de Tiago 2:14-26, é que não se dê a Tiago uma leitura que contradiga Paulo. Mas será que há mesmo essa contradição? Se, como fazia Santo Agostinho, identificarmos a fé salvífica de Paulo, a “fé que opera em amor” (Gl 5:6), com a fé viva de Tiago, não há qualquer contradição. A fé salvífica é a fé viva, a fé viva é a fé operante. Podemos mesmo dizer que a salvação é pela fé somente, desde que essa fé somente não seja a fé sem obras (que Tiago critica), mas a fé que opera em amor (como Paulo ensina).

O que ocorre é que há certa leitura antinomista de Paulo, para a qual as obras não têm lugar na salvação. Tal leitura necessariamente contradiz o que se ensina em Tiago 2:14. A única leitura de Paulo coerente com o ensino de Tiago é a de que as boas obras têm um papel na salvação, e não é preciso ir muito longe para encontrá-la, como quando Paulo fala da necessidade de semear no Espírito, eliminar as obras do corpo e fazer o bem aos da família da fé para herdar a vida eterna (Rm 8:13; Gl 6:7-10), ou quando ensina que o destino eterno é determinado pelas boas obras (Rm 2:4-13). Essa é uma leitura de Paulo que concorda não só com Tiago, mas com os Evangelhos e com o restante do Novo Testamento.

Nesse sentido, penso que não há maneira melhor de entender essas leituras senão através da noção de dupla justificação: há uma primeira justificação, que não resulta de nossas boas obras, e que nos prepara para sermos herdeiros da vida eterna (Tt 3:4-7); mas há também um juízo final, segundo nossas boas obras, que discerne em nós o fruto da graça recebida. Nesse sentido, seria válido falar em dois papeis diferentes, um para a fé (recebendo as promessas divinas) e outro para as obras (agindo em conformidade com essas promessas). Há um esforço por entrar pela porta estreita do reino.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Santo Agostinho sobre o Júbilo

St. Augustine of Hippo – Mariners' Church of Detroit

Canta com júbilo. Isto é cantar bem a Deus, cantar com júbilo. O que é cantar com júbilo? Entender, não podendo explicar com palavras o que canta o coração. De fato, aqueles que cantam, seja na messe, seja na vinha, seja em qualquer outro trabalho com fervor, quando começam exultar de alegria nas palavras dos cânticos, ficam como cheios de tanta alegria a ponto de não poderem se expressar por palavras, se apartam das sílabas das palavras e se entregam ao som de júbilo. O júbilo é como um som que significa o coração parindo aquilo que não é capaz de dizer. E a quem agrada esse júbilo, senão ao Deus inefável?
De fato, é inefável o que não pode dizer; e se não podes dizê-lo, e não te podes calar, que resta senão que tu jubiles, para que te alegre o teu coração sem palavras, e a amplitude imensa das alegrias não se limite pelas sílabas?”
—  Enarrationes in Psalmos, In Eumdem Psalmum 32, Enarratio II

“Quem jubila não diz diz palavras, mas sons de alegria sem palavras. Essa é a voz de uma alma inundada de alegria, que exprime, como pode, o seu sentimento, não compreendendo o significado. Alegrando-se o homem em sua exultação, por certas palavras que não pode explicar e compreender, irrompe em sons de exultação sem palavras.”
— Enarrationes in Psalmos, In Psalmum 99

“Então, da boca de homens e mulheres brotou explosão de júbilo, e suas vozes, metade contentamento, metade lágrimas, prolongaram-se indefinidamente. (…) Gritavam em louvor a Deus não palavras, mas vozes sem sentido, tão fortes, que nossos ouvidos mal podiam aguentá-las.”
— Cidade de Deus, XXII, VIII, 22

A Presença de Cristo na Eucaristia

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Quando se discute sobre a Presença de Cristo no Sacramento, é comum que o debate se limite a uma exposição das diferenças entre certas teorias clássicas. Fala-se em favor do memorialismo ou mero simbolismo, da presença espiritual, da presença corporal ou física de Cristo no sacramento, como que justificando certa posição e, indiretamente, legitimando as diferenças entre os cristãos, reforçando as trincheiras. Continue lendo “A Presença de Cristo na Eucaristia”

Solus Paulus: a Vida Eterna como Dom e como Fruto

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Em verdade, em verdade vos digo: quem crê em mim tem a vida eterna. João 6:47

Em um sentido, Cristo sozinho realiza a condição para nossa justificação e salvação. Em outro sentido, a fé é condição de nossa justificação, e, em outro sentido, outras qualificações e atos também são condições da salvação e justificação. Jonathan Edwards, Justification by Faith Alone

Os ensinos das Sagradas Escrituras resistem a simplificações. O próprio Deus é infinitamente imanente e infinitamente transcendente às criaturas, sendo igualmente aquele em quem “vivemos, e nos movemos, e existimos” e aquele que “habita na luz inacessível”. Para nós, essas realidades são paradoxais, misteriosas e desconcertantes. O Deus revelado não é desconhecido apenas, mas desconhecido de maneiras que sequer podemos imaginar. Por outro lado, como a criatura reflete o Ato Criador, por toda parte a névoa do Altíssimo se faz notar. Nada há do real que possamos compreender inteiramente. Continue lendo “Solus Paulus: a Vida Eterna como Dom e como Fruto”

A Doutrina Anglicana dos Sacramentos

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“Em nenhuma religião, seja verdadeira, seja falsa, se pode juntar os homens sem algum consórcio de sinais ou sacramentos visíveis.” Santo Agostinho, Contra Faustum 19.11

Gosto de dizer, fazendo graça e com um fundo de verdade, que eu me tornei anglicano por causa do batismo de crianças, rejeitado por tantos evangélicos. Poucas práticas da Igreja mostram tanta beleza na simplicidade e tanta verdade evangélica quanto o amor de Cristo que ali se lança sobre os pequeninos. Todo o Evangelho está ali, implícito ou explícito: o amor de Deus pela criação, a queda da natureza humana, a universalidade do pecado, a necessidade da graça regeneradora, a iniciativa divina na salvação, a Cruz e a Ressurreição, a presença da Igreja, a Santíssima Trindade. Se alguém tem dúvida sobre o princípio Sola Gratia, olhe para o batismo das crianças, que nada contribuem para a própria salvação, antes tudo recebem. Afinal, elas são um grande símbolo do Reino. Continue lendo “A Doutrina Anglicana dos Sacramentos”