A Verdade a todo custo?

Nós fazemos duas importantes descobertas ao longo da vida. Embora cada uma dessas descobertas possa parecer muito radical e inovadora no seu próprio momento, na realidade provavelmente a maioria das pessoas passa por elas. A primeira descoberta é a de que não precisamos nos importar com o que outras pessoas pensam. A segunda descoberta é a de que precisamos, sim, nos importar com o que outras pessoas pensam.

A aparente contradição na realidade revela uma diferença importante. Cada uma dessas duas verdades têm seu próprio lugar. Quando somos crianças, nós somos dominados pelo que outras pessoas pensam, pelas pessoas que, ao nosso redor, nos influenciam e orientam a nossa vida. As palavras dessas pessoas têm um grande poder de nos afetar emocionalmente: provocam medo, alegria, ira, desespero, esperança, desejo e várias outras paixões com muita facilidade. Parte do amadurecimento é descobrir que nossa própria vida interior não depende dos juízos que essas pessoas fazem. A formação da nossa própria identidade pessoal envolve essa primeira descoberta.

Mas frequentemente essa primeira descoberta vem com o sentimento de que sabemos de tudo, de que guiamos a nós mesmos, de que somos imbatíveis. E então descobrimos que tudo isso é falso, de que na realidade, embora nossa vida emocional não precise ser controlada por outras pessoas, não somos tão espertos e sábios quanto pensávamos, e nossa vida continuará, até o fim, dependente de outras pessoas. Na realidade, ao mesmo tempo que nossa percepção para essas coisas crescerá, nosso próprio vigor físico diminuirá, nos dando maior consciência de nossa própria limitação e mortalidade. Naqueles que passarem por esse crescimento, o primeiro sentimento libertário adolescente será progressivamente moderado por um senso comunitário.

A verdade de que não dependemos de outras pessoas deve ocupar nossas paixões. A verdade de que dependemos de outras pessoas deve ocupar nossa inteligência. A “opinião” alheia é boa quando forma e eleva, e má quando nos domina e subjuga.

Há vários motivos importantes pelos quais devemos nos importar com o que outras pessoas pensam. O primeiro motivo óbvio é o de que, na realidade, o conhecimento que nós temos é construído socialmente; mesmo as descobertas individuais se dão num contexto de uma liberdade construída em sociedade, com instrumentos que recebemos de outras pessoas. Ou, nas palavras da Escritura, “na multidão de conselheiros há segurança“, “na multidão de conselheiros está a vitória“.

Existe um outro motivo, mais profundo. A Sagrada Escritura nos ensina que, por amor, devemos evitar escandalizar todas as pessoas. Escandalizar é colocar obstáculos desnecessários à fé, coisas que para nós podem parecer relativamente importantes e interessantes, mas que acabam impedindo outras pessoas de terem acesso a Cristo, ou acabam fazendo perecer aquelas pessoas por quem Cristo morreu. Paulo fala de como os primeiros cristãos, mesmo sabendo que os ídolos nada são, deveriam evitar comer a comida consagrada aos ídolos, para que outros cristãos, menos sábios, não se escandalizassem. “O saber ensoberbece, mas o amor edifica“.

Esse ensinamento de Paulo é fácil de entender à luz da virtude que Deus exige de nós: continuamente, a Escritura ensina que devemos ser pacificadores, nos esforçar pela paz, procurar ter paz com todas as pessoas tanto quanto pudermos. Há uma importante prioridade a ser colocada na paz. A paz não é só um efeito colateral de nossas ações, algo que acontece quando, por acaso, as pessoas resolvem concordar. Não, na verdade nós devemos promover a paz ativamente, procurando reconciliar o que estava dividido. Por isso também, aprendemos na Escritura a procurar ter o mesmo pensamento, o mesmo sentimento, a manter unidade em tudo o que pudermos. Existe, é verdade, um espaço de liberdade de pensamento e juízo pessoal — “Cada um tenha opinião bem-definida em sua própria mente.” (Rm 14:5) —, portanto não se trata de uma anulação da consciência pessoal. Mas há uma ênfase continuada, na Escritura, em torno da preservação da paz e da unidade entre as pessoas. Não devemos ser os divisores, e essa verdade vale tanto para a sociedade civil (na condenação do pecado da sedição) quanto para a sociedade eclesiástica (na condenação dos pecados do cisma e da heresia).

A aparente contradição entre as duas verdades ditas no começo do texto tem uma semelhança com algo que aparece na Escritura, também nas palavras de Paulo. Ele escreveu, em momentos diferentes:

Porventura, procuro eu, agora, o favor dos homens ou o de Deus? Ou procuro agradar a homens? Se agradasse ainda a homens, não seria servo de Cristo. Gálatas 1:10

Portai-vos de modo que não deis escândalo nem aos judeus, nem aos gregos, nem à igreja de Deus. Como também eu em tudo agrado a todos, não buscando o meu próprio proveito, mas o de muitos, para que assim se possam salvar. 1 Coríntios 10:32-33

O que devemos fazer? Procuramos agardar a homens ou não? No primeiro caso, há uma comparação: nossa prioridade está nos homens ou em Deus? Nesse caso, Paulo é transparente: somos servos de Cristo. Ele se utiliza da frequente antítese hiperbólica semítica (absoluteness) para expressar uma preferência, uma prioridade. Mas, quando ele se compara a outras pessoas, mostra logo que ele não busca seu próprio interesse, mas o de outras pessoas, procurando agradá-las. Ambos os textos partem de certas comparações, e o resultado disso é que, em muitas situações, devemo, sim, ter o interesse intencional e movido pela missão (e não passional e movido pelo medo e pela dependência afetiva) de agradar outras pessoas. Ao dizer essas coisas, São Paulo mostra como ele estava imitando ao próprio Cristo, que se desfez dos seus interesses pelos nossos.

Nesse sentido, o sentimento desagradável do tipo “não me importo com nada e ninguém” não tem aprovação na Escritura Sagrada. Devemos, sim, nos importar com o que outras pessoas pensam, ouvi-las, receber de sua sabedoria, devemos evitar escandalizá-las, devemos procurar agradá-las em justa medida, devemos nos esforçar para estar em paz com elas, não devemos interpor obstáculos desnecessários à comunhão. Isso, no fim das contas, é a virtude da amabilidade. Não devemos nos escravizar a outras pessoas, mas devemos, sim, servi-las por amor. Essas verdades valem para nosso relacionamento com todas as pessoas, e sobretudo na Igreja de Cristo, “para que não haja divisão no corpo” (1Co 12:25). Segundo as Escrituras, os passionais que provocam divisões “não têm o Espírito” (Jd 19). Deus ordena a sua bênção onde há união.

Por isso, deve ser evitado e rechaçado todo pensamento e desejo de “falar a verdade” que não seja com amor e em paz. Se falamos sem amor, é só barulho, “o bronze que soa ou como o címbalo que retine“. Toda comunicação eficaz se dá num ambiente de respeito mútuo. Quando tentamos “pregar a verdade” num ambiente em que essas ideias não são bem vindas, e sem o devido amor e atenção, tudo o que fazemos é lançar pérolas aos porcos que, depois de as terem pisado, se lançarão contra nós. Ao contrário do que dizem os que pensam que devem falar o que quiser, sem considerar as consequências — pecando contra a virtude da prudência —, em vários momentos a Escritura nos ensina a ponderar essas coisas, “para que o ministério não seja censurado” (2Co 6:3), “para que a palavra de Deus não seja difamada” (Tt 2:5), “não deem ao adversário ocasião favorável de maledicência” (1Tm 5:14), “para que o nome de Deus e a doutrina não sejam blasfemados” (1Tm 6:1). Os primeiros cristãos se importavam com o que as pessoas de fora pensavam deles, tanto que o ministro deveria ser alguém que tenha “bom testemunho dos de fora” (1Tm 3:7).

Em outras palavras: “Portai-vos com sabedoria para com os que são de fora; aproveitai as oportunidades. A vossa palavra seja sempre agradável, temperada com sal, para saberdes como deveis responder a cada um.” (Cl 4:5-6)

Algumas pessoas têm essa ideia de que quem serve a Deus precisa ser rejeitado pelas pessoas em redor. É um pensamento sectário, que só estimula o orgulho e o separatismo. Alguém vai nos rejeitar, é claro, e não devemos fazer o bem apenas para receber reconhecimento mundano, mas a virtude também será reconhecida por outras pessoas, especialmente pelos pequeninos. O testemunho dos de fora deve ser o das palavras de Tertuliano: “Vede como se amam!“. Cristo ensinou que as boas obras dos discípulos, resplandecendo como luz, deveriam ser reconhecidas pelas outras pessoas; Paulo ensinou que quem serve bem a Deus é “aprovado pelos homens” (Rm 14:18). Essa realidade se cumpriu na vida dos primeiros cristãos em Jerusalém, os quais, mesmo sendo perseguidos pelas autoridades, contavam “com a simpatia de todo o povo” (At 2:47).

Também há quem pense que temos a obrigação de desafiar tudo aquilo que vai contra a nossa fé, mas isso não é verdade, e, no fundo, a maioria das pessoas sabe disso. A maioria de nós convive com familiares, colegas de trabalho, vizinhos e amigos que não compartilham da mesma fé e doutrina, que professam outras religiões ou nenhuma religião, que seguem uma moralidade substancialmente distinta, e nós sabemos que a convivência pacífica com essas pessoas exige que nós não as corrijamos o tempo todo. Todos nós, em algum momento, passamos em frente a templos de religiões com as quais não concordamos. Seria nossa obrigação entrar nesses templos, sem convite e sem respeito, e tentar retirar daquela religião as pessoas? É claro que não. Tentar fazê-lo é ainda pior. Não é assim, por exemplo, que Paulo se comportou no Areópago (ele elogiou sua religiosidade). Em Éfeso, ele não criticou o culto de Diana. Aliás, segundo os Atos dos Apóstolos, a perseguição em Éfeso surgiu não porque os cristãos fossem inimigos de Diana, mas porque a conversão das pessoas à religião cristã os ameaçava. Os cristãos não foram em busca de briga. A briga veio até eles.

Existem momentos em que a verdade precisa ser dita, e, nessas situações, devemos dizê-la sem medo e com amor. Mas nem sempre a verdade precisa ser dita; na maior parte das situações, você simplesmente se cala. Todos nós convivemos com situações em que temos que fazer de conta que não vemos as coisas. Usando um exemplo que uma pessoa me trouxe: se um amigo seu colocou um nome feio no filho, você não tem obrigação nenhuma de dizê-lo. Se um pregador de alguma religião maluca estiver anunciando sua mensagem na rua, não se pode dizer que todo mundo tenha obrigação de corrigi-lo imediatamente. A maioria pode simplesmente seguir sua vida e ignorá-lo. Nós fazemos esse tipo de coisa o tempo todo. Se alguém está protegendo um judeu no sótão e mente para o agente da SS, dizendo que não há nenhum judeu, você, estando ali presente, não tem obrigação de dizer a verdade; sua obrigação é manter o silêncio, para não cooperar com o mal, que deseja se utilizar da verdade.

Existe um tipo de vício perigoso, que é o respeito humano, que consiste num cuidado exagerado com o que outras pessoas pensam ou permitem. Mas o perigo do respeito humano não deve servir de justificativa para que nos lancemos no perigo ainda maior da sedição, do ódio e do escândalo. O que caracteriza o respeito humano é uma prontidão para fingir, para mentir, por colocar as outras pessoas acima da verdade, efetivamente rejeitando a Cristo, se não por palavras explícitas, ao menos por atitudes. Não é isso o que eu defendo, nem o que todos esses exemplos bíblicos citados ensinam, mas sim o comportamento pacífico e capaz de silenciar quando falar for imprudente, e que se importa, sim, com a preservação da paz nas relações. O Evangelho verdadeiro e bíblico é o Evangelho da Paz.

Essa preocupação com a preservação da unidade e a evitação do escândalo é tão importante que São Tomás de Aquino, ao falar da punição da excomunhão, declara na Suma Teológica, repetindo a opinião de Santo Agostinho, que: “Mas se pela inflicção das penas é manifesto que mais e maiores pecados se seguem, então a inflicção das penas não será contida na justiça. E é deste caso que fala Agostinho, ou seja, quando há perigo de cisma na excomunhão de alguns, então realizar a excomunhão não pertenceria à verdade da justiça.” (II-II q43 a7 ad1) Note-se: aqui está em jogo a unidade da Igreja, e, para São Tomás, é melhor preservar a unidade da Igreja do que excomungar algumas pessoas. Quem lê a Suma sabe que São Tomás tinha muito apreço pela preservação da verdade, e não tinha a paciência moderna para os problemáticos dentro da Igreja. Mas ele preferia evitar o cisma, resultante do escândalo, tolerando essas pessoas.

Sobre isso, há duas situações necessárias a comentar: a de Cristo e a dos mártires. Esses casos frequentemente são colocados como exemplos de pessoas que disseram a verdade e foram punidas por isso. Quem coloca esses exemplos pensa: não devemos ser assim também, dizer a verdade mesmo que haja risco de punição? O argumento falha porque presume que Jesus e os mártires foram punidos por serem polêmicos, por saírem dizendo a verdade que queriam a quem queriam.

A “comunidade” para a qual Jesus pregava não era um corpo unido ao qual ele perturbou trazendo discórdia. Era um corpo desunido, “ovelhas sem pastor“, segundo o próprio Jesus, e ele procurou, antes, uni-los, como pintinhos debaixo das asas da galinha. Jesus procurou trazer unidade, e não divisão, a Israel. Mas é óbvio que quando você faz isso numa comunidade desunida, com várias forças em ação em busca do poder, suas palavras acabarão atingindo alguém, justamente às forças que ganham em cima da desunião. Si vis pacem, para bellum. É diferente o caso de um corpo coeso e unido que alguém procura perturbar.

Cristo disse, certa vez, que não veio “trazer paz, mas espada“, e que, como resultado de sua doutrina, famílias se dividiriam. Mas é importante notar que há certa ironia nas palavras de Cristo, certa linguagem figurada. O que acontece não é que Cristo dividiu essas famílias, mas sim que alguém, ao colocar obstáculos a essa doutrina, traria divisão. O divisor não é Cristo; seus inimigos é que o são. Frequentemente, no ministério de Cristo, são esses divisores, em busca de poder, que vem até ele com a polêmica. Ele não vai até eles. Às vezes as pessoas vão a Cristo com maus interesses, e ele lhes diz palavras duras (como no Discurso em Cafarnaum, João 6) que os faz ir embora. Mas note-se: Cristo não foi até essas pessoas, elas vieram até ele, sendo que elas mesmas rejeitaram o que ele disse.

De todo modo, em toda situação de unidade, há sempre um “princípio de unidade” que a promove — uma pessoa, um grupo de pessoas, um símbolo. Cristo era o princípio de unidade de Israel, e o provou com sabedoria irresistível e milagres numerosos. Esse princípio de unidade fala em nome da unidade do grupo, de modo que quem diverge dele diverge do grupo — então o grupo divergente, e não o princípio de unidade, é quem tem a culpa de promover a divisão. Onde quer que chegue, Cristo tem o direito de nos iluminar no que não sabemos. Onde quer que chegue, ele é a autoridade a quem todos devem ouvir, ele é a voz da unidade.

A maioria de nós não tem uma condição sequer análoga à Cristo, no entanto — a maioria não tem uma autoridade incontestável, ou sabedoria irresistível, ou milagres atestados. Por isso, quando falamos, nós o fazemos numa posição que não pode obrigar as outras pessoas com a mesma força, então não podemos exigir tanto das pessoas, mas devemos ser mais pacientes e mais tolerantes com elas, pois estamos, quanto à nossa humanidade e autoridade, mais perto delas do que de Jesus. Mesmo os ministros do evangelho, que poderiam falar com maior autoridade e obrigar à obediência, na realidade devem falar com ainda maior mansidão, como exemplos para todo o povo de Deus, quanto à paz civil; quanto à paz eclesiástica, devem zelar, sim, pela preservação da verdade, mas ainda com mansidão.

Assim como Jesus, embora deteste a polêmica, eu falo de temas que são polêmicos, mas a divisão que há nesses temas não é uma divisão trazida por mim, e sim uma divisão que já está aí, entre os cristãos. Nesses casos, a minha posição é, tanto quanto eu consigo enxergar, uma posição de “via média”, com a qual a maioria das pessoas pode se identificar em parte. Eu evito o radicalismo justamente porque ele é inerentemente divisivo.

Há uma profunda ilusão em pensar que simplesmente jogando verdades na cara das pessoas nós nos tornamos mais semelhantes aos mártires de Cristo; é achar que, porque somos maltratados pelas pessoas, somos iguais aos mártires. Não é essa a ousadia dos mártires. Mas eu direi que acredito nos argumentos dessas pessoas, que acham que fazem o mesmo que fazem os mártires, quando elas começarem a operar os mesmos milagres que os mártires fizeram.

A verdade está na paz, e a paz está na verdade. Devemos resistir aos pensamentos de quem quer separá-las. Abraçar o evangelho é abraçar o escândalo do Crucificado. Não precisamos inventar nenhum outro escândalo.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Sobre Gálatas 4

O capítulo 4 da Carta aos Gálatas me parece ser crucial para a compreensão da controvérsia paulina. Esse capítulo revela dois aspectos do seu argumento: uma concepção parcialmente negativa do papel da Lei e uma imagem platônico-apocalíptica da identidade de Israel (Jerusalém).

No começo do capítulo, Paulo usa a imagem do pedagogo — o escravo que, na cultura greco-romana, protegia o filho de uma família livre — para descrever igualmente duas situações: a dos judeus e a dos gentios antes de sua conversão. Ambos estavam “servilmente sujeitos aos rudimentos do mundo” (v. 3), seja quando obedeciam à lei de Israel, seja quando serviam aos “deuses que, por natureza, não o são” (v. 8 ). Embora viva como escravo, o filho que está sob esses tutores e curadores é, na verdade, livre. Sua condição de vida não corresponde ainda à sua vocação.

Para Paulo, quando um gentio, que anteriormente servia a esses deuses e se tornou cristão, procura agora aderir à Lei, ele retorna aos “rudimentos do mundo“, aliás, aos “rudimentos fracos e pobres” (v. 9) que escravizam. Isso quer dizer duas coisas: que a doutrina paulina da adoção não é, nesses textos, a de uma transformação temporal de não-filho em filho, mas sim a ascensão do filho à sua identidade liberta. O mesmo tema está implícito em Romanos (cf. Rm 8:15). A adoção (huiothesia) não deve, por isso, ser entendida como o momento temporal de tornar-se filho, para quem se converte à fé; essa conversão não é, para Paulo, um tornar-se filho, mas um apropriar-se da sua filiação por direito. A palavra preserva a distinção ontológica importante entre os filhos de Deus e o Filho de Deus, mas não deve ser extrapolada do contexto.

Essa questão da atemporalidade da filiação é importante. Se Paulo quisesse tratar de uma adoção temporal, seu argumento se enfraqueceria, pois ele novamente levantaria uma muralha entre os filhos e não-filhos, como havia entre judeus e gentios, reconstruindo o que procurava demolir: “se torno a edificar aquilo que destruí, a mim mesmo me constituo transgressor.” (Gl 2:18).

Essa primeira faceta, que basicamente identifica o papel da Lei aos dos deuses nacionais, é difícil de compreender para quem, sendo hoje cristão, lê o Pentateuco em busca da Lei Moral e reflete apenas em termos de teologia sistemática. É verdade que esses elementos da Lei que traziam escravidão e dividiam correspondem ao que os cristãos chamaram de Lei Civil e Lei Cerimonial, pois é nessas dimensões que acontece a separação entre judeus e gentios. Mas essa distinção não é inerente à Lei, ela é uma leitura cristã posterior, para além da intenção original, em busca do “sentido mais pleno”. Não há como alguém “sob a Lei” discernir a realidade de que judeus e gentios são iguais e que suas distinções não são da Lei Moral. Essa realidade é, para Paulo, uma revelação apocalíptica.

É tendo isso em mente que Paulo alegoriza a narrativa de Sara e Hagar, de Isaque e Ismael, da Jerusalém “de cima” livre e da Jerusalém “atual” escrava, duas alianças: uma do nascimento “segundo carne” (kata sarka), a outra do nascimento “segundo espírito” (kata pneuma). Não é curioso que a “de cima” se oponha à “atual”? Para Paulo, o de cima e o vindouro se correspondem, assim como o atual corresponde ao terreno.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Pare de culpar os eleitores

Um dos sintomas da divisão política é a maneira como cada extremo do espectro político culpa o outro extremo por todos os males do mundo, igualmente culpando também qualquer pessoa que queira ver a guerra sob outra perspectiva. Nesse processo, todas as decisões ruins dos candidatos são lançadas na conta dos seus eleitores, como se fossem eles os responsáveis. Que medida de verdade há nisso?

Aqui não estamos falando de uma responsabilidade jurídica, naturalmente. Os eleitores não são, em lugar nenhum, responsáveis juridicamente pelas ações do candidato. (Uma nação pode sofrer sanções internacionais com base nas decisões da sua liderança política, mas a sanção não se dirige aos eleitores e isso ocorre mesmo fora das democracias representativas.) O que está em jogo aqui é a responsabilidade moral, que, no mundo das ideias, significa imputar culpa moral; mas, na realidade concreta, significa o direito de envergonhar socialmente outras pessoas, numa tentativa de transferir frustrações ou de converter futuros votantes.

Numa eleição representativa democrática, o voto pessoal é, em geral, irrelevante, incapaz de realizar qualquer mudança no cenário governamental. Há essa ilusão frequente de que o nosso voto é crucial, mas qualquer pessoa que saiba fazer as contas perceberá que não é assim; não importa em quem eu vote, o voto não mudará o resultado. Os políticos de qualquer lugar no espetro político, numa democracia liberal representativa, querem que os eleitores pensem que cada voto é uma decisão moral seríssima, e nesse processo são ajudados por professores e jornalistas, que em geral corroboram com a narrativa. Por um lado, isso é um meio de enfrentar o problema dos votos nulos ou em branco (através da pressão passional, não do convencimento); por outro, é também uma forma que várias pessoas “bem posicionadas” se utilizam para fazer campanha velada para algum candidato.

Não são os votos individuais que contribuem para a eleição de um candidato, mas somente a movimentação de milhares e milhões de votos. Não estamos falando de uma eleição de síndico de prédio, em que cada voto possa ser decisivo. Nas eleições nacionais, a situação do voto de desempate não ocorre, e, mesmo se ocorrer, ela é improvável, então todo mundo vota já supondo que ela não ocorrerá.

Quem é capaz de eleger um candidato, então? Além do próprio candidato e a estrutura partidária por trás dele, a mídia nas suas várias formas, e pessoas que detêm algum tipo de poder ou influência. Uma notícia, como a facada em Bolsonaro em 2018, atrai a atenção de milhões de pessoas. Retornarei a essa questão mais abaixo. De todo modo, se quiséssemos atribuir responsabilidade a cada eleitor pela vitória do seu candidato, quanta responsabilidade seria? 0,000001%? Se quisermos dizer que cada eleitor contribui — coisa que eu não concedo! —, poderemos dizer que contribui, no máximo, de modo microscópico, infinitesimal.

O que acontece é que a tentativa de atribuir responsabilidade aos eleitores só funciona para os outros, não funciona para quem faz a acusação. As pessoas podem se arrepender de ter votado ou apoiado determinado candidato, mas nunca assumem a responsabilidade pessoal e nunca se consideram objetivamente culpadas pelos erros dos candidatos que apoiam — mas querem que os outros o sejam. E mais: quem não apóia nenhum candidato e além disso vota nulo, expressando insatisfação por todos os candidatos disponíveis, é julgado como se aceitasse qualquer um.

Existe uma segunda coisa que ninguém gosta de admitir, que é a responsabilidade cruzada. Os candidatos que apoiamos acabam, por seu comportamento, atraindo adversários que também são reprováveis. Somos também responsáveis por isso? Por exemplo, os progressistas que querem a legalização dos “direitos reprodutivos” se consideram responsáveis por forçar parte do eleitorado (que não tem dificuldade com outras questões de justiça social) a votar em candidatos abjetos apenas para evitar essa pauta? Não, não se consideram.

Essa tentativa de pautar as decisões éticas por consequências é uma forma bastante propagada de consequencialismo, na sua versão mais ingênua, que significa algo como: você é culpado por qualquer consequência danosa das suas ações, de maneira que as ações são definidas como boas ou mais através da soma preponderante de consequências boas ou más. Essa forma ingênua, embora seja muito comum, basicamente não é defendida seriamente por ninguém, pois suas falhas são óbvias. No fim das contas, esse tipo de pensamento termina por nos ensinar que os fins justificam os meios, portanto qualquer crueldade é justificável. Mas outra falha nos interessa aqui: em que medida podemos responsabilizar Sócrates por Stalin — um não existiria sem o outro —, ou São Paulo por Auschwitz? Em casos extremos assim, poucas pessoas atribuiriam muita responsabilidade, mas o fato é que não temos critérios para julgar até onde uma pessoa pode ser responsabilizada pelas ações de outra, se não considerarmos outras coisas além das consequências.

Uma melhor maneira de tratar essa questão é levar em conta as diferentes intenções morais dos eleitores. De fato, é assim que cada um de nós deseja ser julgado — quando tomamos decisões difíceis, queremos que outras pessoas levem em conta nossas intenções, que não julguem nossas ações apenas com base no que veem, que considerem também as várias dificuldades envolvidas. Historicamente, cristãos e pessoas de outras religiões cometeram e cometem muitas injustiças quando julgaram os praticantes das demais religiões, por considerarem apenas a maneira como vivem, dissociada das intenções e das muitas dificuldades que envolvem a vida humana — vindo a perceber que um avanço no diálogo só acontece quando as partes decidem parar de imputar culpa mutuamente. Quando julgamos as pessoas considerando apenas suas ações, cometemos muitas injustiças. A ética cristã nos ensina a considerar as intenções: “o Senhor pesa os espíritos” (Pv 16:2). Por isso, Cristo nos ensina a buscar a pureza de coração.

Nessa constelação de intenções, cada pessoa vota considerando certas prioridades — coisas que considera importantes ou urgentes, por exemplo —, e vota para que o candidato exerça bem o cargo. Presumivelmente, as pessoas não votam para que o candidato exerça mal o seu cargo, nem votam em ações exteriores ao cargo. Mas é a mesma pessoa, então não há como separar o exercício da função e a vida do candidato eleito.

Nesse paradigma cristão, não somos imediatamente responsáveis por consequências de nossas ações, mas sim pela nossa própria prudência em considerar as consequências. A virtude da prudência é a capacidade e atenção para usarmos os melhores meios para alcançarmos os melhores fins; prudência é providência, previsão. Mas ela é uma virtude pessoal, e uma pessoa prudente, no exercício mesmo de sua prudência, pode tomar decisões que tragam a consequências ruins, por vários motivos (cálculo errado, informações ruins). Duas pessoas prudentes podem chegar a conclusões contrárias. Elas só são culpadas por faltarem com a prudência; não são culpadas pelas consequências em si mesmas, desconsiderando as intenções.(A responsabilidade jurídica objetiva não funciona assim, e com razão, mas não é dela que tratamos aqui.)

Em 2012, na segunda eleição de Barack Obama, o brasileiro Mangabeira Unger atraiu atenção quando pediu que os eleitores progressistas americanos não votasem nele, sob o argumento de que Obama havia falhado em implementar a agenda progressista e precisava ser derrotado. Esse tipo de posicionamento público choca os mais “pragmáticos” e imediatistas, mas é um exercício de gratificação adiada: é preciso dar um passo atrás, num dado momento, para dar vários à frente depois. Esse é um exemplo de como a relação entre o voto e suas consequências é complicada. Nesse caso, o voto é visto como uma escolha estratégica.

Quando consideramos as diferentes intenções por trás dos votos, lidamos com uma geografia mental muito tortuosa: um voto pode significar apoio irrestrito ou um apoio moderado e parcial; pode significar apoio ao candidato, ao partido ou à ideologia; pode significar uma escolha pragmática pelo “mal menor” ou uma rejeição do poder corruptor do “mal menor”; pode significar repulsa moral ao opositor ou adesão ao grupo (corporativismo); pode significar uma escolha pessoal refletida ou delegação aos mais entendidos; pode significar algum tipo de protesto ou afirmação de interesses pessoas, interesses sectários, interesses comunitários; pode significar puro desejo de alternância ou mudança. Outros fatores envolvidos são a ignorância parcial — todos nós somos parcialmente ignorantes da política concreta —, a pressão moral, as diferentes hierarquias de valores, a insegurança, o medo, a ira, a afinidade pessoal. O que parece é que só podemos atribuir responsabilidade objetiva e unívoca ao voto quando assumimos algum tipo muito superficial de “psicologia pop”, onde toda decisão é óbvia para todo mundo.

É por isso que dizer que “presidiários votam em Lula” ou que “racistas votam em Bolsonaro” não nos dá nenhum motivo para pensar que a massa de eleitores apóia o crime ou o racismo. Isso é tão óbvio que é difícil não imaginar que haja desonestidade em quem faz esse tipo de generalização — desonestidade que, mais uma vez, não pode ser generalizada.

Quanto à questão da ignorância em particular, eleitores não são capazes de prever razoavelmente as situações todas com as quais os candidatos irão lidar, nem têm todos o mesmo instrumental político e a capacidade de acompanhar todas as notícias. Estamos todos em uma guerra de informações, e a maioria de nós só pode almejar dar um bom chute. O número de pessoas que votam nulo, em branco ou até se abstêm (e a atenção que essas pessoas recebem no segundo turno) é um bom índice de como as pessoas em geral votam insatisfeitas.

Dentre os votantes, há todo tipo de gente. A coisa muda de figura quando falamos não dos votantes, mas dos apoiadores, das pessoas que fizeram algum tipo de campanha, que influenciaram outras pessoas. Pois quando apoiamos um candidato, nós nós arriscamos a convencer um pequeno número de pessoas que podem influenciar outras. Nunca sabemos que impacto nossa influência pode ter, então assumimos um risco ao apoiar um candidato, e por isso somos, sim, responsáveis moralmente, quando havia chances razoáveis de prever os resultados.

Uma questão ligada a essa das intenções por trás dos votos é o problema recorrente não resolvido: até que ponto votar significa aprovar o comportamento dos candidatos? Aqui, os candidatos jogam nos dois times: no primeiro turno, tentarão convencer a todos de que são honestos, corajosos, honrados; no segundo, outras pessoas, falando em seus nomes, dirão a todos que não estamos votando em santos, que não precisamos ser criteriosos demais. (Aqui, embora não atribua esse tipo de responsabilidade ao voto, acredito que quem conecta o voto ao apoio moral ao candidato acerta em parte: não há como separar a prática política da virtude ética. O govenante é um líder nacional, não só um técnico à frente da máquina. A sociedade aberta, sem orientação para a virtude, é uma ilusão.)

No momento em que enpregamos essa lógica de responsabilidade pelo voto, criamos uma culpa eterna, irredimível. Não há nenhum meio de se livrar dela. Tratamos o outro lado como inimigo a ser desprezado. É fato que, nas sociedades modernas, não há nenhuma forma transparente de se livrar dessa culpa; só se livra dela quem se torna útil para a elite do momento.

A ideia de responsabilizar os eleitores é lançar a culpa sobre as pessoas que têm menos poder de decisão política, e, no processo, contribuir com a divisão social através do pecado de sedição. Devemos olhar para os mais poderosos (não só na política em sentido estrito) para encontrar os culpados. Ninguém estará lá assumir a culpa pelas consequências do consequencialismo, quando a tentativa de inculpar o outro lado produzir divisão ainda maior.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Dois Tipos Políticos na Tradição Cristã (ou: Do Direito Diabólico dos Reis)

Na história da teologia cristã, duas concepções políticas ideais se entrelaçaram e competiram de maneira mais ou menos consciente, uma de tipo mais platônico e a outra mais aristotélica. A diferença entre essas duas concepções está no lugar que a lei natural ocupa no pensamento político: ela serve para criticar as instituições existentes (o status quo) ou para explicá-las e fundamentá-las? Ela serve à mudança ou à manutenção?

Essas duas perspectivas encontram raízes na própria Escritura Sagrada. Por um lado, existe a tendência de exigir dos cristãos obediência às autoridades civis através de um reconhecimento de sua origem divina, como nas famosas palavras do Senhor a Pilatos no Quarto Evangelho ou no trecho também célebre da Carta aos Romanos. Mas também há um elemento crítico, nos trechos mais apocalípticos das Escrituras, como no “entre vós não é assim” (Mc 10:42-44) ou no ensino, de sabor cínico (no sentido filosófico), de que o motivo pelo qual os cristãos devem pagar impostos é não causar escândalo (Mt 17:25-27), ou ainda, magistralmente, no Apocalipse de São João, no qual o poder político imperial da Besta tem raiz demoníaca.

O primeiro tipo percebe um maior descompasso entre a natureza e as relações sociais existentes. Ontem eu citei o trecho em que São Gregório Magno escreveu na “Regra Pastoral” (II.6): “O homem, por sua natureza, foi colocado acima dos animais irracionais e não acima dos outros homens; por isso, lhe é dito que seja temido pelos animais, e não pelos homens. É ensoberbecer-se contra a natureza o querer ser temido por um seu igual.”

O “igualitarismo” comunicado nessas palavras, que olha para a natureza humana além e acima das convenções sociais, nos leva a perceber esses problemas de maneira mais atenciosa. Nessa concepção, não é natural (no sentido de que não emerge diretamente da natureza humana) que o homem esteja acima do homem, e ao menos há um motivo para repensar quando queremos colocar um ser humano acima do outro. Recordemos das palavras de Martin Luther King Jr. na Carta da Cadeia de Birmingham (1963), em que ele recorre à noção de lei natural para dizer (corretamente) que leis injustas não têm força de lei e não devem ser obedecidas.

Outro escritor cristão que expressa essa concepção mais platônica é, obviamente, Santo Agostinho, o qual, em sua Cidade de Deus, funde a crítica social apocalíptica ao idealismo platônico. Ele escreve (XVIII, 2):

“Estendida pela terra toda e nos mais diversos lugares, ligada pela comunhão da mesma natureza, a sociedade dos mortais divide-se com frequência contra si mesma e a parte que domina oprime a outra. Deve-se isso a que cada qual busca a própria utilidade e a própria cupidez e a que o bem que apetecem não é suficiente para ninguém nem para todos, por não ser o bem autêntico. Rende-se à vencedora a parte vencida, isto é, à dominação, preferindo qualquer tipo de segurança à liberdade.”

Aqui, Agostinho vê o poder político como, ao menos em parte, inerentemente opressor. Em termos que podem nos parecer uma crítica às sociedades modernas, Agostinho contempla uma realidade social movida por satisfação individualista, e, não sendo os recursos suficientes para todos, estabelece-se uma relação de dominação, de modo que a busca livre por satisfação termina na supressão da liberdade em nome da segurança. A sociedade aí está dividida; mesmo que ela tenha uma origem orgânica — “ligada pela comunhão da mesma natureza”, isto é, da natureza humana —, ela está em tensão.

É por isso que esses escritores cristãos não tinham dificuldade em ver problemas (e não-naturalidade) em instituições como a propriedade privada e, talvez numa proporção que nos parecerá insatisfatória, também à escravidão. Se os primeiros cristãos existiram inicialmente sob uma condição de hostilidade e parcial ilegalidade, mas também desde o começo estivessem ocupando espaços sociais que exigiam maior conformidade, seus olhos puderam se voltar mais facilmente para o que estava errado na sociedade romana, um tipo de cinismo forçado. Mesmo quando o império adere ao cristianismo, continua havendo a percepção de um hiato entre os ideais sociais e as realidades políticas.

O tipo aristotélico contempla as coisas de uma maneira diferente, profundamente orgânica. Talvez uma das melhores representações dessa concepção seja o “De Regno” de São Tomás de Aquino, no qual explica como a lei natural leva a humanidade a se agruparem e estabelecerem líderes sobre si. Nesse sentido, o pensamento Aristotélico não se propõe a corrigir as instituições, mas a explicá-las e justificá-las. Isso não significa que não haja um melhor (como na discussão entre os melhores regimes políticos), mas que não há uma maneira neutra e exterior de tratar as instituições. Embora isso crie certa tensão com o pensamento cristão e produza uma recepção apenas parcial (nunca desconectada do corretor neoplatônico), há certo “relativismo conservador” no aristotelismo: até mesmo a justiça natural (physikon dikaion) é de certo modo mutável, flexível, então ela se ajusta aos modelos sociais concretos.

De todo modo, no pensamento aristotélico, é natural que o homem esteja acima do homem. Mesmo São Tomás, que não abraça o aristotelismo acriticamente, deixa de lado as palavras dos Pais de que a propriedade privada tem origem (em parte) maligna e abraça os argumentos aristotélicos em favor de sua origem e manutenção. Na “Relectio sobre o Poder Civil”, Francisco de Vitória, escolástico espanhol contemporâneo de Lutero, reproduz o organicismo aristotélico:

“Havendo, pois, sido constituídas as sociedades humanas para esse fim, ou seja, para que uns levem as cargas dos outros, e sendo a sociedade civil, entre as sociedades, aquela em que com mais comodidade os homens se ajudam, segue-se que é a sociedade é, como diríamos, um convívio naturalíssimo e muito conveniente à natureza.”

Não quero sugerir que a recepção do aristotelismo político pela cristandade se resuma a conformismo e aceitação. O mundo do pensamento é mais complicado e, por mais que fechemos a boca, não fechamos os olhos. Afinal, o enxerto do aristotelismo se deu numa árvore platônica.

De todo modo, enquanto vê a sociedade política como mais natural, o aristotelismo talvez forneça aí um juízo mais acertado quanto aos fins naturais da sociedade. Francisco de Vitória nos diz, nessas palavras, que o fim da sociedade civil (como de todas as outras) é que “uns levem as cargas dos outros”. Recordemos aqui, por exemplo, as palavras dos reformadores de que o mandamento “Não furtarás” não apenas, pelo lado negativo, proíbe tirar o que é dos outros, mas exige um compromisso positivo em ajudar a prosperidade alheia. Isso é carregar os fardos alheios. Que distância em relação aos que veem a sociedade política como orientada principalmente ao fim da guerra entre os homens ou a manutenção da propriedade privada!

Essa teleologia política pode nos parecer pura propaganda conformista, se dissermos que a sociedade já o faz, sempre o faz, que “carregar os fardos uns dos outros” é um fim já alcançado, mas pode também, num reencontro entre platonismo e aristotelismo, ser visto como um objetivo a ser ainda buscado. Que belo fim!

Rev. Gyordano M. Brasilino

Culpa e Punição (em São Tomás de Aquino)

Na doutrina de São Tomás, a culpa jurídica (o merecimento de punição) e a culpa psíquica (a escolha do mal) estão inteiramente integradas, através de uma definição adequada de culpa e de punição.

Para ele, a culpa é a desordem da vontade para longe de Deus e na direção dos bens mutáveis (aversio ab incommutabili bono, et conversio ad commutabile bonum inordinata), ou, em outras palavras, a vontade aversa à caridade (id quod repugnat divinae caritati). Isso é o que distingue essencialmente o pecado mortal do venial.

Ora, como a culpa viola a Ordem Divina, ela incorre no débito de punição (reatus poenae), ou seja, a condição penal de réu. Para essa condição, São Tomás, em continuidade estrutural com Santo Anselmo, vê duas soluções: a punição (em sentido estrito) e a penitência. No entanto, a análise de São Tomás é mais profunda que a de Santo Anselmo porque considera a raiz das coisas na alma humana e não só as relações exteriores com Deus.

A punição é essencialmente um sofrimento que contraria a vontade. Se a vontade tem um “excesso”, desejando o que não podia, ela sofre de volta um “decesso”, sofrendo o que não deseja. Essa é a “compensação penal” (recompensatio poenae), uma recalibração da vontade à luz da Ordem Divina. Ou seja, o castigo não é autônomo em relação à culpa, mas permanece atrelado a ela, por conta de uma definição adequada da culpa.

Essa é a razão por que, em sentido estrito, quem é “punido” voluntariamente não é punido, antes é “penitenciado”. A penitência é um sofrimento voluntário, uma pena medicinal (em benefício de si ou de outras pessoas); precisamente por ser voluntário, é um sofrimento menor que a punição. Nesse sentido, não é quem aplica a punição, e sim quem a sofre, quem decide se o que sofre é punição ou penitência.

Essa também é a razão por que uma pessoa não pode sofrer, com justiça, a imputação dos pecados de outra pessoa, pois a culpa é uma desordem da vontade. Imputar culpa a quem não tem a vontade desordenada é mentir. Podemos, no entanto, sofrer com elas, nos penitenciar por elas, porque a caridade une pessoas diferentes (amicitia ex duobus facit unum per affectum).

Por isso, se a culpa é um movimento da vontade para longe do Bem Supremo e desordenadamente na direção dos bens passageiros, destruindo a caridade, São Tomás descreve a justificação como o processo inverso, de movimento para longe do pecado e na direção de Deus, por infusão da caridade. Quando ele define bem o problema, a solução precisa ser transformativa. O “forense” não tem autonomia.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Quatro coisas que o pastor não é

Quatro coisas que o pastor não é

Uma palavra se tornou muito comum para descrever o Ofício pastoral: cuidado. Um pastor cuida de pessoas. Essa palavra é muito apta para comunicar a atenção, a responsabilidade e o afeto do ministério.

No entanto, é bem óbvio que o cuidado pode significar coisas diferentes, e nem tudo está dentro da missão pastoral. Cuidamos de pessoas, mas em que sentido? O que torna esse cuidado necessário? Qual é o problema central que o pastor procura resolver — ele conduz o rebanho em que direção?

A maneira clássica de responder é: o pastor cuida de suas ovelhas para que elas alcancem a salvação — ou seja, ele fornece os meios para que elas façam e recebam o que é preciso. Ele corrige e fortalece sua fé, ele encoraja e reordena suas ações, ele lhes entrega a graça de Deus nos sacramentos, ele conduz o culto divino para união da comunidade com Deus. Se só entra no reino dos céus quem faz a vontade do Pai, o pastor é quem leva as pessoas por esse caminho.

Como lemos em 1 Timóteo 4:16: “Tem cuidado de ti mesmo e da doutrina. Continua nestes deveres; porque, fazendo assim, salvarás tanto a ti mesmo como aos teus ouvintes.” O pastor se preocupa com sua própria salvação e com a do seu povo.

Mas quando a salvação deixa de ser um problema sério e é dada por garantida — seja porque existe uma segurança eterna de que ela não se perca, seja porque ela é muito fácil de ser conseguida, seja porque ela independe da mediação das pessoas, ou até porque a comunidade deixa de se importar com salvação —, a missão pastoral será atraída por outras funções, e o pastor se tornará um terapeuta, gestor, professor ou ativista. Várias doutrinas diferentes podem levar a essa mesma impressão.

Em quase todas essas novas situações, o pastor procura trazer soluções divinas ou um ímpeto divino (e muito senso comum) para problemas mundanos. Se forem problemas interiores e comportamentais, será um “terapeuta”; se forem problemas exteriores e sociais, será um “ativista político”; e se forem problemas de administração eclesiástica, será um “gestor”. Não é difícil imaginar outras funções para o pastor, a partir desses exemplos.

É claro que essas funções podem ter muito a ver com a função do pastor. Certamente ele lida com a vida interior e com o comportamento, e precisará, de várias maneiras, administrar a igreja sob sua regência. Em várias situações, a voz dos pastores será importante para falar contra as injustiças deste século. Com certeza, os problemas mundanos têm um impacto nas questões do espírito e vice versa.

Aliás, no caso do professor, ensinar é, sem dúvida, uma das funções que a própria Escritura atribui ao pastor. É da boca do sacerdote que deve proceder a instrução da lei do Senhor, como diz o profeta. Embora não descreva tudo o que está na essência do ministério, ensinar com certeza é parte dessa essência.

Um pastor não está, por isso, proibido de ser essas coisas, mas nenhuma delas é função do pastor enquanto pastor — todas elas são compartilhadas com outros membros da Igreja e da sociedade, que frequentemente as desempenham com maior aptidão.

A missão do pastor é a salvação das almas.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Os Pais da Igreja provavelmente vão te decepcionar

Os Pais da Igreja serão uma decepção para qualquer pessoa que procure uma defesa irrestrita de alguma política moderna. A despeito das diferenças entre eles, as tendências deles simplesmente não se encaixam no que alguém esperaria hoje.

• Eles eram “antiproprietaristas”, no sentido de conceberem a propriedade privada e o enriquecimento como resultantes de convenções sociais e tendo, ao menos em parte, origem maligna. Além disso, havia, óbvio, a boa e velha crítica ao pecado da usura e prática abudante da misericórdia.

• Eles viam o trabalho como sofrimento e desprezavam a preguiça.

• Eles não viam a liberdade como capacidade de fazer qualquer coisa desimpedidamente, mas como o desimpedimento para buscar o Bem Supremo.

• Eles certamente acreditavam em uma moral bastante robusta quanto aos costumes, e iam na contramão de qualquer liberação sexual, mas eram muito tolerantes com condições que há poucas décadas eram tratados como “degeneração”. A sua transigência com o concubinato, e até proteção eclesial dos concubinos — que comungavam —, era sintomática, e não mostrava, em nenhum lugar, consciência de ser exceção pastoral. Essa posição é desconcertante quando justaposta à sua abordagem estridente e intransigente contra o adultério.

• Não se encontrará nada nos Pais que pareça uma separação entre política e religião. (Alguém tenta forçar algo assim em Santo Agostinho, mas basta estudar sua abordagem da controvérsia donatista para perceber que não.)

• Eles eram moderadamente antinacionalistas, ou, melhor dizendo, fortemente internacionalistas (como bons platônicos). Os Pais acreditavam, de maneira geral, que a separação entre as nações, e especialmente as guerras entre elas, resultavam em parte de um cativeiro demoníaco. A ênfase da doutrina patrística estava na irmandade universal (sem detrimento, mas justamente em função, da irmandade eclesial).

• Eles não eram capazes de viver sem uma sólida teologia da desobediência civil.

• Tanto antes como depois de Constantino, eles eram também moderadamente “imperialistas”, no sentido de verem maior vantagem em que os diversos povos estivessem unidos sob mesmo governo, justamente em razão da humanidade comum e do “antinacionalismo”. Além disso, como vários deles acreditavam que o Império Romano era o “katechon” que impedia o fim do mundo, desejavam a continuidade perene do Império. As pessoas se surpreendem com o quanto Tertuliano, o proto-tolstoísta, e Eusébio, o ideólogo constantiniano orgânico, eram semelhantes. (Quem não entende essas coisas verá 313 como uma tragédia inexplicável.)

• Eles tinham uma noção vaga mas certa de progresso, no sentido de acreditarem que certo avanço civilizacional no mundo estava acontecendo em razão do Império e da expansão da religião cristã.

• Pelos mesmos motivos, eles eram, ainda que em graus variados, fortemente contra a guerra. (A doutrina da “guerra justa”, como perceberá qualquer pessoa que tente aplicá-la, mais entrava as guerras do que as justifica, pois acaba colocando barreiras normalmente impraticáveis, particularmente no ius in bello.)

Rev. Gyordano M. Brasilino