Deus é o Pai de todos


Há uma regra, surpreendente e lamentável, segundo a qual o erro é sempre mais facilmente pronunciado de que a verdade. Pense-se, por exemplo, em como a heresia ariana é mais fácil que o dogma Trinitário, a doutrina de Pelágio é mais fácil que a sua condenação, ou como o apolinarismo é que mais facilmente pregado que a doutrina de Éfeso.

O erro é fácil. A verdade é mais difícil.

O erro se reveste de palavras mais simples e adere mais simplesmente a uma dada verdade, à exclusão de outras verdade igualmente importantes. É por isso que o erro conquista tão facilmente os incautos, porque eles parecem entendê-lo melhor. O triunfo da verdade total não está na capacidade de chegar mais facilmente a um enunciado preciso e rápido. Ela é paciente o suficiente para abranger tudo, é paciente para suportar a demora, sem deixar de fora nada daquilo que o erro esconde.

É assim com o caso da paternidade universal de Deus. Eu tenho bastante repulsa à linguagem sectária que é corrente no mundo evangélico, especialmente entre os que conhecem menos as Escrituras. Dizem que somente os “crentes” são filhos de Deus.

A reação, sempre que falo sobre isso, é a mesma: citam dois ou três versículos da Bíblia que parecem ensinar que somente algumas pessoas são filhas de Deus, ignorando por completo todos os demais, mais numerosos e bastante diretos, que ensinam ou dão a entender o inverso.

Afinal, Deus é não é o “Pai dos espíritos” (Hb 12:9)? Não é o “Pai de todos” (Ef 4:6), uma expressão corrente no mundo grego-romano e judaico da época para indicar essa paternidade universal? Não é dele que toma nome toda linhagem nos céus e na terra (Ef 3:15)? Não somos todos “geração de Deus“, como disse o Paulo lucano citando um autor pagão (At 17:28-29)? Não era Adão, nosso progenitor segundo a história sagrada, filho de Deus (Lc 3:38)? Não é Deus “pai de órfãos” (Sl 68:5)? Cristo falou a multidões inteiras, de pessoas de condições espirituais diferentes (e que ele conhecia), sobre o “vosso Pai celestial”.

As pessoas não entendem bem as declarações, presentes nos corpus paulino e joanino, que limitam a filiação divina. Se essas declarações são tomadas de maneira literal e unilateral, as pessoas para quem Cristo pregava não seriam filhas de Deus, pois, segundo Paulo, filho de Deus é quem tem o “Espírito Santo” (Rm 8:14-17; Gl 4:5-7), e elas não o tinham ainda. (Não devemos exagerar aqui a leitura do texto paulino com as premissas, verdadeiras mas anacrônicas, de Constantinopla e Agostinho. O “Espírito” ou “espírito” em suas cartas pode significar desde uma mentalidade divina até o próprio Deus.) As pessoas sob da antiga aliança (que não era ainda o ministério do Espírito) não poderiam ser filhas de Deus.

Na verdade, esse tipo de confusão é o resultado de ler as Escrituras sem sensibilidade literária, sem atenção a ironias e sarcasmos, a paradoxos e exortações, a antíteses hiperbólicas, como se tudo fosse declaração doutrinal unívoca.

Ocorre que, como sabe qualquer pessoa minimamente instruída em teologia, nossa linguagem doutrinal é analógica: quando dizemos que somos filhos de Deus, isso não tem exatamente o mesmo sentido com que dizemos que Jesus é filho de Maria, ou com que eu sou filho dos meus pais. Dizemos que somos filhos de Deus por semelhança: há uma relação real entre nós e Deus, e a essa relação damos o nome de “filiação” por semelhança para com a relação com que um filho humano tem para com o seu pai.

Mas onde há semelhanças, há diferenças, e essas diferenças podem ser maiores ou menores, e portanto essa filiação comporta graus de semelhança, em “saltos qualitativos”. É por isso que, tendo já falado e continuando a falar várias vezes sobre “vosso Pai” (Mt 5:16,48 etc.), Cristo nos desafia: para que sejamos filhos do nosso Pai — ele já é nosso Pai, mas nós precisamos nos tornar seus filhos! —, precisamos ser misericordiosos como ele (Mt 5:44-45). Esse não é o único momento em que a filiação é relativizada, Cristo também o faz com os “filhos de Abraão”, que, segundo ele, não são filhos de Abraão.

Ou seja, todos são filhos de Deus, mas alguns vivem como filhos de fato, e outros vivem como escravos, destituídos da filiação que é sua. Quem o diz não sou eu, mas o próprio Paulo:

“Digo, pois, que, durante o tempo em que o herdeiro é menor, em nada difere de escravo, posto que é ele senhor de tudo. Mas está sob tutores e curadores até ao tempo predeterminado pelo pai. Assim, também nós, quando éramos menores, estávamos servilmente sujeitos aos rudimentos do mundo; vindo, porém, a plenitude do tempo, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei, para resgatar os que estavam sob a lei, a fim de que recebêssemos a adoção de filhos.”

Gálatas 4:1-5

Assim, tornar-se filho de Deus não é tornar-se o que não se é, mas assumir uma identidade que é universal, porque a paternidade de Deus é universal.

Rev. Gyordano Montenegro Brasilino

O que é ser um fariseu?

Há uns dias, eu vi alguém dizer que Cristo não condenou a doutrina dos fariseus, somente a sua hipocrisia. Bom, segundo o Evangelho de São Mateus, Cristo condenou “a doutrina dos fariseus” (Mt 16:12).

É claro que ele não condenou tudo no que os fariseus acreditavam — eles, assim como nós, acreditavam na ressurreição, acreditavam na vida eterna, acreditavam nas Escrituras Sagradas dos profetas. Mas havia algo em sua doutrina que melava tudo. O que nos detém aqui não é um retrato histórico detalhado dos fariseus, mas o seu retrato canônico.

Quando vemos o retrato dos fariseus nos evangelhos, há um traço em comum, condenado por Cristo: sua incapacidade de conectar, na doutrina, o amor a Deus ao amor ao próximo. Essa era uma das ênfases do ensinamento de Cristo, segundo o qual nossas ofertas a Deus só terão valor quando procurarmos o perdão do irmão (Mt 5:23-24).

Assim, em Mateus 9:11-13, os fariseus reprovam a atitude de Cristo de comer com pecadores, e Cristo apela para o dito profético: “Misericórdia quero, e não sacrifício”. Em outras palavras: o maior gesto de adoração a Deus é a misericórdia. Os fariseus sabiam, muito bem, que as esmolas eram como sacrifícios e tinham por recompensa o perdão divino, um ensinamento judaico onipresente no período do Segundo Templo e no rabinato posterior. Mas faltava reformar toda a sua prática religiosa à luz da verdade fundamental enunciada por Cristo.

Em Marcos 7, os fariseus reprovam os discípulos de Cristo por comerem com “mãos impuras”. Segundo Cristo, eles usavam o cumprimento de uma obrigação religiosa para com Deus (a oferta) para suprimir uma obrigação piedosa para com os pais (a honra), dispensando um mandamento menor (a honra aos pais) através de um mandamento maior (a adoração a Deus), mas somente porque sua tradição lhes ensinava assim. Segundo Cristo, eles faziam “outras coisas semelhantes” (v. 13). Por que Cristo dá justamente essa resposta, se o assunto era a pureza das mãos? Porque, mais uma vez, o assunto da pureza das mãos revelava a desconexão entre o amor a Deus e o amor ao próximo.

Em Mateus 23:23-24, Cristo os reprova por prestarem culto a Deus através das mínimas coisas — uma prova de sua meticulosidade, detalhamento, zelo —, mas esqueciam as mais importantes: “a justiça, a misericórdia e a fidelidade”.

Na famosa Parábola do Fariseu e do Publicano (Lc 18:9-14), o fariseu é retratado como alguém de religião eloquente, que faz uma oração que todos nós aprendemos a fazer, de um sabor espiritual agostiniano: dá graças a Deus por sua vida espiritual, pelo que tem, pelo que vive. Mas essas palavras vêm, desde o começo, misturadas com o veneno do julgamento: “não sou como os demais homens”. Seu culto a Deus consistia em desprezo à humanidade.

Assim como nós, os fariseus sabiam que os mandamentos não eram todos iguais, que alguns mandamentos eram mais importantes do que outros. Mas eles pensavam como se um mandamento maior pudesse ser motivo para derrogar o menor, como se o zelo extremo para com Deus pudesse justificar um desprezo para com o próximo. O farisaísmo é uma “heresia” sobre a hierarquia dos mandamentos de Deus.

Até hoje, o espírito farisaico sobrevive entre os cristãos.

Sobre o Nacionalismo, mais uma vez

Eu gosto de conservadores nacionalistas como Yoram Hazony. Eles me parecem sempre muito cândidos — são como Rousseau transposto para as relações internacionais: no começo havia a nação pura e independente, então ela é corrompida pelos poderes imperialistas da lei internacional. (É difícil conceber a nação sem o império, mas essa é outra história.)

Hazony, judeu e também biblista, faz uma leitura interessante das Escrituras (o “Antigo Testamento”). Ele observa que o Deus de Israel é o primeiro Deus anti-imperialista de que se tem notícia. Não é difícil elaborar a tese. Temos uma narrativa de uma nação construída a partir de uma família, a defesa das fronteiras (supostamente sem um discurso de expansão), o estímulo do heroísmo patriótico, a honra aos pais, o amor pelos compatrícios e ódio pelos inimigos da nação (como os amonitas e egípcios), e não há um projeto claro de impor a outros povos a lei e o culto de Israel (e.g. a ideia “antipluralista” do monoteísmo).

Em suma, há um intenso discurso de “afinidade” e “lealdade” que dá substância ao nacionalismo como doutrina política. Isso não significa automaticamente o desprezo pelos estrangeiros, que muitas vezes são protegidos pelos profetas e pela tradição deuteronômica; há espaço para empatia e hospitalidade (“amareis o estrangeiro, pois fostes estrangeiros na terra do Egito”). Tudo isso é relevante.

Mas, acrescento agora, esse discurso não é totalmente uniforme, e podemos ver, sim, em alguns lugares do AT, intimações de um pensamento imperial (como a declaração, do Terceiro Isaías, de que “os filhos dos estrangeiros edificarão os teus muros, e os seus reis te servirão”, ou as visões apocalípticas de Daniel).

A coisa muda muito no Novo Testamento, e aquilo que era secundário no AT se torna principal. O evangelho pode ser visto como a transcendência da afinidade, não no sentido de que a afinidade em si seja simplesmente abandonada ou rejeitada em nome de algo melhor — essa seria uma leitura marcionita, antissemítica —, mas de que a própria afinidade transcende os limites nacionais.

Assim Cristo diz, desde o começo, coisas chocantes, mesmo que descontada toda hipérbole semítica, como quando relativiza a sacratíssima honra aos pais (e, com isso, a família, o clã, a tribo): era preciso amá-lo mais do que a pai e mãe; que sua mãe e seus irmãos eram os que observavam a palavra de Deus; que mesmo gestos tão humanos de sepultar e se despedir são colocados em segundo lugar. Levada a sério, essa ideia naturalmente conduziria à expansão daquela seita judaico-platônica para além da nação israelita, e para a formação de uma nação cuja lealdade máxima é para com essa nova família: deve-se fazer o bem a todos, diz Paulo, mas “primeiro aos domésticos da fé“.

A ordo amoris da ética cristã é o registro dessa transformação da afinidade natural em uma afinidade sobrenatural e, portanto, uma missão estrangeira. As diferenças entre o particularismo judaico de alguns dos primeiros discípulos e o universalismo de Paulo podem ser vistas como maneiras diferentes de preservar laços de afinidade e lealdade. Talvez por debaixo daquelas acusações bizarras que os cristãos sofreram nos séculos seguintes (ateísmo, antropofagia, incesto) — que os colocavam como abomináveis, horrendos, desumanos —, estivesse a percepção de que os cristãos transcendiam as afinidades que mantinham a sociedade.

É verdade que se pode perceber em Jesus um descontentamento implícito para com o Império Romano e sua “benfeitoria”, e a percepção da necessidade de carregar a cruz, instrumento de morte desse Império, implicando a certa aceitação da tensão política. Muito do que Jesus disse pode e às vezes deve ser lido como contra Roma.

No entanto, essas ideias convivem com palavras bastante “imperiais” de Jesus, a começar com a ideia do Reino de Deus que se expande para todas as nações, nas quais já se insinuam as imagens chocantes (para uma sensibilidade moderna) do Armagedom canônico, e já visíveis nas palavras do compassivo Jesus lucano: “Quanto, porém, a esses meus inimigos, que não quiseram que eu reinasse sobre eles, trazei-os aqui e executai-os na minha presença.” Ademais, há várias insinuações de uma “Nova Roma” em vários personagens do Novo Testamento, em especial os vários “centuriões” do NT que prenunciam os soldados romanos cristãos dos séculos seguintes.

A transcendência da afinidade pede uma outra política.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Jesus não estudou Hermenêutica

Jesus não era biblicista. Certamente ele reconhecia e afirmava a veracidade e a autoridade das Escrituras, referindo-se a eles em seus ensinos. Mas ele as usa com relativa liberdade, seguindo padrões conhecidos da halāḵâ judaica, encarando-as mais como janelas do que como destinos. Ele não esperava que os seus interlocutores usassem as Escrituras de modo restrita, antes traz mais cartas para a mesa.

No diálogo com o intérprete da lei em Lc 10:25ss, Cristo concorda em colocar dois mandamentos da lei acima de todos os demais, mas discorda de que o mandamento do amor ao próximo se limite aos compatriotas. O problema é: se lido de maneira puramente contextual, o mandamento se referia, sim, apenas ao amor entre os israelitas:

Não te vingarás, nem guardarás ira contra os filhos do teu povo; mas amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou o Senhor.” (Levítico 19:18)

Por implicação do paralelismo, o “próximo” corresponde aos “filhos do teu povo”. Essa é a leitura mais natural do texto. Por isso mesmo, o capítulo contém um segundo mandamento equiparando os estrangeiros que vivessem entre os israelitas (Lv 19:33-34); o primeiro mandamento não dava conta. Isso é uma importante expressão de humanidade e empatia, mas não é, ainda, em termos de contexto estrito, um mandamento de amor universal e irrestrito.

Então Cristo usa o mandamento para além dos seus limites contextuais e da intenção do autor. Ele não traz aí um mandamento novo — não é uma questão de “antiga aliança e nova aliança” —, mas observa como deve ser aplicado o mandamento antigo, como a lei deve ser usada. O texto não é a regra última, mas uma expressão dela.

Assim também, nas discussões sobre o sábado. No dia santo, seus interlocutores circuncidavam (Jo 7:21-24) e sacrificavam (Mt 12:5), e isso encontra amparo na lei, de modo que Cristo apela a uma hierarquização implícita nela, que deve ser válida também em situações não prescritas, como naquela de curar no sábado ou alimentar pessoas.

Mas a argumentação vai além: no sábado, eles levavam seus animais para beber água e socorriam seus filhos e animais caídos numa vala (Lc 13:15; 14:5), e isso é um apelo ao senso moral (expresso na lei oral), não à própria lei escrita. O fermento dos fariseus, a hipocrisia (Lc 12:1), consistia precisamente em ocultar o senso moral, e julgar as coisas apenas através de uma prescrição fria da lei, quando ela lhes convém.

Em outras palavras, Cristo exige dos seus interlocutores uma leitura não biblicista, na qual seja válido o princípio da analogia legal através do senso moral. Ele foi além da intentio auctoris e reclamou com quem não fez o mesmo. Se a hermenêutica é a ciência do contexto, Cristo nunca estudou hermenêutica.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Cristo, o Samaritano


Ao contar a Parábola do Bom Samaritano, Cristo reencenou e aprofundou criativamente um tema dos profetas de Israel. Em particular, a parábola provavelmente alude ao sexto capítulo do livro de Oseias. O escriba (real ou ficcional) conhecia essas imagens.

Em primeiro lugar, a essência da parábola pode ser resumida nas palavras célebres do profeta: “misericórdia quero, e não sacrifício” (6:6) — essa era a diferença entre o samaritano (que usou de misericórdia) e o sacerdote ou o levita, preocupados com seus ritos e sacrifícios, mas sem misericórdia. No caso do Cristo lucano, essa mensagem é agora reorientada a expandir o “amor ao proximo” além das fronteiras nacionais.

Em segundo lugar, o texto de Oseias carrega a crítica aos sacerdotes, tratados como perversos e corruptos. “Como bandos de assaltantes que espreitam alguém, assim é a companhia dos sacerdotes, pois matam no caminho para Siquém…” (6:9). Na parábola, o que mata não é a ação dos sacerdotes, mas sua negligência, indiferença e incompaixão. Eles são como cúmplices, nesse sentido. A Siquém de Oseias, assim como a Jericó da Parábola, é o caminho do Norte, o caminho do Inimigo.

Em terceiro lugar, o próprio Deus se compromete a curar a nação (6:1), vivificando-os ao segundo e ao terceiro dias (6:2). No entanto, enquanto ali a ferida a ser curada é causada pelo próprio Deus, como castigo, na parábola a ferida é causada por ladrões.

Essa história profética agora é relida a partir da mensagem de Cristo sobre o amor para com o inimigo, não presente na crítica original, embora não também desconhecida de Israel (p. ex. Jonas; Jacó e Esaú). Mas aqui essa misericórdia não é reativa (ao arrependimento), mas iniciativa. Na narrativa de Lucas, Cristo havia sido “proscrito” da vila samaritana.

Ao ler a parábola em continuidade com essa crítica profética, ela assume uma aplicação mais ampla do que a óbvia, na misericórdia pessoal nas necessidades básicas — ela nos desafia a reavaliar a maneira como limitamos o nosso amor no trato para com os de fora. Essa misericórdia não é uma doutrina abstrata; ela é vista como um projeto divino no mundo, diferetamente ligado à restauração de Israel, e Deus aparece como aquele que cura. Cristo desafia o escriba a ler o mandamento (do amor ao próximo) para além do contexto original, que provavelmente falava do amor apenas entre israelitas e imigrantes.

Quanto ao seu núcleo se sentido, a parábola não é uma alegoria, mas uma história exemplar (Caird). No entanto, ela tem várias camadas, sendo construída a partir de imagens recebidas das tradições proféticas de Israel — como acontece de modo óbvio também na Parábola dos Lavradores Maus. E, nesse sentido, ela naturalmente se presta ao uso cristão posterior, como alegoria de Cristo como exemplar máximo de amor, como Divino Samaritano.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Lava-Pés: Quatro Sentidos

Podemos ver quatro sentidos (não exaustivos e não exclusivos) no ato de Cristo de lavar os pés dos seus discípulos.

☩ Sentido Literal: Ao lavar os pés dos discípulos, Cristo coloca diante deles um exemplo a ser seguido. Eles deveriam estar dispostos a ter seus pés lavados e lavar os pés mutuamente, mostrando, com isso, um compromisso de humildade, serviço, reciprocidade, fidelidade a Cristo. No ambiente semítico e oriental de Jesus, o gesto de lavar os pés de outra pessoa era desonroso e inaceitável, que dirá se feito por um mestre, mas esse amor extremo de Jesus deve iluminar todas as nossas práticas e toda a nossa vida.

☩ Sentido Alegórico: O lava-pés é um ato profético (“compreendê-lo-ás depois”) que aponta, no contexto do Quarto Evangelho, para a missão do próprio Cristo, que foi despido em sua Paixão e verteu água quando ferido. Seu sacrifício traz transformação e pureza para os seus discípulos, uma pureza da qual eles precisam continuamente se limpar. Eles devem confiar em Jesus, e confiar que a humildade dele na cruz não é uma derrota, mas o meio pelo qual ele os purificaria. Ao dizer “Se eu não te lavar, não tens parte comigo“, Cristo mostra que não há salvação fora do seu sacrifício. Pedro, resistente à mensagem, representa aqui a Igreja na sua dimensão mais humana, frágil, que tantas vezes resiste ao plano do Senhor. Os discípulos, seguindo o modelo de Jesus, levam a pureza de Jesus para outras pessoas; eles limpam outras pessoas com a graça de Jesus, mas só o fazem plenamente se eles mesmos tiverem sido limpos.

☩ Sentido Moral: O texto aponta para duas dimensões da nossa alma, aquela que mais profundamente está ligada a Jesus (e portanto já está limpa) e aquela mais baixa, que continuamente se suja pelo contato com o mundo. Embora já tenhamos sido purificados por Jesus uma vez, não temos parte com ele a menos que ele limpe os nossos pés. Por isso, para termos plena comunhão com ele, precisamos de que ele nos limpe. A graça de Cristo nos livra mais facilmente dos pecados maiores e visíveis, mas há sempre uma sujeira por baixo que necessita de purificação. “Já lavei os pés, tornarei a sujá-los?” (Cânticos 5:3)

☩ Sentido Anagógico: Esse texto aponta para a pureza plena e definitiva que Cristo trará a nós e a este mundo. Embora ainda enfrentemos o pecado, um dia ele nos purificará por completo, limpará os nossos pés para que estejamos com ele para sempre em Terra Santa, na Nova Jerusalém. Ficarão de fora os impuros, mas, se já tivermos sido purificados pela lavagem do corpo, restará apenas uma limpeza menor, que ele fará por sua graça.

Rev. Gyordano M. Brasilino

O que é blasfêmia contra o Espírito Santo?

Uma pessoa perguntou (1) o que é blasfêmia contra o Espírito Santo, (2) por que (supostamente) o sangue de Cristo não seria suficiente para nos limpar dela, e (3) por que é especificamente dirigida ao Espírito Santo (não ao Pai ou ao Filho).

Blasfemar contra o Espírito Santo é aquilo que a expressão indica, e que a versão mateana comunica: “falar contra o Espírito Santo” (Mt 12:32). Blasfemar é insultar algo sagrado (especialmente Deus) — é um sacrilégio de palavras. Falou contra o Espírito Santo? Blasfemou contra ele. Foi o que fizeram os fariseus quando deram (indiretamente) ao Espírito Santo o nome de Belzebu. Isso se enquadra na regra mais ampla de que somos julgados conforme o que falamos (Mt 12:36– 37; cf. Mt 5:22). Parece, então, um pecado relativamente fácil de cometer, embora haja mais a considerar.

O sangue de Cristo é suficiente para nos purificar de todo pecado, se o confessarmos e andarmos na luz (deixando o pecado), como lemos em 1João 1. Ali em Mt 12, Cristo não fala de pecados confessados — do contrário, Paulo jamais poderia ter se convertido, pois, enquanto perseguidor dos cristãos, provavelmente blasfemou muitas vezes (cf. At 26:11) —, mas apenas de pecados cometidos. Com exceção desse, todo tipo de pecado cometido pode ser perdoado ou desculpado (sem referência explícita a confissão) — não digo que ele necessariamente será perdoado, embora Cristo use palavras bem fortes, talvez hiperbólicas (“todo aquele que disser uma palavra contra o Filho do homem ser-lhe-á perdoada”, Lc 12:10).

A condenação extrema desse pecado envolve o fato de que a gravidade da nossa culpa por um pecado cometido é, dentre outros fatores, proporcional à clareza que temos da verdade que o envolve. Quando o Espírito Santo se mostra presente através de um sinal (Mt 12:28), é impossível alegar ignorância. Então é um pecado maximamente consciente, contra Deus, no exato momento em que ele nos dá um presente claro e sinal de sua presença, e nós o rejeitamos publicamente, contaminando outras pessoas — que, no texto bíblico, começavam a se interessar por Jesus e se perguntar se ele não seria o Cristo. É uma ofensa imensa, então não adianta dizer que os fariseus não sabiam que ali agia o Espírito Santo. Sua “ignorância” não é desculpável. A blasfêmia contra o Espírito Santo é, nesse contexto, um anti-evangelho que nega ação do Espirito.

É importante distinguir a linguagem bíblica da linguagem dogmática posterior. Quando Cristo disse tais palavras, ele não estava diante de pessoas que conheciam o dogma da Trindade e que soubessem distinguir hipóstase e “ousia” com rigor capadócio. Quando ele usa palavras como “Filho do Homem” e “Espírito Santo”, não se refere necessariamente à Segunda e à Terceira Pessoas da Trindade, embora suas palavras (assim como o restante do Novo Testamento) tenham servido de base para as definições posteriores. Os biblistas sabem como é complicada essa questão de traduzir “Espírito Santo” no grego do NT.

Há vários outros textos, como Mt 24:36, que geram problemas se presumirmos que Cristo falava a pessoas que conheciam o dogma da Trindade, mas que desaparecem se não tivermos essa premissa anacrônica.

Se Cristo tivesse falado de Pessoas Divinas específicas, o texto estaria um pouco desalinhado com o contexto, já que a blasfêmia dos fariseus foi principalmente contra a Segunda Pessoa, contra o próprio Cristo ali realizando milagre (pelo Espírito Santo). Na verdade, em razão da unidade das Pessoas Divinas, ainda que nossa intenção possa ser repartida, toda blasfêmia contra uma delas é blasfêmia contra as três.

Então não é uma questão de dizer que a uma blasfêmia é tratada de maneira diferente a depender da pessoa a quem se dirige, pois isso seria muito arbitrário e inexplicável. Naquele momento, o que parece é que Cristo usa a expressão “Filho do Homem” no sentido usual que tinha para os seus ouvintes, isto é, “ser humano”, e “Espírito Santo” também no sentido usual, ou seja, a “presença do poder divino”, sem especificar hipóstases. Então ele dizia algo como: quem blasfema contra mim — enquanto homem, sem saber quem eu sou — pode até ser desculpável, mas quem testemunhou meu poder e, mesmo assim, se endureceu, é indesculpável.

A parte mais amável dessas palavras de Cristo é que elas dão a entender que certos pecados têm perdão no mundo vindouro. Do contrário, não faria muito sentido Cristo dizer: “não tem perdão nem neste mundo nem no vindouro“. Não que isso fosse segredo para os judeus, é claro.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Simul dignus et indignus

No Evangelho de Lucas, três personagens diferentes confessam sua indignidade diante de Deus: o maior dos profetas, João Batista (3:16); o centurião pagão e romano (7:6–7); o filho pródigo da parábola (15:19,21), que representa imediatamente os publicanos e pecadores israelitas (meio termo entre os outros dois).

Embora duas palavras gregas sejam usadas — hikanos (apto, qualificado) e axios (digno, merecedor) —, a correpondência entre elas é indicada na história do centurião, que usa ambas. Aliás, a versão lucana dessa história é enfática: enquanto Mateus narra o diálogo direto entre o centurião e Cristo, Lucas conta a distância mantida pelo centurião, que depende da intercessão de anciãos judeus e amigos para falar indiretamente com Cristo. Enquanto os anciãos dizem “ele é digno” (do milagre), ele mesmo diz “eu não sou digno… eu mesmo não me julguei digno” (de ver Jesus pessoalmente). Num evangelho tão preocupado em mostrar a aproximação de Cristo quanto aos pecadores — o único que contém o dito de Lc 19:10 —, a fé do centurião é a distância que ele mantém. Tanto a ousadia da aproximação quanto a ousadia da distância são louvadas.

O terceiro caso, a Parábola do Filho Indigno — ela deveria se chamar assim —, retrata um filho que, apesar do reconhecimento da indignidade da condição de filho, tem também a ousadia de retornar para implorar um lugar de servo. Ele é recebido como filho, mesmo indigno, contra os protestos moralistas do irmão, e é recebido na festa. Isso contrasta muito com a Parábola das Bodas (Mt 22:1–14), na qual os convidados indignos são trocados por outras pessoas, que honrem a festa, que venham a caráter, pois o que tem a veste coerente com a festa é expulso — traço ausente na versão lucana. Essa narrativa recorda, tematicamente, as maldições que São Paulo evoca sobre os que participam indignamente (anaxiōs) do corpo e do sangue do Senhor.

Por isso, um evangelho que enfatiza o amor de Deus pelos indignos também é capaz de falar sobre sermos “dignos de alcançar o mundo vindouro” (Lc 20:35) e “dignos de evitar todas estas coisas” (21:36), e fala de diferenças de dignidade (14:8). Essas palavras são exclusivas de Lucas (!), mas o Cristo mateano fala de sermos “dignos de mim” (Mt 10:37–38), isto é, dignos dele, o amando acima de outras pessoas e carregando a cruz com ele, ou de como algumas pessoas seriam dignas da benção apostólica (10:11,13).

Assim também, Paulo fala de sermos “dignos do reino de Deus” (2Ts 1:5,11), e o Apocalipse menciona a promessa divina para as pessoas que foram fiéis a Cristo, “pois são dignas disso” (Ap 3:4). Esse jogo de dignidade e indignidade, o abraço dos pecadores (iustificatio impii) e a congruência do destino último (iudicium operarum), atravessa os evangelhos e o Novo Testamento. Essa dualidade está na raiz da doutrina da dupla justificação.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Os Apóstolos não escreveram tudo

Existem várias coisas que Cristo e os apóstolos ensinaram e que sabemos, através do Novo Testamento, que não foram registradas nos escritos canônicos. Os apóstolos esperavam que esses ensinos orais tivessem autoridade (cf. 1Co 11:2; 2Ts 2:15; 3:6 etc).

Alguns exemplos:

1. O ensino acerca dos símbolos do Santuário israelita é mencionado em Hb 9:1–5, e a carta diz: “Dessas coisas, todavia, não falaremos, agora, pormenorizadamente.” Embora haja, aqui e ali no Novo Testamento (como no livro do Apocalipse) e nos primeiros Pais da Igreja alusões a esse tema, esses pormenores não estão explícitos em nenhum lugar da Bíblia.

2. A liturgia primitiva não foi registrada no Novo Testamento. Os apóstolos ensinaram às pessoas da época algum tipo de culto, mas ele só é conhecido indiretamente, por poucas referências no NT e por comparação com as liturgias históricas preservadas e costumes sinagogais. Não sabemos pelo NT como era a liturgia cristã primitiva, exceto quando lemos o NT à luz desses conhecimentos posteriores (ex: quando lemos os relatos da Ressurreição à luz dessas liturgias).

3. Em Jo 21:25 e At 1:3, ficamos sabendo que Jesus fez e disse coisas que não foram registradas por escrito. Alguém pode supor que essas coisas teriam reaparecido em algum outro momento do NT, mas não há como verificar essa afirmação. Como At 20:35 dá a entender, esse conhecimento oral sobre as palavras de Jesus não registradas nos evangelhos (ágrafos) circulava na época.

4. O NT depende de um “dicionário” moral específico, ou seja, de que certas virtudes, que nunca são explicadas, sejam entendidas de certa maneira. O que é piedade? O que hospitalidade? O que é mansidão? Essas e outras expressões dependem de uma dada cultura religiosa — pré-cristã em grande parte, inclusive (judaica e pagã) — que lhes confira significado e praticidade. Com certeza em algum momento os apóstolos tiverem que ensinar algo sobre essas coisas, mas não temos o registro direto desses momentos.

5. Em alguns momentos, como 2Tm 2:2, temos o ensino oral como coisa preciosa a ser guardada por pessoas específicas. Não faria sentido dizer isso se tudo seria escrito num mesmo lugar.

6. Em 2Co 12:2, Paulo fala do “terceiro céu“. Esse terceiro céu não é explicado em nenhum lugar da Bíblia. Havia no judaísmo apocalíptico da época especulações sobre isso. Cristo e os apóstolos pensavam algo sobre isso, e o texto dá a entender que eles concordavam em parte com essa cosmologia. Mas onde concordaram e onde discordaram? O NT não nos diz.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Se os mártires morreram alegres, por que Cristo se entristeceu com a morte?

Alguém me fez essa pergunta. É comum que as pessoas que acreditam que Cristo teve “separação espiritual” com o Pai usem a tristeza de Cristo como indício disso. É um argumento antigo, usamos também pelos arianos na Antiguidade.

No entanto, tudo o que os textos bíblicos dizem a esse respeito é quanto à morte: “profundamente até à morte” (Mc 14:34), “com forte clamor e lágrimas, orações e súplicas a quem o podia livrar da morte” (Hb 5:7). A leitura mais óbvia dos textos é que se trata do temor da morte (timor mortis).

Na morte de Cristo, existe uma dualidade. Enquanto vários textos bíblicos sinalizam que ele se entregou voluntariamente, e ninguém tomou a sua vida, ao contrário ele mesmo se deu a Deus — portanto que o sacrifício por nós era seu desejo —, por outro lado outros textos mostram que ele não queria morrer. É da natureza humana não desejar a morte, não há pecado ou tentação nisso a priori, e, no caso de Cristo, a tristeza é agravada pela compaixão dele pelos pecadores.

Um exemplo de texto em que se pode ver a angústia causada pela compaixão, isto é, pela tristeza que os pecados dos seus “inimigos” lhe trouxeram: “Ditas estas coisas, angustiou-se Jesus em espírito e afirmou: Em verdade, em verdade vos digo que um dentre vós me trairá.” João 13:21

Essa dualidade existe nos santos também. Por um lado, eles desejam alegremente se unir a Cristo através da participação nos seus sofrimentos — isso é crucial, pois eles desejam passar pelo menos que Cristo passou, o que seria absurdo se Cristo estivesse passando por um sofrimento exclusivo. Mas, por outro, eles não desejam a morte em si mesma (Santo Atanásio fugiu de morrer), e lamentam por seus perseguidores.

Alguns pais da Igreja sinalizam o fato de que esse temor, em Cristo, não se origina nele, mas em nós. Ele entra na natureza humana para curá-la, então ele participa dos nossos sentimentos de tristeza e temor da morte. Com isso, ele nos mostrou o seu caminho para lidar com temores e ansiedades: a oração.

Um fato intrigante é o modo como o desleixo dos apóstolos é visto em termos escatológicos.

“É como um homem que, ausentando-se do país, deixa a sua casa, dá autoridade aos seus servos, a cada um a sua obrigação, e ao porteiro ordena que vigie. Vigiai, pois, porque não sabeis quando virá o dono da casa: se à tarde, se à meia-noite, se ao cantar do galo, se pela manhã; para que, vindo ele inesperadamente, não vos ache dormindo. O que, porém, vos digo, digo a todos: vigiai!” Marcos 13:34–37

“Respondeu-lhe Jesus: Em verdade te digo que hoje, nesta noite, antes que duas vezes cante o galo, tu me negarás três vezes… Voltando, achou-os dormindo; e disse a Pedro: Simão, tu dormes? Não pudeste vigiar nem uma hora? Vigiai e orai, para que não entreis em tentação; o espírito, na verdade, está pronto, mas a carne é fraca.” Marcos 14:30,37–38

A tentação de Pedro (o porteiro) e dos apóstolos era um sinal da história da igreja, de como viria o sono, a tentação escatológica, e de como isso trazia angústia ao coração de Jesus. Essa leitura paradigmática e arquetípica dessa narrativa fortalece a ideia de que Cristo não está angustiado ali apenas por si, mas por nós, particularmente pelos seus mártires.

Rev. Gyordano M. Brasilino