O erro de quem considera a propriedade privada com parte da lei natural está em não entender o que lei natural é — ou seja, por que damos o nome de “lei natural” a certas obrigações, ou o que elas têm em comum. O que elas têm em comum é a natureza humana, razão por que o nome dessa lei também é lei da natureza. Falamos da lei natural porque observamos a natureza humana da perspectiva dos motivos fundamentais do seu agir.
A natureza humana não aparece sozinha, sem a cultura. Sem nossas vestes, nós nos animalizamos; a cultura é a elevação da humanidade, a sinalização do nosso potencial quase angélico. Por isso, nosso comportamento sempre é guiado por costumes e leis diversas, mas algumas dessas leis não são resultado do desenvolvimento histórico, não pertencem a nenhuma cultura em particular, e sim manifestam de necessidades inerentes à existência humana. Não são parte de uma sabedoria alcançada com o tempo; são injunções vitais, que precisam ser conhecidas, como inclinações naturais, desde o começo, ou a vida humana se torna praticamente impossível. Embora o coração não viva sem o restante do corpo, há um coração distinto.
(Aliás, é por isso que é absurdo pensar que a lei natural foi totalmente corrompida na natureza humana, como querem alguns reformados mais desconhecedores da tradição, inclusive da sua própria. Se assim fosse, a humanidade não sobreviveria e não preservaria essa constância fundamental. A corrupção que há não é nossa ignorância ou desprezo pela lei natural exatamente, mas nossa tentativa de realizá-la de um jeito danoso. Como escreveu São Paulo, os gentios cumprem a lei “por natureza”, Rm 2:15.)
Nós somos corpos, somos animais e somos racionais, e essa sobreposição de “naturezas” aponta para exigências distintas: como corpos, precisamos de integridade e continuidade física; como animais, precisamos de alimentação, de reprodução, de cuidar da prole; como racionais, precisamos de socialização e de sentido último. Esses são alguns exemplos. Nossa existência está orientada para essas coisas, e é nelas que está basicamente nossa obrigação. É lei natural tudo o que nos orienta, em termos de princípios, a cumprir essa natureza humana, a fazê-la florescer.
Diferentemente dos outros corpos e animais, nós somos racionais, significando que somos capazes de apreender intelectualmente a lei natural, enquanto eles se guiam de outras maneiras. Nós tomamos decisões. Mas os princípios da lei natural são gerais demais, não tratam detalhadamente de cada situação. Pela lei natural, podemos saber, por exemplo, que devemos reprimir a ação má de outras pessoas; mas como fazê-lo? Devemos castigar outras pessoas? De que maneiras? Sabemos que não podemos matar outras pessoas. Mas nem em legítima defesa? Nem em defesa das vítimas? A lei natural é suficiente para nos dar certeza sobre os princípios da ação, ela nos dá os ditames da razão prática, mas não especifica concretamente o que fazer em cada ação.
Por isso, os seres humanos experimentam, descobrem, refletem, ponderam. De várias maneiras, os conflitos sociais e pessoas resultantes da aplicação da lei natural nos leva a avançar na compreensão do que é melhor, chegando a conclusões que não estão na lei natural, mas dela decorrem a partir da comparação com a realidade social. Num primeiro momento, essas são as leis humanas, criadas por nós. A lei humana mais importante é certa cultura ético-jurídica compartilhada pela maior parte da humanidade, a que a tradição clássica chamou de ius gentium (direito das gentes, direito das nações).
Assim, pela natureza humana, somos todos irmãos e temos acesso ao mundo inteiro por igual. Mas o que fazer quando os recursos são escassos, e a sobrevivência de uma comunidade parece ser ameaçada pela ação de outra?
A lei natural nos diz que devemos ser bons para com toda a humanidade, querendo para os demais o mesmo bem que queremos para nós mesmos. O ius gentium especifica, por exemplo, como devemos lidar com os estrangeiros, que direitos de hospitalidade, comunicação e peregrinação eles têm. A lei natural nos diz que o mundo inteiro é de todos nós, porque as necessidades de todos nós precisam ser satisfeitas. O ius gentium nos fala de como a humanidade convencionou a propriedade privada, e de como ela deve ter limites. A lei natural nos mostra que somos irmãos por descendermos da mesma raiz, e por isso ligados uns aos outros. O ius gentium organiza e separa famílias. O ius gentium é, por isso, um híbrido entre natureza e cultura, entre a lei natural e a lei convencional, unindo processo histórico e (quase) universalidade. Como a natureza humana nunca está sozinha, o “ius gentium” media a lei natural. A lei natural nos diz que a comunidade precisa de unidade em meio à diversidade. Quando alguém acha que a propriedade privada é parte da lei natural, o que ocorre é uma confusão entre os princípios de primeira ordem e as conclusões posteriores e um pouco mais concretas, que admitem possibilidades e tentativas.
Em alguns momentos históricos, torna-se necessário para a comunidade decidir essas e outras coisas. Essa necessidade não é inerente à natureza humana, mas às condições históricas e sociais. Essas condições estão ligadas à natureza humana, mas não são idênticas a ela.
O ius gentium não é infalível. A escravidão foi parte dessa cultura quase universal, e aqui e ali algumas pessoas não deixaram de observar como a realidade da escravidão é degradante e “contra a natureza”, para dizer o mínimo — de como não podemos ser donos de outras pessoas. Um dos vários motivos por que esse costume perdurou tanto é o fato de que a propriedade privada não é parte da natureza humana e, por isso, não há um regramento natural dos limites da propriedade privada. Nada na natureza humana nos diz se podemos ser individualmente donos do solo e das águas, do espaço aéreo, da Lua, de outros planetas, do Sol, das árvores e dos animais, das ideias… e de outros seres humanos. Como a propriedade privada é uma convenção, os limites da convenção não são imediatamente óbvios à razão.
De todo modo, a lei natural não é suficiente para que uma sociedade se guie em todas as situações. Ela é suficiente para que tenhamos certeza dos princípios que devem guiar nossas ações em geral, mas nós temos necessidade de leis particulares (além do ius gentium), que digam quem será responsável por julgar e quem será responsável por punir, quem será responsável por defender e por caçar, que atribuam autoridades e liberdades, que mostrem como certa sociedade se guiará.
Rev. Gyordano M. Brasilino