Há uma regra, surpreendente e lamentável, segundo a qual o erro é sempre mais facilmente pronunciado de que a verdade. Pense-se, por exemplo, em como a heresia ariana é mais fácil que o dogma Trinitário, a doutrina de Pelágio é mais fácil que a sua condenação, ou como o apolinarismo é que mais facilmente pregado que a doutrina de Éfeso.
O erro é fácil. A verdade é mais difícil.
O erro se reveste de palavras mais simples e adere mais simplesmente a uma dada verdade, à exclusão de outras verdade igualmente importantes. É por isso que o erro conquista tão facilmente os incautos, porque eles parecem entendê-lo melhor. O triunfo da verdade total não está na capacidade de chegar mais facilmente a um enunciado preciso e rápido. Ela é paciente o suficiente para abranger tudo, é paciente para suportar a demora, sem deixar de fora nada daquilo que o erro esconde.
É assim com o caso da paternidade universal de Deus. Eu tenho bastante repulsa à linguagem sectária que é corrente no mundo evangélico, especialmente entre os que conhecem menos as Escrituras. Dizem que somente os “crentes” são filhos de Deus.
A reação, sempre que falo sobre isso, é a mesma: citam dois ou três versículos da Bíblia que parecem ensinar que somente algumas pessoas são filhas de Deus, ignorando por completo todos os demais, mais numerosos e bastante diretos, que ensinam ou dão a entender o inverso.
Afinal, Deus é não é o “Pai dos espíritos” (Hb 12:9)? Não é o “Pai de todos” (Ef 4:6), uma expressão corrente no mundo grego-romano e judaico da época para indicar essa paternidade universal? Não é dele que toma nome toda linhagem nos céus e na terra (Ef 3:15)? Não somos todos “geração de Deus“, como disse o Paulo lucano citando um autor pagão (At 17:28-29)? Não era Adão, nosso progenitor segundo a história sagrada, filho de Deus (Lc 3:38)? Não é Deus “pai de órfãos” (Sl 68:5)? Cristo falou a multidões inteiras, de pessoas de condições espirituais diferentes (e que ele conhecia), sobre o “vosso Pai celestial”.
As pessoas não entendem bem as declarações, presentes nos corpus paulino e joanino, que limitam a filiação divina. Se essas declarações são tomadas de maneira literal e unilateral, as pessoas para quem Cristo pregava não seriam filhas de Deus, pois, segundo Paulo, filho de Deus é quem tem o “Espírito Santo” (Rm 8:14-17; Gl 4:5-7), e elas não o tinham ainda. (Não devemos exagerar aqui a leitura do texto paulino com as premissas, verdadeiras mas anacrônicas, de Constantinopla e Agostinho. O “Espírito” ou “espírito” em suas cartas pode significar desde uma mentalidade divina até o próprio Deus.) As pessoas sob da antiga aliança (que não era ainda o ministério do Espírito) não poderiam ser filhas de Deus.
Na verdade, esse tipo de confusão é o resultado de ler as Escrituras sem sensibilidade literária, sem atenção a ironias e sarcasmos, a paradoxos e exortações, a antíteses hiperbólicas, como se tudo fosse declaração doutrinal unívoca.
Ocorre que, como sabe qualquer pessoa minimamente instruída em teologia, nossa linguagem doutrinal é analógica: quando dizemos que somos filhos de Deus, isso não tem exatamente o mesmo sentido com que dizemos que Jesus é filho de Maria, ou com que eu sou filho dos meus pais. Dizemos que somos filhos de Deus por semelhança: há uma relação real entre nós e Deus, e a essa relação damos o nome de “filiação” por semelhança para com a relação com que um filho humano tem para com o seu pai.
Mas onde há semelhanças, há diferenças, e essas diferenças podem ser maiores ou menores, e portanto essa filiação comporta graus de semelhança, em “saltos qualitativos”. É por isso que, tendo já falado e continuando a falar várias vezes sobre “vosso Pai” (Mt 5:16,48 etc.), Cristo nos desafia: para que sejamos filhos do nosso Pai — ele já é nosso Pai, mas nós precisamos nos tornar seus filhos! —, precisamos ser misericordiosos como ele (Mt 5:44-45). Esse não é o único momento em que a filiação é relativizada, Cristo também o faz com os “filhos de Abraão”, que, segundo ele, não são filhos de Abraão.
Ou seja, todos são filhos de Deus, mas alguns vivem como filhos de fato, e outros vivem como escravos, destituídos da filiação que é sua. Quem o diz não sou eu, mas o próprio Paulo:
“Digo, pois, que, durante o tempo em que o herdeiro é menor, em nada difere de escravo, posto que é ele senhor de tudo. Mas está sob tutores e curadores até ao tempo predeterminado pelo pai. Assim, também nós, quando éramos menores, estávamos servilmente sujeitos aos rudimentos do mundo; vindo, porém, a plenitude do tempo, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei, para resgatar os que estavam sob a lei, a fim de que recebêssemos a adoção de filhos.”
Gálatas 4:1-5
Assim, tornar-se filho de Deus não é tornar-se o que não se é, mas assumir uma identidade que é universal, porque a paternidade de Deus é universal.
Rev. Gyordano Montenegro Brasilino