Na história da teologia cristã, duas concepções políticas ideais se entrelaçaram e competiram de maneira mais ou menos consciente, uma de tipo mais platônico e a outra mais aristotélica. A diferença entre essas duas concepções está no lugar que a lei natural ocupa no pensamento político: ela serve para criticar as instituições existentes (o status quo) ou para explicá-las e fundamentá-las? Ela serve à mudança ou à manutenção?
Essas duas perspectivas encontram raízes na própria Escritura Sagrada. Por um lado, existe a tendência de exigir dos cristãos obediência às autoridades civis através de um reconhecimento de sua origem divina, como nas famosas palavras do Senhor a Pilatos no Quarto Evangelho ou no trecho também célebre da Carta aos Romanos. Mas também há um elemento crítico, nos trechos mais apocalípticos das Escrituras, como no “entre vós não é assim” (Mc 10:42-44) ou no ensino, de sabor cínico (no sentido filosófico), de que o motivo pelo qual os cristãos devem pagar impostos é não causar escândalo (Mt 17:25-27), ou ainda, magistralmente, no Apocalipse de São João, no qual o poder político imperial da Besta tem raiz demoníaca.
O primeiro tipo percebe um maior descompasso entre a natureza e as relações sociais existentes. Ontem eu citei o trecho em que São Gregório Magno escreveu na “Regra Pastoral” (II.6): “O homem, por sua natureza, foi colocado acima dos animais irracionais e não acima dos outros homens; por isso, lhe é dito que seja temido pelos animais, e não pelos homens. É ensoberbecer-se contra a natureza o querer ser temido por um seu igual.”
O “igualitarismo” comunicado nessas palavras, que olha para a natureza humana além e acima das convenções sociais, nos leva a perceber esses problemas de maneira mais atenciosa. Nessa concepção, não é natural (no sentido de que não emerge diretamente da natureza humana) que o homem esteja acima do homem, e ao menos há um motivo para repensar quando queremos colocar um ser humano acima do outro. Recordemos das palavras de Martin Luther King Jr. na Carta da Cadeia de Birmingham (1963), em que ele recorre à noção de lei natural para dizer (corretamente) que leis injustas não têm força de lei e não devem ser obedecidas.
Outro escritor cristão que expressa essa concepção mais platônica é, obviamente, Santo Agostinho, o qual, em sua Cidade de Deus, funde a crítica social apocalíptica ao idealismo platônico. Ele escreve (XVIII, 2):
“Estendida pela terra toda e nos mais diversos lugares, ligada pela comunhão da mesma natureza, a sociedade dos mortais divide-se com frequência contra si mesma e a parte que domina oprime a outra. Deve-se isso a que cada qual busca a própria utilidade e a própria cupidez e a que o bem que apetecem não é suficiente para ninguém nem para todos, por não ser o bem autêntico. Rende-se à vencedora a parte vencida, isto é, à dominação, preferindo qualquer tipo de segurança à liberdade.”
Aqui, Agostinho vê o poder político como, ao menos em parte, inerentemente opressor. Em termos que podem nos parecer uma crítica às sociedades modernas, Agostinho contempla uma realidade social movida por satisfação individualista, e, não sendo os recursos suficientes para todos, estabelece-se uma relação de dominação, de modo que a busca livre por satisfação termina na supressão da liberdade em nome da segurança. A sociedade aí está dividida; mesmo que ela tenha uma origem orgânica — “ligada pela comunhão da mesma natureza”, isto é, da natureza humana —, ela está em tensão.
É por isso que esses escritores cristãos não tinham dificuldade em ver problemas (e não-naturalidade) em instituições como a propriedade privada e, talvez numa proporção que nos parecerá insatisfatória, também à escravidão. Se os primeiros cristãos existiram inicialmente sob uma condição de hostilidade e parcial ilegalidade, mas também desde o começo estivessem ocupando espaços sociais que exigiam maior conformidade, seus olhos puderam se voltar mais facilmente para o que estava errado na sociedade romana, um tipo de cinismo forçado. Mesmo quando o império adere ao cristianismo, continua havendo a percepção de um hiato entre os ideais sociais e as realidades políticas.
O tipo aristotélico contempla as coisas de uma maneira diferente, profundamente orgânica. Talvez uma das melhores representações dessa concepção seja o “De Regno” de São Tomás de Aquino, no qual explica como a lei natural leva a humanidade a se agruparem e estabelecerem líderes sobre si. Nesse sentido, o pensamento Aristotélico não se propõe a corrigir as instituições, mas a explicá-las e justificá-las. Isso não significa que não haja um melhor (como na discussão entre os melhores regimes políticos), mas que não há uma maneira neutra e exterior de tratar as instituições. Embora isso crie certa tensão com o pensamento cristão e produza uma recepção apenas parcial (nunca desconectada do corretor neoplatônico), há certo “relativismo conservador” no aristotelismo: até mesmo a justiça natural (physikon dikaion) é de certo modo mutável, flexível, então ela se ajusta aos modelos sociais concretos.
De todo modo, no pensamento aristotélico, é natural que o homem esteja acima do homem. Mesmo São Tomás, que não abraça o aristotelismo acriticamente, deixa de lado as palavras dos Pais de que a propriedade privada tem origem (em parte) maligna e abraça os argumentos aristotélicos em favor de sua origem e manutenção. Na “Relectio sobre o Poder Civil”, Francisco de Vitória, escolástico espanhol contemporâneo de Lutero, reproduz o organicismo aristotélico:
“Havendo, pois, sido constituídas as sociedades humanas para esse fim, ou seja, para que uns levem as cargas dos outros, e sendo a sociedade civil, entre as sociedades, aquela em que com mais comodidade os homens se ajudam, segue-se que é a sociedade é, como diríamos, um convívio naturalíssimo e muito conveniente à natureza.”
Não quero sugerir que a recepção do aristotelismo político pela cristandade se resuma a conformismo e aceitação. O mundo do pensamento é mais complicado e, por mais que fechemos a boca, não fechamos os olhos. Afinal, o enxerto do aristotelismo se deu numa árvore platônica.
De todo modo, enquanto vê a sociedade política como mais natural, o aristotelismo talvez forneça aí um juízo mais acertado quanto aos fins naturais da sociedade. Francisco de Vitória nos diz, nessas palavras, que o fim da sociedade civil (como de todas as outras) é que “uns levem as cargas dos outros”. Recordemos aqui, por exemplo, as palavras dos reformadores de que o mandamento “Não furtarás” não apenas, pelo lado negativo, proíbe tirar o que é dos outros, mas exige um compromisso positivo em ajudar a prosperidade alheia. Isso é carregar os fardos alheios. Que distância em relação aos que veem a sociedade política como orientada principalmente ao fim da guerra entre os homens ou a manutenção da propriedade privada!
Essa teleologia política pode nos parecer pura propaganda conformista, se dissermos que a sociedade já o faz, sempre o faz, que “carregar os fardos uns dos outros” é um fim já alcançado, mas pode também, num reencontro entre platonismo e aristotelismo, ser visto como um objetivo a ser ainda buscado. Que belo fim!
Rev. Gyordano M. Brasilino