Culpa e Mérito, dois conceitos ausentes.

Há vários conceitos que nunca são discutidos na Bíblia, quando o assunto é salvação.

Dois exemplos são “culpa” e “mérito”. Eles não aparecem em nenhum lugar na discussão sobre justificação pela fé ou pelas obras, em Paulo ou em Tiago. Nem contra, nem a favor, nada. Paulo e Tiago escreveram tudo o que escreveram sobre salvação sem tocar nesses conceitos. Nem Paulo gasta uma frase sequer para negar que haja méritos pessoais nas boas obras, nem Tiago investe um til para afirmar que haja.

Eles simplesmente não tratam desses assuntos, e não dão qualquer sinal de terem consciência de haver qualquer discussão em torno desses assuntos. Como resolver o problema da culpa? Existe mérito positivo nas nossas ações? O NT não trata disso.

Algumas equipe de tradução até fizeram um esforço circense para verter algumas palavras como “culpa” nessas situações em alguns casos marginais, mas o pulo do gato nunca faz diferença. Dependendo de como vertermos as expressões gregas relevantes, é possível traduzir todo o NT sem usar a palavra “culpa” nenhuma vez. (“Mérito” não aparece nenhuma vez mesmo, na maioria das traduções.)

O mais próximo que as cartas paulinas chegam de falar de “mérito” é quando, em 2Ts 1:5,11, se deseja que Deus torne os tessalonicenses “dignos” (merecedores) do reino de Deus, sem muita explicação de como isso acontece.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Como entender Efésios 2:8-9?

Nos últimos dias, várias pessoas me perguntaram como entender esse texto, ou o usaram como uma maneira de “contra-argumentar” as palavras de Tiago 2:24, segundo as quais “o homem é justificado pelas obras e não somente pela fé”. Jogar um texto da Bíblia contra o outro, como se Paulo pudesse anular Tiago, não é a atitude interpretativa das mais competentes, mas é compreensível a abordagem — nada há de inteligente e inteligível que possa ser dito para convencer uma pessoa razoável de que, ao dizer que “o homem é justificado pelas obras e não somente pela fé”, Tiago quis dizer, na verdade, que “o homem é justificado somente pela fé e não pelas obras”.

Como eu encaro Efésios 2:8-9? Em primeiro lugar, eu amo esse texto, amo esse capítulo, amo essa carta. No entanto, não há nele nenhuma discussão explícita sobre justificação — o verbo “justificar” não aparece em nenhum lugar, embora várias expressões usadas na discussão paulina da justificação nas outras cartas: “mediante a fé” [διὰ πίστεως] (2:8), gloriar-se ou jactância (2:10), a circuncisão como separação entre judeus e gentios (2:11-12), a abolição da lei de Moisés (2:14-15), a reconciliação entre judeus e gentios num novo culto (2:16-22). Não custa lembrar: o contexto da discussão paulina sobre justificação, em Romanos e Gálatas, é a entrada dos gentios na família da fé sem a observância da lei mosaica (particularmente circuncisão, sábados e leis alimentares). Não há separação entre o que Efésios ensina sobre as obras, nos vv. 8-10, e o que ele explica logo em seguida, sobre a circuncisão e a lei.

Creio que um problema esteja em ler “pela graça é que sois salvos” (2:8) e supor que o texto faz uma descrição completa daquilo que nós chamamos de salvação, de modo que isso que chamamos de salvação (incluindo receber a vida eterna) não tenha nenhuma conexão com boas obras.

Salvação é livramento, mas do que Deus nos livra? Qual é a história que a carta está contando?

Se lermos atentamente o que acontece dentro do capítulo, esse texto descreve é o processo pelo qual os que estavam “mortos em delitos e pecados” (2:1) e aprisionados pelos poderes espirituais malignos (2:2), portanto escravos da carne (2:3), receberam vida em Jesus (2:5) e foram colocados em Cristo acima desses poderes tenebrosos (2:6–7). Em outras palavras, a salvação ali descrita é libertação espiritual (em relação aos pecados, aos principados e à carne) e acontece pela fé. O que o texto descreve é como nós somos refeitos em Cristo (2:10) e portanto não podemos ser mais julgados pela circuncisão (2:11ss). O mesmo acontece na carta gêmea, Colossenses (2:11-23).

Em outras palavras, ao dizer que “isso não vem de vós” [τοῦτο οὐκ ἐξ ὑμῶν] e “não de obras” [οὐκ ἐξ ἔργων] o que o texto ensina é: vocês não foram libertos dos pecados, dos poderes das trevas e da carne em razão das suas obras, mas por um presente divino. Por isso, esse presente divino não poderia estar limitado à circuncisão carnal. Do contrário, um grupo poderia se gloriar sobre o outro.

Por isso, nada há no texto ensinando que, para herdar a vida eterna, as boas obras não são necessárias. Só ensina que a graça que salvou aqueles cristãos da vida de pecado não procede das obras — óbvio, já que eles não tinham boas obras. Em outras palavras, usando a tipologia de Barclay, podemos dizer que esse texto afirma a “incongruência” do dom: a graça não nos é dada em razão do que tenhamos feito, mas pela bondade do Doador. A “circularidade” do dom continua existindo, e uma resposta correspondente continua sendo esperada de nós.

Na realidade, qualquer pessoa que conheça bem as cartas paulinas sabe que Paulo afirmava que receberemos a vida eterna em razão de nossas obras (Rm 2:6-7), que os que praticam a lei serão justificados (Rm 2:13), que a entrada na vida eterna envolve a mortificação das obras da carne (Rm 8:13) e que, portanto, somos exortados a fazer o bem para recebermos a vida (Gl 6:7-10). Por isso, o próprio Paulo esperava alcançar a ressurreição através de sua própria transformação e conformação à imagem de Cristo (Fp 3:10-11).

O texto ensina que herdamos a vida eterna apenas crendo, sem a necessidade de boas obras? Não, em nenhuma parte. Em termos sistemáticos, podemos dizer: Efésios 2:8-9 se refere àquilo que chamamos de “salvação inicial” ou “justificação inicial”, que não depende das obras. A “salvação final” ou “justificação final” continua exigindo boas obras, mas ela não é discutida nesse capítulo.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Que necessidade havia na morte de Jesus?

Alguém perguntou:

Porque houve a necessidade de um sacrifício redentor? Por que Deus simplesmente não perdoou a humanidade por um simples [sic] ato de vontade?”

Não há necessidade de que Deus salve a humanidade desse ou daquele jeito. Deus poderia, sim, salvar a humanidade com uma só palavra. De fato, o perdão, na sua essência, é um ato gratuito, que emana das riquezas da misericórdia divina. Como Jesus disse tantas vezes a tantas pessoas: “teus pecados estão perdoados”.

A questão não é se Deus poderia fazer alguma coisa dessa ou daquela maneira, mas sim qual problema Deus tencionou resolver. Como ensinou Santo Atanásio, se fosse o problema do perdão apenas, bastaria o arrependimento, sem a Encarnação — Deus sabe perdoar do mesmo jeito que nos manda perdoar. O perdão divino implica algo maior: reconciliação com Deus, e para isso precisamos ser curados do pecado.

Então a pergunta assume a seguinte forma: já que Deus poderia salvar a humanidade de infinitas maneiras, porque a Sabedoria Eterna escolheu que acontecesse como aconteceu, tão dura e dolorosamente? A categoria correta não é necessidade, mas conveniência, adequação, propriedade, proporcionalidade, “fittingness“.

Certamente Deus quis nos salvar de uma maneira que, simultaneamente, exaltasse a Cristo, revelasse mais plenamente a natureza divina e fosse a mais adequada à nossa natureza e necessidade.

Desse modo, embora certamente esteja dentro da Onipotência nos salvar de infinitas maneiras — quem diz que Deus só poderia salvar de um jeito ofende essa Onipotência —, não somos capazes de imaginar nenhuma maneira que seja tão gloriosa como a Redenção contada nos evangelhos.

Imagine, por um instante, que Deus nos tivesse salvado (transformado) por um ato de poder. Nós receberíamos passivamente a salvação, mas seríamos incapazes de imitá-lo. Mas nos salvando, não por um ato de poder, mas pelo sofrimento da dor — isto é, pela obediência até a morte —, ele nos deu um caminho a imitar: a cruz. Como ensinam os Pais, Deus não quis nos salvar pelo poder, mas pela justiça (virtude).

Então Deus providenciou um caminho melhor, no qual:
1. Nós participemos da dividade comendo a carne e bebendo o sangue de Cristo, imitemos sua vida e morte obedientes, e nos enchamos de devoção e autoentrega ao contemplarmos a Paixão.
2. Cristo seja premiado pela obediência, tornando-se Senhor de vivos e mortos, tendo um nome acima de todo o nome, assentando-se acima de principados e potestades — recebendo essa posição (“entrasse na glória”) por merecimento (“vindicação”), tendo superado toda tentação, vergonha, maldição e inculpação a que estamos sujeitos. Cristo, o supremamente humilhado, é supremamente exaltado.
3. Os demônios sejam vencidos, não por poder bruto, mas por obediência dolorosa.
4. O próprio Deus participe do sofrimento do mundo, sem ficar assistindo distante, no trono da glória, todo o drama que ele criou.

Quanto à noção de sacrifício, é adequado, conveniente e apropriado que a reconciliação de um ofensor de alguém envolva sempre a auto-humilhação da pessoa que pede perdão (assim como de qualquer representante seu). Parte do processo de intercessão de Cristo (que continua acontecendo hoje) envolve isso. Ele não o faz porque esteja tentando convencer um “Pai” rancoroso que tenha dificuldade em perdoar, mas apenas para que nós tenhamos dimensão do valor imenso do que nos é dado.

Em outras palavras: podendo escolher uma rota mais fácil, Deus escolheu o caminho mais difícil e quer que façamos o mesmo. Com isso, nós dá maior motivo para amá-lo.

Muito mais coisa se pode dizer a esse respeito, mas aqui está o começo.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Quatro enganos sobre Perdão

Quatro enganos frequentes envolvem o perdão.

O primeiro é o de que perdoar significa esquecer. Isso é falso, se tomarmos a palavra “esquecer” no sentido mais comum. Pessoas que sofreram profundamente carregam danos por anos, sem conseguir esquecer o que passaram. Você pode dizer que perdoar implica esquecer apenas se usar o sentido qualificado da palavra — não alimentar a lembrança dolorosa, não dar a ela uma atenção aprisionadora, não se entregar à amargura.

Quando alguém diz “eu não consigo perdoar”, o mais comum é que signifique “eu não consigo esquecer” — e, portanto, que a memória continua trazendo dor. Mas somente feridas superficiais são esquecidas facilmente. Embora ser capaz de respirar sem o fantasma da memória má, encontrando “resolução”, seja muito bom e parte do nosso crescimento, perdoar não significa esquecer.

(Talvez venha daí o mito de que, no Paraíso, as pessoas não lembrariam do que aconteceu nesta vida. É claro que elas lembram, mas lembram com Amor desimpedido.)

O segundo engano é o de que perdoar significa conviver. Esse é um pouco mais complicado. O Amor Divino envolve desejar o bem e desejar a união mesmo com nossos inimigos. Se amo uma pessoa, eu não só desejo que ela fique bem, eu desejo união com ela em Deus. Mas, num mundo marcado pelo pecado e por mil dificuldades das relações humanas e da comunicação, nem sempre a união (ou sua busca) significa presença física, proximidade e convívio. Em alguns casos, o convívio pode ser mau, não só para quem sofre, mas também para quem pratica o mal, porque pode reforçar o hábito do pecado já cometido. (Isso exige atenção pastoral.)

O terceiro engano diferente e quase oposto dos anteriores, é de que perdoar é apenas uma decisão. Querer perdoar já é o começo do perdão, mas ele precisa ser consumado: perdoar é uma ação e se dá no contexto de relação concreta, ao longo do tempo. Por isso, Cristo ensina no evangelho: “se o teu irmão vier a ti…”. Eu entendo as pessoas que dizem que perdoar é uma decisão; querem dizer que perdoar não é só um sentimento ou impulso, e isso é muito verdadeiro — nós perdoamos mesmo quando não sentimos desejo de perdoar. Mas o perdão é um processo e pode levar um tempo.

O quarto engano é de que perdoar significa não punir ou não denunciar algo que nos foi feito. Quando se trata de alguém que habitualmente pratica o mal, permitir que a pessoa saia impune é permitir que ela cometa o mesmo mal contra outras pessoas, o que significa lhe dar oportunidade para ferir a si mesma e a outras pessoas — portanto, é contribuir com o mal, mesmo que numa medida menor.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Graça? É isso o que diferencia o cristianismo?

Às vezes você vê pessoas definirem a diferença da religião cristã como sendo o conceito de “graça”. A religião cristã seria religião de graça, as outras religiões seriam religiões de obras.

As pessoas geralmente o fazem sem saber que grande parte daquilo que chamamos de graça é encontrada, com o mesmo nome ou com outros nomes, em outras religiões — sobre as quais se tem um entendimento superficial e caricaturado —, e também sem considerar que a própria noção de graça é disputada entre os cristãos. Usando a tipologia de Barclay (2015), não existe acordo total sobre a superabundância, singularidade, prioridade, incongruência, eficácia e não-circularidade da graça. Praticamente nenhum cristão enfatiza essas seis dimensões ao mesmo tempo — eu diria até que tentar fazê-lo é um erro.

A diferença central da religião cristã não está na noção abstrata de graça, mas na maneira como essa graça se manifesta na história redentiva sinalizada no Credo. Como escreveu São Paulo, registrando uma fórmula primitiva da regra de fé:

Antes de tudo, vos entreguei o que também recebi: que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, e que foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras.” (1Co 15:3–4)

A história do Deus-Homem que morre pelos nossos pecados, é sepultado e ressuscita ao terceiro dia, como um cumprimento da esperança das Escrituras de Israel, com todas as implicações (soteriológicas, eclesiológicas, escatológicas…), esse é o diferencial da religião cristã.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Eu sou um eleito? Meu filho é um eleito?

O arminianismo e o calvinismo, nas suas versões mais comuns populares, têm certos problemas pastorais que são muito mais fáceis de resolver quando se tem uma perspectiva mais equilibrada e multifacetada. Não adianta discutir esses assuntos, ou rejeitar toda discussão, sem atentar para o modo como essas coisas afetam a vida das pessoas.

O calvinismo, particularmente o de tipo mais puritano, acentua o primeiro problema: eu sou um eleito? O Arminianismo acentua o segundo: O meu filho é um eleito?

Quando criamos uma barreira intransponível entre os salvos e os condenados, e vemos que os primeiros, os eleitos de Deus, devem ser identificados por certas características de “comportamento piedoso”, entramos no primeiro problema. Pois os cristãos mais sérios são aqueles que mais percebem suas próprias insuficiências, e, por isso, nesse esquema, são os que mais provavelmente encontrarão problemas de consciência e duvidarão da esperança da vida eterna, enquanto os que vivem na letargia da doutrina abstrata sem exame de vida, aqueles que têm pecados comuns e aceitos ou invisíveis — a inveja, a gula, a avareza, certas formas de soberba —, não terão problema em se verem como eleitos, especialmente quando cercados de discursos do tipo “descanse em Deus”. Tudo o que o preguiçoso quer ouvir é “descanse!”.

Como não há uma maneira de transpor o caminho dos perdidos para os salvos — aquilo que se chamou de “graça suficiente” —, nós nos deparamos com um “grande abismo”, sem ter o que fazer e sem saber se Deus virá em nosso socorro. As pessoas que caem nesse desespero artificial, criado pela doutrina, serão consideradas como realmente perdidas, pessoas que nunca foram eleitas, que nunca acreditaram “de fato”. Assim, o grupo preserva o senso de que seu remédio realmente funciona — se não funcionou em alguém, aquela pessoa é a culpada. O sofredor é culpado pelo sofrimento. A solução reforça o problema.

Isso é muito fácil de resolver quando você entende que a fonte da graça está bem diante de você. A possibilidade de cooperar com essa graça nos permite perceber que não somos inertes. Não há muro, mas uma escada, cujo primeiro degrau está bem à nossa frente. Graça suficiente e cooperação são necessárias.

Por outro lado, há outro problema, o problema de Santa Mônica e de tantas mães, de tantos pais, ao longo dos séculos, que viram seus filhos longe da graça e da fé. O pensamento de que nossa conversão depende, num nível último, de nossa própria escolha, gera o problema de que não há nada que possamos fazer pelo pecador endurecido, nada que nos dê a segurança de que tudo está nas mãos de Deus.

O que fazemos por essas pessoas? Nós pregamos, nós amamos, nós perdoamos, nós damos exemplo de vida, nós apoiamos, nós temos paciência, nós testemunhamos com misericórdia — tudo isso como “cooperadores de Deus” —, mas, acima de tudo isso, nós invocamos aquele que tem em suas mãos todos os corações e que é poderoso para abrir os olhos espirituais, para mover as vontades, para curar os sentimentos feridos, para saciar todos os desejos da nossa alma na direção do sentido último, que pode remover o coração de pedra, que pode libertar de todo cativeiro das trevas e iluminar o nosso espírito com um clarão que espanta toda a escuridão — aquele que não respeita o pecado e, por isso, não precisa respeitar nossa (falsa) liberdade de pecar.

Então oramos com fé pelo pecador, crendo na eficácia da graça divina. Nós nos desesperamos quando achamos que tudo depende de nós — que a conversão do meu filho depende dele —, mas temos uma firme esperança quando acreditamos naquele que, através de nossas orações, pode inundar a todos nós, especialmente àqueles a quem amamos, com uma torrente extraordinária de graça, atraindo com laços de amor. A graça eficaz é necessária.

Esses problemas pastorais se devem, em parte, a que essas teologias não resultem da experiência histórica dos cristãos, mas do exame de teólogos deduzindo proposições a partir do texto bíblico.

Nenhum teólogo é uma ilha, é claro. Todo teólogo leva sua tradição e experiência — como pecador, como cristão, como membro de uma comunidade concreta, como representante de uma classe social ou raça, como ser humano diante do problema da existência — para o exame da doutrina, na saúde ou na doença, mas a teologia que procura conscientemente se atentar para a experiência e reconhecê-la é diferente. Uma teologia que emerge de séculos de tradição foi “testada” — sabemos os seus resultados e limites. Uma que, assim que surge, logo se torna dogma exigido pela comunidade, não passou pelo exame.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Monergismo ou Sinergismo?

Há certas linguagens teológicas que não servem para nada. Se o sujeito pergunta se eu sou “monergista” ou “sinergista”, o certo é orar por ele.

A salvação se dá por inciativa e providência de Deus, mas não acontece sem cooperação humana. A salvação final exige santificação, e a santificação envolve cooperação. Quando eu digo algo assim, o jovem não iniciado me julgará como sinergista, mas os grandes teólogos tidos por monergistas concordam. De fato, meu grande modelo nessa área é Santo Agostinho de Hipona, que eles acham que era monergista.

Se você simplesmente abandonar esses nomes, fica tudo bem. O mar continua no seu lugar, nenhum terremoto é provocado, nenhuma praga se alastra sobre a terra, e os poderes dos céu não são abalados. (Alguns poderes da terra talvez o sejam, mas nada mais imponente do que síndico de prédio.)

A cooperação é mais profunda do que parece à primeira vista, pois envolve a dinâmica entre a vontade divina e a vontade humana no próprio Cristo. Ele é o exemplo supremo de cooperação, pois a impecabilidade divina flui para a sua natureza humana como graça. Por um lado, a vontade humana coopera sem possibilidade de queda ou hesitação; por outro lado, ela o faz sem que sua liberdade seja eliminada (muito pelo contrário). Tomando emprestada a imagem que São Tomás usa em outro contexto, é como a cooperação entre o ferreiro e o martelo (mas sem sugestão de apolinarismo ou monotelismo). A cristologia ortodoxa exige uma soteriologia suficientemente ampla. Monergismo extremo é uma forma de monoenergismo, a heresia cristológica mais esquisita de todas.

De fato, a própria obra da Redenção envolveu cooperação humana. Deus podia fazer de outro modo, mas quis adentrar na esfera humana e estar entrelaçado nela, e se doar através dela. Por isso, falar da redenção como “extra nos” ou “in nobis” também não me ajuda muito.

De Maria a Judas, o homem cooperou com Deus na realização do sacrifício de Cristo. Maria, com o “sim” máximo (causa salutis); Judas, com o “não” máximo; e Jesus usou o “não” para realizar o “sim”, usou o “sim” para curar o “não”. A Paixão foi realizada pelo homem, em cujas mãos Cristo foi entregue. E não há em Cristo nenhum sofrimento além daquele que o homem e o diabo lhe provocam, e que é maximizado por sua compaixão. Não há um terceiro sofrimento invisível provocado por Deus Pai. Nós, criaturas, o fizemos.

Somente a sua Ressurreição se deu principalmente sem cooperação de outros homens. (Isso nos fiz muito sobre a centralidade da Ressurreição na Redenção.)

Depois de realizada a obra da redenção, Cristo enviou ao mundo os seus discípulos como “cooperadores de Deus”, nas palavras do apóstolo.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Solus Paulus: a Vida Eterna como Dom e como Fruto

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Em verdade, em verdade vos digo: quem crê em mim tem a vida eterna. João 6:47

Em um sentido, Cristo sozinho realiza a condição para nossa justificação e salvação. Em outro sentido, a fé é condição de nossa justificação, e, em outro sentido, outras qualificações e atos também são condições da salvação e justificação. Jonathan Edwards, Justification by Faith Alone

Os ensinos das Sagradas Escrituras resistem a simplificações. O próprio Deus é infinitamente imanente e infinitamente transcendente às criaturas, sendo igualmente aquele em quem “vivemos, e nos movemos, e existimos” e aquele que “habita na luz inacessível”. Para nós, essas realidades são paradoxais, misteriosas e desconcertantes. O Deus revelado não é desconhecido apenas, mas desconhecido de maneiras que sequer podemos imaginar. Por outro lado, como a criatura reflete o Ato Criador, por toda parte a névoa do Altíssimo se faz notar. Nada há do real que possamos compreender inteiramente. Continue lendo “Solus Paulus: a Vida Eterna como Dom e como Fruto”

A Nova Perspectiva sobre Paulo

Um dos desenvolvimentos mais interessantes e importantes da teologia protestante na segunda metade do século XX é a Nova Perspectiva sobre Paulo, uma proposta de correção de certas leituras da teologia do apóstolo acerca da justificação e temas conexos. De acordo com essa releitura, a doutrina paulina da justificação pela fé não procura responder à pergunta “Como encontramos salvação?”, mas sim “Como sabemos quem é parte da comunidade ou não?”. O debate entre Paulo e seus críticos seria diferente daquele entre Santo Agostinho e seus críticos, ou entre Lutero e seus críticos. Continue lendo “A Nova Perspectiva sobre Paulo”