Que necessidade havia na morte de Jesus?

Alguém perguntou:

Porque houve a necessidade de um sacrifício redentor? Por que Deus simplesmente não perdoou a humanidade por um simples [sic] ato de vontade?”

Não há necessidade de que Deus salve a humanidade desse ou daquele jeito. Deus poderia, sim, salvar a humanidade com uma só palavra. De fato, o perdão, na sua essência, é um ato gratuito, que emana das riquezas da misericórdia divina. Como Jesus disse tantas vezes a tantas pessoas: “teus pecados estão perdoados”.

A questão não é se Deus poderia fazer alguma coisa dessa ou daquela maneira, mas sim qual problema Deus tencionou resolver. Como ensinou Santo Atanásio, se fosse o problema do perdão apenas, bastaria o arrependimento, sem a Encarnação — Deus sabe perdoar do mesmo jeito que nos manda perdoar. O perdão divino implica algo maior: reconciliação com Deus, e para isso precisamos ser curados do pecado.

Então a pergunta assume a seguinte forma: já que Deus poderia salvar a humanidade de infinitas maneiras, porque a Sabedoria Eterna escolheu que acontecesse como aconteceu, tão dura e dolorosamente? A categoria correta não é necessidade, mas conveniência, adequação, propriedade, proporcionalidade, “fittingness“.

Certamente Deus quis nos salvar de uma maneira que, simultaneamente, exaltasse a Cristo, revelasse mais plenamente a natureza divina e fosse a mais adequada à nossa natureza e necessidade.

Desse modo, embora certamente esteja dentro da Onipotência nos salvar de infinitas maneiras — quem diz que Deus só poderia salvar de um jeito ofende essa Onipotência —, não somos capazes de imaginar nenhuma maneira que seja tão gloriosa como a Redenção contada nos evangelhos.

Imagine, por um instante, que Deus nos tivesse salvado (transformado) por um ato de poder. Nós receberíamos passivamente a salvação, mas seríamos incapazes de imitá-lo. Mas nos salvando, não por um ato de poder, mas pelo sofrimento da dor — isto é, pela obediência até a morte —, ele nos deu um caminho a imitar: a cruz. Como ensinam os Pais, Deus não quis nos salvar pelo poder, mas pela justiça (virtude).

Então Deus providenciou um caminho melhor, no qual:
1. Nós participemos da dividade comendo a carne e bebendo o sangue de Cristo, imitemos sua vida e morte obedientes, e nos enchamos de devoção e autoentrega ao contemplarmos a Paixão.
2. Cristo seja premiado pela obediência, tornando-se Senhor de vivos e mortos, tendo um nome acima de todo o nome, assentando-se acima de principados e potestades — recebendo essa posição (“entrasse na glória”) por merecimento (“vindicação”), tendo superado toda tentação, vergonha, maldição e inculpação a que estamos sujeitos. Cristo, o supremamente humilhado, é supremamente exaltado.
3. Os demônios sejam vencidos, não por poder bruto, mas por obediência dolorosa.
4. O próprio Deus participe do sofrimento do mundo, sem ficar assistindo distante, no trono da glória, todo o drama que ele criou.

Quanto à noção de sacrifício, é adequado, conveniente e apropriado que a reconciliação de um ofensor de alguém envolva sempre a auto-humilhação da pessoa que pede perdão (assim como de qualquer representante seu). Parte do processo de intercessão de Cristo (que continua acontecendo hoje) envolve isso. Ele não o faz porque esteja tentando convencer um “Pai” rancoroso que tenha dificuldade em perdoar, mas apenas para que nós tenhamos dimensão do valor imenso do que nos é dado.

Em outras palavras: podendo escolher uma rota mais fácil, Deus escolheu o caminho mais difícil e quer que façamos o mesmo. Com isso, nós dá maior motivo para amá-lo.

Muito mais coisa se pode dizer a esse respeito, mas aqui está o começo.

Rev. Gyordano M. Brasilino

O problema não é com Deus!

Jesus não veio ao mundo para nos salvar de Deus. Jesus não veio ao mundo para aplacar a ira de um “pai” que deseja ver morte, sangue e violência para se satisfazer. Essa imagem de Deus está totalmente errada, indigna do Eterno, indigna da Santidade Absoluta, indigna de Jesus.

O que aconteceu é que, na época da Reforma, muitas pessoas carregavam uma imagem muito errada de Deus. Não dá para dizer que essa imagem era universal naquela época, pois encontramos doçura e misericórdia em muitos dos pregadores e místicos medievais, como São Bernardo (que tanto inspirou Lutero), Santa Gertrudes, Santa Juliana de Norwich. Mas certamente essa imagem odiosa de Deus foi a que vários reformadores receberam. Ela está no Purgatório de Tomás More, por exemplo.

Veja o que Calvino escreve no livro II das Institutas:

Ora, uma vez que ninguém pode descer dentro de si mesmo e sondar seriamente o que quer que seja sem que, sentindo a Deus irado e hostil para consigo, não tenha necessidade de buscar ansiosamente meio e maneira de aplacá-lo; o que exige satisfação requer-se certeza não comum, visto que sobre os pecadores, até que tenham sido absolvidos da culposidade, cai sempre a ira e maldição de Deus, o qual, visto ser justo Juiz, não deixa impune quem viola sua lei; pelo contrário, armado ele está para a punição.” (XVI, 1)

O que Calvino diz aí? Ele descreve uma experiência de introspecção (“descer dentro de si mesmo”). O que quer que sondasse dentro de si, ele via essa imagem um “Deus irado e hostil para consigo”, e uma necessidade de aliviá-lo. Eu não acredito que Calvino visse só isso em Deus, pois muitas outras partes refletem um pensamento diferente, mas certamente ele sofria com esses escrúpulos de uma consciência anormalmente pesada.

Eu não sei o que é descer dentro de mim mesmo e encontrar esse Deus irado. Boa parte do tempo eu vejo meus muitos e graves pecados, mas, olhando mais profundo, sempre vejo o Deus de amor infinito do qual eu dependo. Eu vejo minha dependência, fragilidade, necessidade. Mas já vi pessoas descreverem exatamente o que Calvino descreve, e vi as consequências danosas desse tormento.

O que ele fez, então? Fez o que a Escritura manda: foi até Cristo para buscar alívio e descanso para a alma, lançou seus fardos sobre Cristo. Mas o fez do jeito errado, e, por isso, em vez de curar a imagem errada que tinha do Pai, ele preservou e reproduziu essa imagem, com a solução errada.

A ira do Pai é seu desgosto com o pecado que nos destrói, que destrói as pessoas ao nosso redor, que destrói a Criação, que sumamente destrói nossa comunhão com ele. O problema que Jesus veio solucionar não é um problema com Deus, mas conosco.

Rev. Gyordano M. Brasilino

O Perdão segundo Jesus

As parábolas de Jesus nos dão uma imagem magnífica do perdão divino.

Na mais famosa, a do Filho Pródigo, o perdão escandaloso do pai vence toda a vergonha pública e se lança sobre filho, mesmo antes que ele confesse o seu pecado, e o chama à alegria do banquete escatológico. Bastou o retorno do filho. É o perdão doado sem reservas, sobre um filho que havia desonrado o pai, pela felicidade do retorno. O perdão é a reconciliação, é reviver, é ser encontrado.

Na parábola do Credor Incompassivo, o perdão é exigente quanto ao nosso comportamento futuro, mas sua compaixão diante da humilhação penitente é tamanha que toda a dívida é perdoada — nenhum centavo resta a pagar.

Repetindo o tema, a Parábola dos Dois Devedores fala da motivação do perdão: os dois devedores não têm com o que pagar, e o resultado é que aquele que foi mais perdoado amou mais.

Na parábola mais próxima da realidade humana (parábola exemplar), a do Fariseu e do Publicano, novamente bastou confissão penitente e contrita do publicano diante do altar divino, sem o desejo de parecer melhor do que ninguém, e ele retornou para casa justificado.

Essas lindas parábolas estão em continuidade com as narrativas patriarcais de perdão gratuito — de como Esaú e Jacó se reconciliam, ou de como José perdoa os seus irmãos —, e se inserem no Pai Nosso, no qual o perdão divino sobre nós e o perdão humano sobre os nossos devedores se vinculam tanto em natureza (perdoamos do medo modo) como em dependência (somos perdoados porque perdoamos).

A imagem que essas parábolas transmitem não é a de um Pai exigente que só perdoa quando é satisfeito, quando tem sua honra reparada (Sto Anselmo) ou quando tem sua ira satisfeita com violência (Calvino). Deus é maior que a mesquinharia humana.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Redenção sem Substituição?

Como ensinar a Redenção de maneira simples, sem Substituição Penal?

Geralmente as pessoas fazem essa pergunta porque, tendo sido ensinados a pensar a salvação nos termos da Substituição Penal, não conseguem pensar o assunto de outro modo, então ficam sem saber como “evangelizar” ou “pregar”.

É importante entender: pregar o Evangelho NÃO é explicar a teologia da expiação. Pregar o Evangelho é contar a história da Redenção, aquilo que está no Credo, o querigma dos apóstolos nos Atos.

A salvação não tem a ver com as ideias que você tem na cabeça quando pensa sobre a expiação. Tem a ver com confessar com a boca que Jesus Cristo é Senhor, crer no coração que Deus o ressuscitou dos mortos, com todas as consequências. A afirmação de que “Cristo morreu por nossos pecados” (1Co 15:3) é essencial para esse querigma, mas jamais isso é convertido pelos apóstolos numa teoria penal (morreu como réu substituto, punido por Deus).

Todas as pessoas que acrescentam a esse depósito apostólico uma teologia da expiação como parte da essência do evangelho incorrem no anátema paulino.

Há algumas rotas bem simples para explicar a Redenção. Todas essas rotas levam a explicações complicadas, mas isso é da essência da verdade. Quem quer uma doutrina que seja inteiramente simples procura uma mentira.

Sete boas rotas (todas conectadas):

VITÓRIA SOBRE O PECADO (Prêmio e Recapitulação). “…tornando-se obediente até à morte e morte de cruz. Pelo que também Deus o exaltou sobremaneira…” (Fp 2:8–9).
— Não a morte apenas, mas a obediência (amor) até a morte mereceu o senhorio de Cristo dentro da ordem cósmica. Cristo mereceu a Ressurreição e o envio do Espírito Santo. A essência do sacrifício é essa oferta do coração, através da qual Cristo continua intercedendo por nós. Essa obediência de Cristo substitui a desobediência de Adão.

VITÓRIA SOBRE O DIABO (Libertação). “…para que, por sua morte, destruísse aquele que tem o poder da morte, a saber, o diabo,” (Hb 2:14).
— Há várias maneiras de explicar a maneira pela qual o diabo perdeu sua “autoridade” (abusada). Uma delas é a ideia de que, ao atacar Cristo, ele se excedeu em extremo, e por isso foi punido. Com isso, Cristo libertou os que estavam debaixo do poder do inimigo.

VITÓRIA SOBRE A MORTE (Ressurreição). “ao qual, porém, Deus ressuscitou, rompendo os grilhões da morte…” (Atos 2:24).
— Ao entrar na morte, Cristo desfez desde dentro todas as barreiras que havia para a vida eterna. Unidos misticamente a ele, nós temos o mesmo destino.

SACRAMENTO. “Quem comer a minha carne e beber o meu sangue tem a vida eterna…” (Jo 6:54).
— Cristo sofreu ali para disponibilizar seu poder vital divino através do sacramento.

EXEMPLO e ENSINO. “…Cristo padeceu por nós, deixando-nos o exemplo, para que sigais as suas pisadas,” (1Pe 2:21).
— Embora o exemplo e ensino de Cristo não sejam suficientes para explicar o propósito de missão, ele ensina como muita clareza que veio ao mundo “para dar testemunho da verdade”. Deus poderia ter salvado a humanidade só com um ato de poder, sem sofrimento; mas seguiu o caminho do sofrimento porque neste nós podemos imitá-lo em sua humildade.

IDENTIFICAÇÃO. “Por isso mesmo, convinha que, em todas as coisas, se tornasse semelhante aos irmãos, para ser misericordioso e fiel sumo sacerdote nas coisas referentes a Deus e para fazer propiciação pelos pecados do povo.” (Hb 2:17).
— Ao assumir a condição humana, sem detrimento da sua pureza perfeita, Cristo recebeu sobre si todas as suas mazelas, incluindo a mortalidade. Então Cristo sofre as consequências do pecado humano (não como substituição, mas como empatia) sem merecê-las, e isso, a um só tempo, ressalta o mérito de sua paixão (pois a justiça exige sua vindicação) e, portanto, o seu prêmio, e se torna o meio pelo qual ele cura e eleva a humanidade desde dentro (deificação). Isso inclui a identificação com o sofrimento de Israel (Isaías 53).

ALIANÇA. Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se maldição por nós, porque está escrito: Maldito todo aquele que for pendurado no madeiro; para que a bênção de Abraão chegasse aos gentios…” (Gl 3:13-14).
— Ao ser amaldiçoado pelos detentores da aliança, Deus está efetivamente fora dela e, portanto, acessível ao mundo inteiro, fora da limitação temporária da Lei.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Cristo pôs fim à limitação dos sacrifícios?

Existe uma maneira incorreta de contar a história do Antigo Testamento ao Novo, quanto ao tema do sacrifício. Algumas pessoas pensam a coisa assim: no Antigo Testamento havia os sacrifícios de animais, como maneira de receber o perdão de Deus, e o Novo Testamento veio e aboliu a coisa com o sacrifício de Jesus.

Esse equívoco é comum em pessoas que só leem a Bíblia e o fazem de uma maneira mais desatenta e particularmente “pactual”. (Não me refiro à “teologia do pacto” reformada.) É como se o sacrifício de animais fosse a maneira única de receber perdão na Antiga Aliança e isso termina com o sacrifício de Cristo. Isso leva a vários enganos tanto no entendimento da natureza dos antigos sacrifícios quanto na da obra da Redenção.

É verdade que, de uma perspectiva cristã, o sacrifício de Cristo torna sem sentido os antigos sacrifícios (como em Hebreus). Mas uma coisa é explicar uma relação teológica e simbólica, outra coisa é contar uma história. No mundo concreto dos fatos humanos, há sempre uma imensidão de fatores em jogo. A história não é tão simples.

Na verdade, os sacrifícios continuaram sendo realizados depois que Cristo morreu — e os apóstolos aparentemente continuaram envolvidos nesse sistema simbólico por um tempo —, e muito antes dele nascer as pessoas já sabiam que os sacrifícios não eram a única maneira de receber perdão. Outras ações eram equiparadas.

Quando a maior parte do Antigo Testamento foi escrita, várias religiões do mundo antigo (inclusive a israelita) haviam passado por um processo de espiritualização e interiorização do sacrifício: o rito exterior passou a ser visto como uma “corporificação” (em forma de dom) das intenções interiores dos adoradores, assim como uma maneira de tornar visíveis a comunhão entre os adoradores e (no caso dos sacrifícios expiatórios) o perdão divino. Embora a ideia já tenha sido criticada sob várias frentes, e muitas vezes a crítica seja legítima, ela continua existindo nos estudos da área, sob o nome, popularizado por Jaspers, de “Era Axial”.

Ademais, por fatores de sua própria história, a religião oficial passou por um tempo sem seu próprio Templo. Assim como no judaísmo contemporâneo, que encontra perdão sem o oferecimento de animais, assim também foi em tempos anteriores. Por isso, nós nos deparamos, tanto em trechos do Antigo Testamento e na literatura posterior, a equiparação de várias ações religiosas não-sacrificiais ao sacrifício. Por exemplo:

• O sacrifício agradável a Deus é o do coração (Sl 51:16-17).

• Diversas ações são tratadas como sacrificiais (Sir 35:1-5).

• Pede-se que a oração seja tratada como incenso e sacrifício (Sl 141:2; cf. Pv 15:8). Assim também o cântico (Sl 27:6; 50:14,23; 54:6; 107:22; 116:17).

• O temor é maior que os sacrifícios (Jud 16:16).

• A esmola e misericórdia expia pecados (Pv 10:2; 11:4; 16:6; 21:3; Tob 4:7-11; 12:8-9; Sir 3:33; cf. Os 6:6).

• A honra aos pais expia pecados (Sir 3:3,14).

• Mudança das más obras para as boas, na prática da justiça, é suficiente (Ez 18).

• Os mártires faziam expiação pelos pecados da nação (Dn 3:40 LXX; 2Mc; 4Mc).

Por isso, quando Hebreus 13 fala do sacrifício da beneficência e do louvor, ou quando Romanos 12 fala do sacrifício dos nossos corpos, não diz coisa nova. Essa doutrina cristã já estava lá, bem assentada, no Antigo Testamento e nas religiões próximas. Afinal, ao dizer “misericórdia quero, e não sacrifício”, Cristo citou o Antigo Testamento.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Mártires Expiadores

A chamada “teologia dos mártires” é um dos elementos do judaísmo do Segundo Templo que provavelmente influenciaram o cristianismo. Em síntese, essa doutrina ensina que aqueles que morriam zelosos da Lei, num tempo em que Israel estava sob a ira divina pela desobediência à Lei, por sua obediência extraordinária de entregar a própria vida, expiavam o pecado da nação.

A lógica às vezes parece ser de que, quando o castigo nacional e coletivo (a opressão pagã e idólatra) recai sobre os mártires inocentes, sua condição suscita a compaixão divina, seguindo aquela lógica, bem assentada no Antigo Testamento, de que nosso sofrimentos são instrumentais na misericórdia de Deus (“Considera as minhas aflições e o meu sofrimento e perdoa todos os meus pecados.“, Sl 25:18), mas agora segundo uma aplicação nacional. Assim como a punição da nação recai sobre eles, a misericórdia lançada sobre eles cobre a nação. Assim também, a nação estrangeira, ao se exceder na execução do juízo divino, atrai para si esse juízo.

2 Macabeus 7:30-38 | 30 …Eu não obedeço ao mandamento do rei! Ao mandamento da Lei, porém, que foi dada aos nossos pais por meio de Moisés, a esse eu obedeço. 31 Quanto a ti, que te fizeste o inventor de toda a maldade que se abate sobre os hebreus, não escaparás às mãos de Deus. 32 Porquanto nós, é por causa dos nossos pecados que padecemos. 33 E se agora, a escopo de castigo e correção, o Senhor, que vive, está momentaneamente irritado contra nós, ele novamente se reconciliará com os seus servos. 34 Mas tu, ó ímpio e mais celerado de todos os homens, não te eleves estultamente, agitando-te em vãs esperanças, enquanto levantas a mão contra os seus servos, 35 pois ainda não escapaste ao julgamento de Deus todo-poderoso, que tudo vê. 36 Nossos irmãos, agora, depois de terem suportado uma aflição momentânea por uma vida imperecível, morreram pela Aliança de Deus. Tu, porém, pelo julgamento de Deus, hás de receber os justos castigos por tua soberba. 37 Quanto a mim, como meus irmãos, entrego o corpo e a vida pelas leis de nossos pais, suplicando a Deus que se mostre logo misericordioso para com a nação e que, mediante provas e flagelos, te obrigue a reconhecer que só ele é Deus. 38 Possa afinal deter-se, em mim e nos meus irmãos, a ira do Todo-poderoso, que se abateu com justiça por sobre todo o nosso povo!

Rev. Gyordano M. Brasilino

A teoria de Santo Anselmo funciona?

O que eu acho da teoria da satisfação de Santo Anselmo? De vez em quando, alguém pergunta sobre essa teoria, geralmente algum evangélico instatisfeito com a teologia da Substituição Penal que, pelo hábito, não quer largá-la de todo, procurando refúgio na lógica mais próxima. A teoria de Santo Anselmo preparou o caminho para a Substituição Penal.

Basicamente, essa teoria da satisfação explica a obra redentora como uma “reparação” (satisfação) da honra de Deus, que foi violada pelo pecado (de Adão e depois o nosso). Embora a honra de Deus propriamente dita não seja afetada, a ordem do mundo (ordo universi) o foi, e há a necessidade de uma reparação para que a humanidade possa ser perdoada. A redenção é explicada em termos dessa “habilitação” do perdão divino: a obediência de Cristo repara (satisfaz) a desobediência da humanidade, que esta não seria capazes de satisfazer, já que todo bem que a humanidade faz estaria já dentro de sua própria obrigação, nunca havendo “crédito” para compensar os deméritos.

Eu vejo vários méritos e vários problemas sérios na teoria anselmiana. Vou mencionar três prós e quatro contras:

P1. A teoria concorda muito bem com nossas experiências em torno de crimes graves. Diante de algo como o apartheid, por exemplo, ninguém espera que os criminosos sejam simplesmente perdoados e a coisa seja esquecida. Há a necessidade de uma reparação. Embora a teoria anselmiana seja frequentemente acusada de refletir o sistema feudal de lealdades, penso que isso diz respeito apenas à linguagem que Anselmo usa, e não à substância de sua doutrina, que pode ser exemplificada tanto na Idade do Ferro como hoje. De fato, quando os primeiros pais da Igreja usaram a noção de “satisfação”, muito antes de Anselmo, eles tinham em mente, em primeiro lugar, não tanto a obra de Cristo, mas o tipo de reparação penitencial que nós fazemos quando pedimos perdão a Deus. Eu penso que a teoria anselmiana tem esse mérito, que diz mais respeito à psicologia do penitente/perdoado e à sociologia da honra.

P2. Um segundo mérito na teoria anselmiana é fazer a pergunta correta: por que Deus se fez homem? Essa era a pergunta que os seus interlocutores judeus e muçulmanos (reais ou imaginários) fariam. Na modernidade, nós frequentemente fazemos a pergunta errada: por que Jesus morreu? Embora exista um “propósito” nessa morte, a pergunta correta deve ser em termos de encarnação, e é isso o que nos permite ressaltar corretamente diversas dimensões da obra redentora (não apenas a morte): a obediência, a doutrina, os milagres e exorcismos, o sofrimento, a descida aos infernos, a ressurreição, a ascensão. Tudo isso é parte da obra redentora, e nós falhamos em entendê-la quando perguntamos de maneira muito restrita.

P3. Um terceiro mérito na teoria anselmiana é preservar o pano de fundo de todas as grandes teologias da redenção: a recapitulação adâmica. Cristo recupera e supera, por sua obediência, aquilo que foi perdido em Adão, por sua desobediência (sob instigação demoníaca). O Novo Testamento tem coisas importantes a dizer sobre a centralidade da obediência de Cristo, coisa nem sempre ressaltada nos debates sobre a redenção.

C1. Embora faça uso das Escrituras, a teoria anselmiana, por se dirigir à instrução de cristãos que debateriam com judeus e muçulmanos, faz uso de uma premissa metodológica arriscada: o argumento racionalista (sola ratione). Isso nos leva a um problema sério que vicia toda a lógica da teologia redentiva de Santo Anselmo no “Cur Deus Homo”: ele vê o pecado como uma transgressão da honra divina, já que ele precisaria de uma noção de pecado com a qual judeus e muçulmanos de boa vontade pudessem concordar. Esse entendimento limitado e superficial do pecado, que minimiza dimensões mais importantes (o pecado como corrupção mortal e escravidão espiritual), coloca o alvo na direção errada.

C2. Como todo o problema a ser solucionado é a transgressão da honra divina, a teoria de Anselmo não explica como o sangue de Cristo nos traz santidade (como em Hebreus). Se o pecado não é visualizado como corrupção, a conexão entre redenção e santificação é esquecida. Esse problema é herdado pela Substituição Penal.

C3. Com um enfoque na obediência de Cristo (o que é um mérito), Anselmo não foi capaz de explicar satisfatoriamente o motivo teológico de sua morte. Embora a obediência seja vista como coisa necessária à salvação, a lógica anselmiana realiza a salvação já no primeiro ato de obediência de Cristo. Assim como a Substituição Penal não é capaz de explicar por que um sofrimento mínimo já não seria satisfação penal suficiente, a teoria anselmiana não é capaz de explicar por que o primeiro ato de obediência de Cristo já não seria suficientemente meritório para cobrir todos os pecados dos homens, sem sua morte.

C4. Nessas teologias, o perdão e a reconciliação divinos deixam de ser gratuitos para Deus. São, de certo modo, gratuitos para quem os recebe, mas não para Deus. Isso impõe efetivamente uma limitação nos atos de Deus.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Sacrifício, Violência, Dom

O Novo Testamento apresenta a Igreja como “casa espiritual” para “oferecer sacrifícios espirituais”. Em razão disso, não é possível entender a essência e a missão da Igreja sem entender o que é um sacrifício. Uma eclesiologia sacrificial é necessária.

Na linguagem corrente, usamos a palavra “sacrifício” num sentido negativo: sacrificar é eliminar, é destruir, é negar, ou, ao menos, realizar algo através de algum tipo de dor pessoal que seja, em algum sentido, também destruição. O sacrifício envolve alguma forma de violência, e a Igreja, particularmente na forma da comunidade concreta, passa a ser um lugar de violência sublimada — um lugar de violência simbólica. Embora Girard veja no sacrifício de Cristo o fim de uma história terrível, no fim das contas a narrativa padece desse mesmo preconceito antissacrificial, e nos deixa a ver navios quanto ao propósito da Igreja enquanto continuidade da prática sacrificial.

Esse é um dos motivos pelos quais eu creio que a heresia kenótica tenha certo apelo entre os diletantes modernos da cristologia. Se eu entendo que sacrificar é deixar para trás, é concebível, para os sequazes de uma antimetafísica obstinada, que a obra de Cristo consista, em parte, no abandono (temporário) da sua divindade. Se sacrificar é negar, há algum sentido nisso. (Bem pouco, sinceramente.)

Mas não é bem esse o sentido que a palavra “sacrifício” tem na tradição cristã e, francamente, também na própria Bíblia. Embora isso seja muito claro em Santo Agostinho — para quem o sacrifício é uma forma de unir, não uma forma de destruir, uma forma de afirmar, não uma forma de negar —, acho que a primeira pessoa que realmente chamou minha atenção para isso tenha sido Robert Daly, há poucos anos. O fogo do amor não destrói a oferta, antes a eleva às regiões superiores; isso é realmente “sacri-ficar”, tornar sagrado.

Um sacrifício é uma forma de presente, de entrega, de dom. Na raiz das mais diversas religiões, está a noção de que o sacrifício é uma forma de alimentar a divindade, coisa que, óbvio, se torna supérflua a partir do momento em que a divindade é tratada em termos propriamente absolutos. Por isso também, a forma de sacrificar é mudada. Santo Agostinho diz, de modo interessante, na Cidade de Deus: “E a razão por que aqueles sacrifícios [da lei] tiveram de ser mudados, no momento oportuno e pré-estabelecido, foi precisamente para impedir que as pessoas acreditassem que os sacrifícios em si mesmos, em vez das coisas significadas por eles, eram desejadas por Deus ou ao menos aceitáveis em nós.” (X, 5)

De todo modo, o que está em jogo não é a morte — que só acontece em alguns tipos de sacrifícios —, mas o oferecimento do presente. Não é à toa que os sacrifícios sejam chamados de “dons” (gr. dōra). Sacrificar é presentear, e, por isso, é uma forma de transitar (inaugurar, restaurar, fortalecer) numa dinâmica de amizade, agradecimento e reciprocidade para com os poderes superiores. O Antigo Testamento tem alguns resquícios simbólicos da ideia de alimentar a divindade, mas o rejeita frontalmente, particularmente no discurso dos profetas, para quem o melhor sacrifício a se oferecer a Deus é a justiça compassiva para com o próximo e o culto do coração a Deus. São Tomás nos lembra de que o nosso principal sacrifício é a devoção, e isso tudo é parte de um processo de quase três milênios, que ainda não acabou, no qual temos ressignificado (espiritualizado) o sacrifício.

Tudo isso é muito óbvio para quem tenha refletido acerca da noção de Sacrifício Eucarístico. Na Eucaristia, não eliminamos ou destruímos nada de Cristo, muito pelo contrário. O sacramento não destrói, somente “acrescenta”. Embora possamos falar de um investimento de recursos, tempo, atenção e tantas outras coisas que a celebração do sacramento possa envolver, no fundo, o nosso próprio oferecimento só é pleno quando todas essas coisas forem vistas como formas de ganhar, não como formas de perder. Tratar o sacrifício como eliminação é impiedade. Todas as vezes em que sacrificamos, seja na Eucaristia, seja em qualquer outra coisa, nós somos os beneficiários.

O sacrifício não é parte de um jogo de soma zero, mas sim de uma uma dinâmica simbólica criativa, um de aprofundamento ontológico. Por isso, ao dizer “não tenho minha vida por preciosa”, Paulo tornou sua vida sumamente preciosa. Inversamente, ao dizer “não darei ao Senhor sacrifícios que não me custem nada”, Davi tornou em nada o valor que ele ofereceu a Deus. No sacrifício, damos a Deus tudo como se não fosse nada, e é assim que nada se torna tudo. Sacrificar é dizer: nossa amizade, nossa comunhão, é mais importante do que tudo o que esteja em minhas mãos, por isso, com desapego, eu te dou. O apego destrói o valor; a entrega o multiplica.

Por isso, não há qualquer oposição ou contradição entre a Eucaristia como sacrifício e a Eucaristia como banquete — nós comemos entregando e entregamos comendo; tanto sacrifício quanto banquete são formas de dizer: união com Deus. Se essas duas coisas forem bem entendidas, não há sequer como enfatizar uma sem que a outra seja igualmente enfatizada.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Morreu em meu lugar?

Uma pessoa perguntou se dizer que Cristo “morreu em nosso lugar” é suficiente para descrever a Substituição Penal.

Reposta: Não é.

Se Cristo morreu em nosso lugar, é preciso perguntar: Que morte é essa que ele recebeu? Quem a aplicou? Por quê? Com qual propósito?

Substituição Penal é: Cristo morreu punido pelo Pai em nosso lugar para satisfazer a ira de Deus, ou algo equivalente. É uma doutrina sobre satisfação da justiça punitiva (presmindo que não há saída não-punitiva), sobre uma ação do Pai (ou da Trindade), sobre como se dá o nosso perdão, sobre como Deus é “reconciliado” conosco. É mais do que apenas “em nosso lugar”.

Se você diz apenas “Cristo morreu em nosso lugar”, sem os demais elementos, e não dá nenhum contexto, isso pode significar várias coisas diferentes.

Pode significar, por exemplo: Cristo morreu em nosso lugar quando tentado/atacado/punido pelo diabo (Christus Victor), ou Cristo morreu como resgate dado ao diabo em troca da nossa libertação (resgate), ou Cristo morreu dando ao Pai o sacrifício que não éramos capazes de dar (adoração/penitência), ou Cristo morreu como um ser humano (Recapitulação), ou Cristo absorveu toda a maldição que havia sobre a humanidade — que fora “lançada” pelo Pai, mas sem ser aplicada pelo Pai sobre ele, e sem relação com o perdão ou satisfação —, ou várias outras opções.

Ademais, “em nosso lugar” pode ser lido como representação, em vez de substituição — como um advogado fala em lugar do seu representado, mas sem tomar o lugar do presentado literalmente (sem sofrer a punição em seu lugar), ou como um intercessor que ora por alguém, sem necessariamente tomar o lugar daquela pessoa (que também deve orar por si mesma).

É interessante, inclusive, o fato de que, em 1João 2:2, a expiação ou propiciação seja vista como a ação de um advogado (paraklētos), alguém que chamamos para estar ao lado (parakaleō), compadecendo-se e tomando nossas dores, mas sem ser punido em nosso lugar.

O que acontece é que algumas pessoas estão acostumadas a ler “em nosso lugar” dentro da Substituição Penal e não conhecer outras leituras possíveis, então associam rigidamente as duas ideias, como se uma fosse uma versão mais simples ou primitiva da outra, o que não é verdade.

A Bíblia diz apenas “por nós”, e vários textos provam que o sentido correto disso é “em nosso benefício”, “por amor a nós”, ou algo do tipo. Cristo ressuscitou “por nós”, ele hoje intercede “por nós”, e assim como ele morreu “por nós”, devemos morrer por nossos irmãos — não punidos pelo Pai, mas certamente quando nossos irmãos são atacados pelo Inimigo.

Os textos biblicos intencionalmente evitam a preposição que significa principalmente “em lugar” (anti) e usam aquela que normalmente não significa “em lugar” (hyper). Algumas poucas traduções fortemente protestantes (como ARA e NAA) até tentam emplacar a ideia, mudando dois textos bíblicos, mas não conseguem mudar o grego. A Bíblia evita falar em “substituição” e não a sugere de nenhuma maneira, embora seja correta como descrição de algumas facetas (não penais).

Rev. Gyordano M. Brasilino

Salvação no Natal ou na Páscoa?

A oscilação litúrgica entre o Natal (manifestação da Encarnação) e a Páscoa (vitória sobre o pecado e a morte) nos dirige a duas dimensões de nossa própria salvação. Uma é a cura de nossa natureza, ferida pelo pecado. A outra é a elevação dessa mesma natureza, já curada, à vida de Deus.

A Encarnação do Verbo, como a assunção da natureza humana perfeita, é salvífica. Pois ela é, desde o começo, sem o abandono da plenitude da divindade, uma sujeição às condições da criatura finita, uma paixão antes da Paixão. Cristo curou cada dimensão da humanidade que ele assumiu e recapitulou. É por essa união entre as naturezas do Senhor que nossa própria humanidade, em união com ele, é habitada pela vida de Deus, da qual estávamos afastados pelos pecados. A humanidade de Cristo é, por isso, auto-humilhação e auto-entrega desde o começo — não poderia ser diferente aquele que é Amor. Tudo está na Encarnação e no Natal, de certo modo.

Nada obstante, essa Encarnação é orientada à Paixão — na qual nossos pecados e dominadores são vencidos — , já que é da natureza do Amor Encarnado se entregar e é da natureza do mundo rejeitá-lo. Dois textos que mostram essa orientação de modo belo são:

Em verdade, em verdade vos digo: se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas, se morrer, produz muito fruto… Chegou o momento de ser julgado este mundo, e agora o seu príncipe será expulso. E eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a mim mesmo. Isto dizia, significando de que gênero de morte estava para morrer.” (João 12:24,31–33)

Porque convinha que aquele, por cuja causa e por quem todas as coisas existem, conduzindo muitos filhos à glória, aperfeiçoasse, por meio de sofrimentos, o Autor da salvação deles… Visto, pois, que os filhos têm participação comum de carne e sangue, destes também ele, igualmente, participou, para que, por sua morte, destruísse aquele que tem o poder da morte, a saber, o diabo, e livrasse todos que, pelo pavor da morte, estavam sujeitos à escravidão por toda a vida.” (Hebreus 2:10,14–15)

Rev. Gyordano M. Brasilino