A Epifania é uma mistagogia

O tempo da Epifania (Tempo Comum I), entre o Natal e a Quaresma, não é simplesmente uma zona neutra verde, como um “sorbet” para limpar o paladar. Por estar entre a Encarnação e a Ressurreição, entre a chegada do Rei e sua vitória definitiva, esse tempo nos coloca como discípulos, no meio do caminho, sendo formados por Jesus, acompanhando o seu ministério e seus atos.

Por isso, na forma atual, a Epifania começa com Cristo sendo manifestado aos três reis-magos (pagãos que chegaram a ele através da sabedoria da contemplação dos céus), a João Batista (o maior profeta dos judeus vendo o milagre descer dos céus à terra) e aos seus discípulos (através do milagre Caná provocado pelo pedido perseverante de Maria). Essa tripla epifania revela Cristo como Filho aos representantes dos três povos. “Tu és o meu Filho amado” (Lc 3:22); “manifestou a sua glória, e os seus discípulos creram nele.” (Jo 2:11).

Aos reis, ele se revela como Rei. Ao profeta, ele se revela como o Profeta. A quem ele se revela como o Sacerdote, senão àqueles que ele transforma em sacerdotes?

Neste ano C (Lucas), no meio do caminho entre a Epifania e a Transfiguração, Cristo se coloca como cumprimento das profecias antigas e é rejeitado em Nazaré. Antes mesmo de formar sua primeira comunidade, ele já diz a que veio, já coloca o programa da sua missão para os pobres e oprimidos, trazendo a justiça do Deus de Israel, tão esperada. Ele mostra, com isso, a necessidade de avançar para além da sinagoga de sua época, restrita ao ensino da Lei, e de como Deus, ao ser rejeitado, leva seus milagres aos estrangeiros e rejeitados.

Então Jesus sobe o monte, escolhe seus doze apóstolos, desce à multidão dos discípulos e, para essa nova comunidade, traz sua mensagem de esperança para os pobres, famintos, sofredores e perseguidos — a esperança do Reino de Deus, que traz reviravolta ao mundo — e, contudo, uma mensagem de amor aos inimigos, amor radical, amor reconciliador, uma mensagem de misericórdia que nos ancora na misericórdia transformadora do Pai, e que nos tira da lógica das recompensas meramente humanas e passageiras.

São os discípulos que primeiro aprenderam essas coisas que agora podem subir o monte para contemplar o Reino de Deus vindo com poder, e então descer para enfrentar os poderes das trevas que atacam os pequeninos, a confusão do mundo. Eles precisavam primeiro ter o coração purificado em sua esperança e em seu amor.

Esse tempo termina com a manifestação máxima: a Transfiguração, na qual os três discípulos de Cristo (como os três magos) têm uma visão de Cristo transfigurado em vestes brancas (as roupas místicas dos anjos e sumo-sacerdotes com acesso à Visão Divina). Repetindo a tripla Epifania, eles “viram a sua glória” (Lc 9:32) e ouviram: “Este é o meu Filho, o meu eleito; a ele ouvi.” (Lc 9:35). Os discípulos escolhidos, o círculo íntimo, têm acesso ao Mistério, ao Segredo.

A seguir vem, então, a Quaresma, na qual saímos a enfrentar o demônio, e, tendo em nós a memória da Glória, caminhamos para carregar a Cruz. Enquanto a Epifania nos eleva, a Quaresma nos reduz.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Ucrânia escatológica?

Eu lembro que, na adolescência, quando comecei a frequentar uma igreja evangélica, eu ouvi pela primeira vez alguém falar da vinda de Jesus e dizer que tudo estava muito perto, que os sinais mostravam que faltava pouco tempo. Eu fiquei impressionado com o fervor escatológico de pessoas que com certeza sabiam muito mais da Bíblia do que eu.

Mas lembro de ficar chocando quando ouvi um membro mais velho e experiente da igreja dizer serenamente algo como: “não está perto, vai demorar ainda”. Pareceu-me que aquele era apenas um senhor sem fé, que perdeu o vigor ao longo da caminhada. Perdoe-me, eu era adolescente.

Ocorre que uma pessoa de idade já ouviu o mesmo discurso várias vezes e, por isso, está mais atenta à situação real. Já viu as mesmas coisas acontecerem, e até coisas mais graves que as de hoje, que lhe pareciam sinais claros da Parusia, 20, 30, 50 anos antes. E, quando jovem, talvez tenha ouvido o mesmo de pessoas que viveram há um século.

A idade confere certo senso histórico, mesmo que limitado. As pessoas podem fechar os olhos para esse senso ou podem perceber as coisas de maneira mais cuidadosa, sem deixar que a paixão do momento lhes turve o juízo. O conhecimento histórico aprofunda esse senso . Vemos os mesmos discursos ao longos dos séculos — o mesmo fervor que, no fundo, é fogo de palha e que não produz frutos de santidade duradouros.

Pois bem, toda vez que acontece qualquer evento de relevância geopolítica global, especialmente guerras, mas também doenças e crises, você vê pessoas ligarem o alarme do fim dos tempos. E essas pessoas estão certas, ao menos em parte. Os sinais de morte que nos cercam nos lembram sempre de que a aparência desse mundo passa, e de que devemos nos lembrar de morrer. Essa é uma verdade permanente. A advertência é permanente. Se atentarmos para o Discurso Apocalíptico de Cristo (Mc 13), vemos que a maioria das coisas que ele diz é bem pouco específica. (Tanto que Lucas mudou o texto numa direções mais clara.)

É que os “sinais bíblicos” não são coisas que acontecem apenas uma vez. Mesmo dentro da Bíblia, várias profecias são reiteradas e atualizadas para as situações dos novos profetas. Esses sinais e profecias expressam a circularidade da história, os altos e baixos de uma narrativa que teve um começo e terá um fim.

O Venerável Beda ensina que a lição do Apocalipse diz respeito às guerras e sofrimentos interiores da Igreja, coisas que podem acontecer em vários momentos diferentes, como o seu comentário dá a entender. Por isso, uma leitura idealista das profecias, que observe padrões reiterados de uma mesma batalha contínua, nos livra de ingenuidade histórica, uma eterna adolescência longe da sobriedade.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Incondicional ou condicional? O perdão transformador de Deus.

Eu sinto afinidade tanto com as pessoas que dizem que a misericórdia de Deus é incondicional como com aquelas que dizem que ela é condicional.

Com certeza, a misericórdia de Deus é incongruente e desproporcional a qualquer coisa que haja em nós, e nos encontra em todas as formas da nossa miséria humana — em nossa debilidade, vulnerabilidade, pobreza, fraqueza, ignorância, prisão, pecado. Essa misericórdia é a essência divina eterna agindo em nosso favor e benefício, suas “entranhas de misericórdia”. A bondade de Deus alcança mesmo os ingratos, ou seja, aqueles que não correspondem a ela.

Por isso, erram aqueles que dizem a misericórdia de Deus foi de algum modo comprada pela morte de Cristo. Não, essa misericórdia é eterna, nós fomos criados por misericórdia — só um Deus infinitamente misericordioso estaria disposto a nos criar.

Por outro lado, a Escritura diz muito sobre como Deus perdoa os que perdoam, e não perdoa os que não perdoam, de como ele é misericordioso com os misericordiosos e bom para com os bons, de como ele dá graça aos humildes e justiça aos puros de coração, de como ele nos purifica dos nossos pecados quando os confessamos e deixamos.

Essas condições também são esquecidas por aqueles que acham que nosso perdão foi de algum modo “comprado” por Jesus. “Já foi pago” é o mantra de quem acha que não deve fazer nada.

Essas condições existem porque elas estão na essência do que o perdão é. O perdão divino não é mera “impunidade”. Ele é reconciliação, a restauração da criatura à comunhão divina, e, nesse sentido, só pode existir se a comunhão for realmente comunhão. Elas existem como condições da perspectiva da criatura que coopera com Deus, mas, da perspectiva do Deus que se doa em infinita misericórdia, não são condições.

Não é algo como: “Eu só posso lhe perdoar se você fizer isto e aquilo”. Mas sim com: “Eu vou lhe perdoar, e isso significa que isto e aquilo devem acontecer com você”.

Isso significa que, quando abrimos mão do orgulho ferido para perdoar nossos ofensores, quando ignoramos nosso senso de posse diante dos nossos devedores, quando deixamos de lado a vergonha causada pelos nossos humilhadores, quando deixamos de lado a ira como reação de autoproteção, quando tratamos com compaixão aquele que precisa de compaixão, quando doamos aquilo que queremos para nós mesmos — em suma, quando abrimos mão de todas as paixões que nos impedem de perdoar e amar —, nosso coração se abre para a cura da graça.

Essa cura é o perdão de Deus, colocando em ordem o nosso coração. O perdão de Deus é transformação.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Sobre iconoclastia

O livro do Gênesis tem, nos seus dois primeiros capítulos, duas famosas narrativas da criação. Eu vejo uma semelhança importante entre elas. Um traço comum óbvio é o relato da criação do homem, que ambas valorizam, mas há algo mais, que diz respeito a como o homem foi criado. Enquanto a primeira história diz que o homem é criado como “imagem” de Deus, a segunda mostra um processo semelhante à construção de um ídolo: Javé forma o homem do “pó da terra” (“barro” em outros textos) e sopra nele o fôlego divino.

Para os antigos, o ídolo não era apenas uma representação visual, antes continha, por força de transmutação ritual, o espírito da divindade, e é com esse espírito que os adoradores se relacionavam. Então o ser humano é criado como uma imagem de Javé. É possível que esteja aí a razão da justaposição das duas narrativas.

Mas não podemos dizer que o homem tenha sido criado como um ídolo. Há uma diferença metafísica importante entre o ídolo e a imagem. O ídolo é o receptáculo de um espírito limitado, portanto é uma realidade auto-contida, uma “prisão”, por assim dizer. Mas a imagem, enquanto símbolo genuíno, aponta para a realidade transcendente e incontida. O homem é criado, nesse segundo sentido, como um sinal da realidade superior — o que justifica seu governo sobre os animais. Ele é como o Templo, aquela grande imagem de Javé. O ídolo aponta para dentro de si, a imagem aponta para além de si, para a realidade superior da qual participa.

Não me refiro aqui à veneração de imagens artísticas, mas da relação com pessoas.

Nós não sabemos nos orientar no mundo sem essas figuras que apontem para além de si mesmas, essas pessoas de humanidade mais saudável. Particularmente na fé. Nós precismos de mestres, de doutores, de pessoas que nos orientem, que nos guiem. Confiar nessas pessoas não é idolatria, precisamente porque elas não apontam para si mesmas como realidades fechadas, mas mostram o caminho superior. Não aprisionam, antes libertam.

Certo tipo de iconoclastia tem dificuldade de ver as pessoas como sinais da realidade superior, e, por isso, tem medo das autoridades em geral. Tudo lhe parece idolatria, parecem tomar o lugar de Cristo aqueles que, no fundo, apontam para Cristo.

Há algumas semanas, vi o vídeo de um pastor famoso que dizia que não devemos obedecer a nenhum pastor, só à Bíblia — quando a Bíblia manda obedecer os pastores. Nesse exato momento, esse pastor se tornou um “ídolo”, fechando as pessoas para a real mensagem da Bíblia, e transmitindo, no lugar da Bíblia, sua própria mensagem. A iconoclastia pode se tornar um tipo muito estranho de idolatria.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Via Remotionis

Toda verdadeira ciência procura o universal por trás do particular, a unidade subjacente à multiplicidade. Os muitos experimentos e comparações servem para averiguar, da maneira mais precisa possível, os traços e propriedades dos entes, não só distinguindo-os das circunstâncias acidentais, mas também assinalando a maneira como os entes se comportam em meio a elas. É um trabalho de remoção daquilo que é mais exterior aos entes, para uma descrição do mundo.

Um passo além é dado quando nos perguntamos, não mais pelas características dos entes, mas por aquilo que é sua essência, sua natureza mais íntima, aquilo que cada coisa necessariamente é, e que não pode deixar de ser sem deixar de existir — o momento em que existência se confunde com a essência. O que é, quid est, ti estin — esse é o terreno da metafísica, que não para nas essências dos entes, mas chega mesmo a perguntar por aquilo que todos os entes têm em comum enquanto entes, os “universais” dos universais, o Um, o Verdadeiro, o Bom, o Belo — os transcendentais —, assim como o desaparecimento dessas coisas no não-ser. Esse processo abstrativo é, também, uma forma de remoção.

Mas é possível ir além. Quando removemos desses transcendentais todos os traços da existência entitativa múltipla, removendo os próprios entes e contemplando sua identidade profunda, chegamos ao Absoluto, ao Infinito, ao Supra-Essencial, no qual todos vivemos, nos movemos e somos, que é a raiz última dos entes e que, mesmo que não idêntica a eles, não obstante lhes dá o ser por participação. O Absoluto é tão infinitamente “removido” de tudo o que compreendemos que nosso pensamento só sabe dele esse “percurso de remoção”, esse movimento eterno, do qual só temos notícia dizendo o que ele não é — que não é finito, que não é temporal, que não é composto, que não é limitado —, e que, embora ele não seja o não-ser, nosso pensamento, ao se dirigir a ele, reconhece apenas a Luz Infinita tão imensa e insuportável que nos parece o mesmo que a escuridão.

Nesse momento, nosso único caminho, nossa “via de remoção”, agora já começa a falhar — pois o Infinito é Um, o Um é múltiplo, a diferença é semelhança, e só nos resta o conhecimento tácito de nossa experiência de delumbramento, tremor e “thambos” a dilatar nosso espírito ante o Bem Supremo que nos atrai supremamente.

Todo esse percurso de remoção é uma caminhada do mais profano ao Sagrado Absoluto, o Santo dos Santos da existência, afastado de tudo e contendo tudo.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Horizonte (poema)

O Amor é o fim do desejo.
O desejo acaba no Amor consumado,
por isso busca o Amor,
capaz de satisfazer todo o desejo.
Não os amores, mas o Amor.
Pois o Amor nunca acaba,
então o desejo finda no Amor
que nunca finda,
que nunca pode ser agarrado e dominado,
mas apenas gentilmente abraçado.
Os olhos se voltam para os horizontes,
mas o coração só reconhece um horizonte
— uma ilha distante,
uma montanha secreta que toca os céus,
um baú escondido entreaberto,
uma árvore imensa,
atravessando, num lampejo,
o pensamento desapercebido.
Então o desejo é afirmado e é negado,
sua afirmação é sua negação,
seu não é seu sim,
pois só deve aceitar o que leve ao Amor,
só pode aceitar o Para Onde
que não pode ser encontrado
e que está por toda parte.
Qualquer outro bem que não o Amor
será infinitamente enganador.
O desejo é a finitude infindável do coração.

Rev. Gyordano M. Brasilino

São Paulo, o Platônico

Quem estiver envolvido nos estudos das cartas e do pensamento do Apóstolo Paulo já deve ter se familiarizado com algumas de suas caracterizações mais famosas, como o Paulo Luterano, o Paulo Apocalíptico ou o Paulo Judaico, representações muito importantes que enriquecem a leitura que fazemos dos seus escritos misteriosos e mistéricos, que, desde muito cedo, sucitaram controvérsias.

Eu pretendo aqui cometer a indiscrição de apresentar, sugerir e defender, em linhas gerais, o Paulo mais absurdo, mais odiado e mais correto de todos: São Paulo, o Platônico.

Ou seria Paulo, o Impuro? A sugestão de que Paulo tenha algo a ver com o platonismo — que escandalizaria um sujeito ruim da cabeça como Tertuliano — não deveria chocar nenhuma pessoa de nossa era eclética e pós-moderna, cética quanto a purismos de todos os tipos. Não é segredo que o médio-platonismo judaico de Fílon de Alexandria tenha preparado o terreno para muito da linguagem teológica e cosmológica do Novo Testamento. Você não lerá o Prólogo do Quarto Evangelho sem se expor, candidamente, a essa influência corruptora. Ou algo parecido, também, naquele universo tão platônico que é a Carta aos Hebreus.

Mas, funestamente, parte da Teologia Bíblica ainda se conduz segundo os paradigmas de um pensamento moderno atrelado a uma antropologia de culturas impermeáveis e estanques, sem a porosidade do “mundo real” — como quando os sábios coloniais do século passado descreviam a “mente primitiva” com uma fascinação hipnótica, evoluída e condescendente, para então lançá-la em algum museu do pensamento. A “mente hebraica” e a “mente grega” são duas auto-ilusões com as quais Wittgenstein poderia se entreter, escusadamente, mas que não deveriam deter qualquer pessoa disposta a entender algo daquele caldeirão fervente que foi o tempo do judeu Yeshua’ bar Yosef e dos seus emissários. (Antes que me acusem de cinismo, lembrem que a universalidade da razão é tão “imperialista” quanto a sua negação.)

Vamos a Paulo. Em I Coríntios 9, o doutor dos gentios descreve o percurso cristão através da imagem do atleta ou competidor (agōnizomenos), aquele cuja arte consiste em dominar o próprio corpo — suportando dores e privações, negando a própria comodidade em nome de uma vitória ideal. Essa imagem é usada para indicar a dominação que deve haver entre duas dimensões de nossa própria pessoa, em busca do ideal eterno: “eu espanco (hypopiazō) e escravizo (doulagōgō) meu corpo (v. 27)”. A imagem é realmente forte e perturbadora, e, se é óbvio para nós que Paulo não se refere a um tipo de autoflagelação, a força das palavras sugere um domínio não-pacífico, um antagonismo em nossas entranhas. Uma dimensão nossa excerce força sobre a outra, num dualismo existencial. Mas o vigor das palavras paulinas não é facilmente percebido numa cultura como a nossa, que se abre unilateralmente à aceitação do corpo. Paulo tem algo muito importante a dizer em favor da aceitação do corpo, como veremos, mas essa tensão existe e deve ser reconhecida.

Essa luta com o corpo era conhecida de Platão, especialmente quando o lemos para além das sínteses e simplificações manualescas. Para um pensamento que tanto preza a alma e tanto despreza o corpo, isto é, para um pensamento que enfatiza a relação dual e hierárquica entre essas dimensões humanas, Platão estava muito consciente de como nossas almas são afetadas e limitadas pelo nosso corpo — de como nossas almas não são, durante esta vida, totalmente independentes do corpo. O envelhecimento, o cansaço, a doença, a fraqueza, a escassez, as necessidades e a limitação física, dentre tantos outros fatores corporais que preocupavam Platão e apareciam como restrições ao imenso poder da alma, não são problemas criados por ele, mas são parte daquilo que todos nós enfrentamos (em níveis muito diferentes), e estão incluídos naquilo que Paulo chama de “corpo de humilhação” (Fp 3:21), que morre “em corrupção… em ignomínia… em fraqueza” (1Co 15:43–44) — em suma, debaixo daquilo que Paulo chama de “morte”. Nesses contextos, como em 1Co 9, podemos dizer com convicção que, ao dizer “corpo”, Paulo quis dizer “corpo”. O Platão mais maduro também tinha consciência da possibilidade de domínio do corpo.

Mas o que é o corpo para Paulo? Antes de conjecturarmos sentidos altamente refinados e sutis para palavras como “corpo” (sōma), “carne” (sarx), “espírito” (pnevma), “alma” (psychē) e “entendimento” (nous) — como faz Bultmann em sua TNT, recorrendo à linguagem fenomenológico-existencial, sendo seguido depois por conservadores e liberais —, devemos nos perguntar se teria sido um sacrilégio linguístico demasiado atroz, para o rabino Saul, usar essas palavras no mesmo sentido vago, mas cosmologicamente significativo, que elas tinham para aqueles ouvintes helênicos e helenizados de Roma, Corinto ou Colossas — se aqueles cristãos foram obrigados a um léxico totalmente novo, ou antes o evangelho se adaptou à idiomática vernácula. Não me encontro entre os que, sem respeito pela etiqueta, queiram sugerir que Paulo não teria consciência da (suposta) diferença.

Ao lermos Paulo platonicamente, não temos por que mostrar qualquer vergonha de expressões como “Mortificai os vossos membros que estão sobre a terra” (Cl 3:5), “se mortificardes as obras do corpo” (Rm 8:13), “deixar este corpo” (2Co 5:8), “corpo do pecado” (Rm 6:6), “Não reine, portanto, o pecado em vosso corpo mortal” (Rm 6:12), “carne do pecado” (Rm 8:3) ou “sou escravo… segundo a carne, da lei do pecado” (Rm 7:25), como se elas não significassem o que parecem significar. Por isso também — e me desculpem os entusiastas do Paulo Apocalíptico —, não precisamos ter medo de ler o pnevma, nos textos ambíguos de Romanos 8, como significando o espírito humano (o “homem interior”) que deseja libertar-se da mazela do corpo, a mesma coisa que Paulo conclui em Rm 7:25. O mesmo em Gl 5:17, quanto à batalha entre carne e espírito. O corpo que precisa de redenção ou libertação (Rm 8:23) é o corpo que está aprisionado, cativo, sujeito ao domínio dos principados e potestades. Não que o corpo, enquanto corpo e enquanto material, seja mau — ele está sob escravidão, é vítima. Nesse esquema, é muito natural entender por que Paulo associa tanto a circuncisão à “carne” — que diferença pode fazer, para um platônico, uma marca corporal? O judeu é o judeu interior, que não confia na carne.

O jogo de Platão, dos platônicos e dos gnósticos está dentro do jogo de Paulo. O problema que eles veem ele também vê, mas ele tem uma narrativa mais ampla, que dá muito mais sentido a tudo. Um dos problemas do platonismo histórico — ao menos na versão mais conhecida — é a “eternidade do mundo”, pois ela significa que a existência material mais baixa tenha em si um traço da condição mais elevada e eterna, rompendo o senso de gradação hierárquica. A narrativa judaica ou cristã da Criação e da Ressurreição desfaz esse problema do platonismo. Agora o este mundo sublunar tem um começo histórico e tem um fim (telos), um senso de narrativa em três atos. Então o problema platônico do corpo é um episódio, não o primeiro nem o último, do drama humano. Paulo aprimorou o platonismo: o fim último não é a alma liberta do corpo, mas o corpo transformado, celestial e pneumático (1Co 15:44–49), liberto da escravidão. A narrativa cósmica não é de uma antítese eterna, mas daquela síntese última e eterna, daquele retorno à origem que tanto inspirou os platônicos cristãos, como São Gregório de Nissa e João Escoto Erigena. Platão não era capaz de dizer, com máxima clareza, que as coisas visíveis são temporais e as invisíveis são eternas. O platonismo de Paulo é mais platônico que o platonismo de Platão.

Por isso, Paulo não precisa depreciar o corpo e pode mesmo dizer que o pecado contra o corpo é muito sério, e que o corpo é feito para o Senhor, e o Senhor é para o corpo (1Co 6:13). Os que usaram o corpo para o pecado devem agora dominá-lo e usá-lo para servir à justiça (Rm 6:19). Pois existe a Ressurreição, que ressignifica toda a experiência corporal humana. Como na Alegoria da Caverna, a realidade presente na religião israelita é sombra do “corpo” que há em Cristo (Cl 2:17). Por outro lado, enquanto Paulo nos dá motivos para a aceitação universal do corpo, ele também sinaliza o problema universal do corpo.

Assim, é fácil ver que as preocupações de Paulo não eram desconectadas daquelas do mundo gentio para o qual ele se colocou como mestre. Paulo não é menos semítico nem menos cristão por ser platônico. Essas três coisas não se excluem mutuamente, porque estão em terrenos diferentes, mas é muito claro que, para Paulo, Cristo é o centro de tudo — o centro da Escritura e da esperança de Israel, o centro da Sabedoria. O Paulo Platônico é um Paulo Judaico, de um judaísmo amplo e exuberante, capaz de se manifestar na linguagem quase mística do discípulo de Sócrates. Ele também não deixa de ser um Paulo Apocalíptico, porque a liberação do corpo é a irrupção do reino escatológico para julgar os poderes contrários e rebeldes.

Por isso, não desanimamos; pelo contrário, mesmo que o nosso homem exterior se corrompa, contudo, o nosso homem interior se renova de dia em dia. Porque a nossa leve e momentânea tribulação produz para nós eterno peso de glória, acima de toda comparação, não atentando nós nas coisas que se veem, mas nas que se não veem; porque as que se veem são temporais, e as que se não veem são eternas. Sabemos que, se a nossa casa terrestre deste tabernáculo se desfizer, temos da parte de Deus um edifício, casa não feita por mãos, eterna, nos céus. E, por isso, neste tabernáculo, gememos, aspirando por sermos revestidos da nossa habitação celestial; se, todavia, formos encontrados vestidos e não nus.” — II Coríntios 4:16–5:3

Rev. Gyordano M. Brasilino

Graça? É isso o que diferencia o cristianismo?

Às vezes você vê pessoas definirem a diferença da religião cristã como sendo o conceito de “graça”. A religião cristã seria religião de graça, as outras religiões seriam religiões de obras.

As pessoas geralmente o fazem sem saber que grande parte daquilo que chamamos de graça é encontrada, com o mesmo nome ou com outros nomes, em outras religiões — sobre as quais se tem um entendimento superficial e caricaturado —, e também sem considerar que a própria noção de graça é disputada entre os cristãos. Usando a tipologia de Barclay (2015), não existe acordo total sobre a superabundância, singularidade, prioridade, incongruência, eficácia e não-circularidade da graça. Praticamente nenhum cristão enfatiza essas seis dimensões ao mesmo tempo — eu diria até que tentar fazê-lo é um erro.

A diferença central da religião cristã não está na noção abstrata de graça, mas na maneira como essa graça se manifesta na história redentiva sinalizada no Credo. Como escreveu São Paulo, registrando uma fórmula primitiva da regra de fé:

Antes de tudo, vos entreguei o que também recebi: que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, e que foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras.” (1Co 15:3–4)

A história do Deus-Homem que morre pelos nossos pecados, é sepultado e ressuscita ao terceiro dia, como um cumprimento da esperança das Escrituras de Israel, com todas as implicações (soteriológicas, eclesiológicas, escatológicas…), esse é o diferencial da religião cristã.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Deserto, Acídia e Noite Escura da Alma

É importante não confundir três coisas: deserto, acídia e noite escura. (A confusão que envolve a segunda tem a ver com inexperiência, enquanto a confusão que envolve a terceira tem mais a ver com linguagens divergentes.)

(I) Deserto é período (dias, meses, anos) de provação no qual há maior aridez, diminuição do prazer imediato nas coisas espirituais e da recompensa instantânea. A obediência permanece, mas ela é mais difícil e custosa. Desejamos um rio, mas lutamos por uma gota. Tentações são mais explícitas, naquilo em que estamos fragilizados. O diabo procura lançar dúvidas e confusão espiritual. Todo cristão passa pelo deserto em algum momento. Não resulta de um pecado nosso específico (não é uma punição), embora seja importante para que conheçamos os nossos pecados e forças, pois o deserto nos ajuda a desnudar nossa condição espiritual, pois faz cessarem certas emoções que ocultam nossos problemas.

(II) Acídia não tem a ver principalmente com as circunstâncias que nos provam, mas com o nosso coração. Acontece todo o deserto em nosso redor, mas a acídia envolve certo desespero ou aceitação da distância em relação a Deus. Ela é uma paixão da carne sobre a alma, mas envolve também desobediência e consentimento, uma desistência de lutar no deserto, portanto com algum grau de rejeição à graça e abandono da continência do Caminho, em busca da comodidade. Na maior parte das vezes em que passamos pelo deserto, especialmente quando mais inexperientes, nós caímos em algum grau de acídia. Essa desistência é muito perigosa, porque pode levar à apostasia: você primeiro desiste do amor, depois desiste da esperança e, por fim, se não se arrepender, desiste da fé.

(III) A Noite Escura da Alma é uma forma de deserto, mas é mais profunda. Não é uma experiência de todos os cristãos, mas daqueles que já alcançaram um aprofundamento místico, certo grau de perfeição acima da maturidade, e que, por estarem mais livres das paixões comuns, sofrem uma provação mais severa, na qual devem simplesmente confiar em Deus.

Rev. Gyordano M. Brasilino

O Fogo Purificador (Santa Macrina e São Gregório de Nissa)

Arrependei-vos, pois, e convertei-vos para serem cancelados os vossos pecados, a fim de que, da presença do Senhor, venham tempos de refrigério, e que envie ele o Cristo, que já vos foi designado, Jesus, ao qual é necessário que o céu receba até aos tempos da restauração de todas as coisas, de que Deus falou por boca dos seus santos profetas desde a antiguidade.” (Atos 3:19–21)

A despeito do fato de que nós hoje — corretamente — nos preocupemos com uma imagem de violência divina que sirva para justificar e inflamar a violência humana, ainda assim devemos procurar aquela verdade profunda subjacente às palavras de que o Senhor “açoita a todo filho a quem recebe… a fim de sermos participantes da sua santidade”. A imagem é de uma sociedade em que o castigo físico como expiação e reforma era comum — como vemos no livro de Provérbios —, mas não precisamos nos deter nela. Embora nem todo sofrimento seja, a priori, imediatamente benéfico, deve haver um lugar para o sofrimento na nossa própria transformação.

São Gregório de Nissa, guiado por sua mestra e irmã, Santa Macrina, é levado a contemplar os mistérios da salvação e da condenação, da bondade e da severidade de Deus, numa perspectiva escatológica. Como é bem sabido, eles acreditavam na salvação última de todas as pessoas, a apocatástase. Essa doutrina parte de várias premissas, dentre as quais está a teoria restaurativa e transformadora da pena — que não apenas crê que Deus açoita a todos a quem recebe como filhos, mas recebe como filhos a todos a quem açoita, e cuja dor é intrínseca (causada pelo pecado) e não extrínseca (causada por Deus) —, assim como uma metafísica mística que, por colocar Deus na raiz de todas as criaturas, não consegue não conceber o fim como um retorno de tudo à origem e, portanto, o fim do mal, quando Deus será “tudo em todos”. Nessa concepção, Deus, por ser Deus, não pode eternizar a “existência” do mal. Os místicos universalistas, como Juliana de Norwich e William Law, têm muito em comum.

Não é preciso concordar de todo com a tese da salvação universal para admirar a beleza do modo como Santa Macrina e São Gregório descrevem a resolução última do drama universal. Mas é claro que somente aqueles que acreditam em algum tipo de purificação após a morte — seja num purgatório mais modesto ou mais guloso — serão capazes de aceitar algo assim. Nesse caso, há muitas semelhanças com o purgatório de Santa Catarina de Gênova e de C. S. Lewis. Em nível último, sem algum tipo de pena purificadora (ao menos para parte dos pecadores), o que temos é a prevalência da punição pena punição.

“Uma vez que toda natureza atrai para si aquilo que lhe é afim, e o homem é em certo sentido afim a Deus já que tem em si a imitação do arquétipo, a alma não pode não ser arrastada em direção ao divino por aquilo que lhe é afim; com efeito, é preciso que seja inteira e absolutamente reservado para Deus aquilo que lhe pertence. Se, portanto, a alma é leve e pura, sem nenhum fardo corporal que pede sobre ela, a sua ascensão em direção Àquele que a atrai é agradável e fácil. Mas levantamos a hipótese de que esta seja trespassada pelos pregos da afeição pelas coisas materiais. Nos desastres provocados por terremotos, os corpos esmagados pelos escombros são destinados a sofrer uma semelhante sorte. Suponhamos que esses não somente sejam sufocados pelas ruínas, mas que sejam também trespassados pelos pais e pelos pedaços de madeira que se encontram nos escombros. É fácil intuir os sofrimentos que tocam aos corpos que se encontram nesse estado, quando os seus próximos os retiram das ruínas para sepultá-los santamente: esses são todos pesados e reduzidos a pedaços e sofrem as penas mais atrozes, laceradas pelos escombros e pelos pregos sob o efeito de uma tração violenta. Parece-me que análogo sofrimentos prove também a alma, quando a potência Divina, impelida pelo seu amor em favor dos homens, deseja extrair aquilo que lhe pertence dos escombros representados pela irracionalidade e pela matéria. Na minha opinião, Deus, que exige em restituição e atrai para si tudo aquilo que nasceu graças a ele, não inflige aos pecadores as dores porque os odeia ou queira puni-los pela sua má vida: ele se limita a atrair a alma para si, a fonte de toda bem-aventurança, em vista de um bem superior; mas aquele que é arrastado não pode não tocar a dor.
Como quem deseja eliminar com o fogo o material que se encontra misturado com ouro não pode limitar-se a fundir este material espúrio, mas é constrangido a fundir juntamente também o ouro puro, que permanece enquanto o primeiro se consuma, assim, enquanto mal é consumido pelo fogo inextinguível, a alma também, unida ele, está necessariamente no fogo, até que os elementos espúrios e materiais que foram semeadas nela sejam eliminados e consumados pelo fogo eterno…
…O mal deve ser de fato de todo eliminado do ser: como se disse antes, o não-ser não pode existir. Uma vez que o mal não pode, por natureza, existir fora do livre arbítrio, quando o livre arbítrio se encontra em Deus, o mal irá ao encontro da total destruição porque não lhe resta mais nenhum receptáculo.” — A Alma e a Ressurreição IV

“… Quanto à diferença entre uma vida segunda virtude e uma vida segundo vício, ela aparecerá sobretudo na vida futura, onde a participação na felicidade esperada será mais rápida ou mais tardia. Com efeito, a medida do mal sobrevindo em cada um corresponderá perfeitamente a duração mesmo da cura. A cura da alma consiste na purificação do mal; e esta, como se provou precedentemente, não poderá realizar-se sem um estado de sofrimento…
Mas a vida virtuosa conhecerá em razão do mal as seguintes diferenças: aqueles que nesta vida se cultivaram por meio da virtude se tornam logo uma espiga perfeita; mas aqueles em que o mal tornou débil e exposta aos danos do vento nesta vida a potência contida na semente psíquica — isto, segundo sábios nesses assuntos, costuma acontecer às chamadas sementes duras — mesmo se [um dia] ressurgirem, serão tratados pelo juiz com grande severidade, porque não tiveram força para reencontrar a forma da espiga e se tornarem o que precisamente éramos antes da queda sobre a terra… Quando todas as ervas bastardas e estranhas forem separadas da planta genuína e levadas a destruição pelo fogo que consome o elemento exterior à natureza, então a natureza desses seres também prosperará e produzirá os seus frutos maduros reassumindo, depois de um longo período, a forma comum a todos os homens, que Deus imprimira em nós no início… As paixões produzidas pelo mal se a bola hein dificilmente da alma, uma vez que se encontram misturadas com ela em sua totalidade, tendo crescido com ela e formado uma só coisa com ela ponto quando, portanto, Os seres desse gênero foram eliminados e destruídos pela cura do fogo, cada uma dessas realidades cuja noção tem um conteúdo positivo vir a tomar o lugar: a incorruptibilidade, a vida, a honra e a Graça, a glória, a potência, e toda a outra realidade desse gênero que, segundo nossas conjecturas, se possa contemplar ao mesmo tempo em Deus mesmo e em sua imagem, que é a natureza humana.” — A Alma e a Ressurreição VI

“Entretanto, como para o corpo há diferentes enfermidades, das quais algumas se prestam mais facilmente à cura e outras com maior dificuldade, e para essas últimas se recorre às incisões, às cauterizações, às porções amargas para eliminar os males que se abateram sobre o corpo, do mesmo modo tratamentos análogos nos são anunciados pelo juízo futuro para cura das enfermidades da alma, e isto, para os mais frívolos, é ameaça e método de correção severos, a fim de que o temor de uma expiação dolorosa nos faça tornar-se sábios e nos leve a fugir do mal; mas para aqueles que são mais sensatos, a fé assegura que é uma cura e um tratamento salutar da parte de Deus que deseja reconduzir a sua criatura à graça originária.

Com efeito, aqueles que eliminam com incisões ou mediante cauterização assistências e as verrugas que se formaram no corpo contra a natureza, não conseguem uma cura sem dores ao beneficiário do tratamento; mas, ao menos, não praticam a incisão para causar um dano ao paciente; assim também todas as excrescências materiais que se formaram em nossas almas tornando-as canais sobre efeito de sua participação nas mais de exposições do corpo, são, no tempo oportuno daquele juízo, cortadas e eliminadas por aquela inefável sabedoria e pela potência daquele que, segundo Evangelho, é médico dos pecadores: ‘Não são de fato, diz ele, os sãos, que têm necessidade do médico, mas os doentes.’” — A Grande Catequese VIII, 10–11


“Quando o ouro se mistura a uma matéria menos valiosa, os ourives eliminam com a ação do fogo o elemento estranho e sem valor, devolvendo à matéria mais nobre seu esplendor natural. Todavia, esta separação não sucede sem labor, pois o fogo, com sua força de consumação, necessita de tempo para fazer desaparecer o elemento impuro; aliás, é uma espécie de tratamento aplicado ao ouro, o fato de fundir o elemento que está contido no outro e que altera sua beleza.
Pois da mesma maneira, visto que a morte, a corrupção, as trevas e tudo o que é engendrado pelo mal estão estreitamente unidos ao inventor do mal, a aproximação da potência divina provoca, como o fogo, a destruição do elemento contrário a natureza e, graças a esta purificação, mostra-se salutar para a natureza, por mais penosa que seja a separação. Por conseguinte, tampouco o adversário poderia duvidar de que se trata de um processo justo e salvífico, se chegasse a compreender o benefício que disto resulta.
Ora, precisamente, como aqueles que suportam a terapia a base de cortes e de cauterizações se irritam contra os médicos em razão da dor aguda provocada pelo corte, mas, quando, graças a esses meios, recuperam a saúde e desaparece a dor da cauterização, então terão gratidão por quem os curou; da mesma maneira, uma vez que, após o longo transcorrer dos tempos a natureza foi libertada do mal (do mesmo modo que agora está mesclado e cresceu com ela), quando se cumprir o retorno à condição originária daqueles que agora estão sujeitos ao mal, se erguerá uma sinfonia de ação de graças de toda a criação, seja daqueles que foram castigados com essa purificação, seja da parte de quem não tiver necessidade de purificação.
Esses ensinamentos e outros do mesmo gênero nos transmitem o grande mistério da Encarnação divina. Graças a sua mescla com a humanidade, assumindo todas as particularidades próprias da natureza humana, o nascimento, a educação e o crescimento, e atravessando inclusive a prova da morte, Deus cumpriu tudo o que foi dito anteriormente, libertando o homem da maldade e curando o próprio autor da maldade. Com efeito, curar uma enfermidade é fazer desaparecer a doença, ainda que à custa de sofrimento.” — A Grande Catequese XXVI, 6–9

“…constituindo toda a natureza como um só ser vivo, a ressureição de um membro se estende a todo o conjunto, e da parte se comunica ao todo em razão da continuidade e unidade da natureza.” — A Grande Catequese XXXI, 4

“Ora, o que corresponde ao ouro impuro é o forno de fundição; assim, uma vez fundida toda a maldade que se tinha misturado a esses pecadores, sua natureza, já purificada depois de longos séculos, será reconduzida a Deus sã e salva. Por conseguinte, visto que há certa força purificadora no fogo e na água, aqueles que lavaram a mancha da maldade mediante a água sacramental não necessitam de outra forma de purificação; aqueles, ao contrário, que não são foram iniciados nessa purificação, necessariamente deverão ser purificados pelo fogo.” — A Grande Catequese XXXV, 15

Rev. Gyordano M. Brasilino