O que é a Lei Natural?

O erro de quem considera a propriedade privada com parte da lei natural está em não entender o que lei natural é — ou seja, por que damos o nome de “lei natural” a certas obrigações, ou o que elas têm em comum. O que elas têm em comum é a natureza humana, razão por que o nome dessa lei também é lei da natureza. Falamos da lei natural porque observamos a natureza humana da perspectiva dos motivos fundamentais do seu agir.

A natureza humana não aparece sozinha, sem a cultura. Sem nossas vestes, nós nos animalizamos; a cultura é a elevação da humanidade, a sinalização do nosso potencial quase angélico. Por isso, nosso comportamento sempre é guiado por costumes e leis diversas, mas algumas dessas leis não são resultado do desenvolvimento histórico, não pertencem a nenhuma cultura em particular, e sim manifestam de necessidades inerentes à existência humana. Não são parte de uma sabedoria alcançada com o tempo; são injunções vitais, que precisam ser conhecidas, como inclinações naturais, desde o começo, ou a vida humana se torna praticamente impossível. Embora o coração não viva sem o restante do corpo, há um coração distinto.

(Aliás, é por isso que é absurdo pensar que a lei natural foi totalmente corrompida na natureza humana, como querem alguns reformados mais desconhecedores da tradição, inclusive da sua própria. Se assim fosse, a humanidade não sobreviveria e não preservaria essa constância fundamental. A corrupção que há não é nossa ignorância ou desprezo pela lei natural exatamente, mas nossa tentativa de realizá-la de um jeito danoso. Como escreveu São Paulo, os gentios cumprem a lei “por natureza”, Rm 2:15.)

Nós somos corpos, somos animais e somos racionais, e essa sobreposição de “naturezas” aponta para exigências distintas: como corpos, precisamos de integridade e continuidade física; como animais, precisamos de alimentação, de reprodução, de cuidar da prole; como racionais, precisamos de socialização e de sentido último. Esses são alguns exemplos. Nossa existência está orientada para essas coisas, e é nelas que está basicamente nossa obrigação. É lei natural tudo o que nos orienta, em termos de princípios, a cumprir essa natureza humana, a fazê-la florescer.

Diferentemente dos outros corpos e animais, nós somos racionais, significando que somos capazes de apreender intelectualmente a lei natural, enquanto eles se guiam de outras maneiras. Nós tomamos decisões. Mas os princípios da lei natural são gerais demais, não tratam detalhadamente de cada situação. Pela lei natural, podemos saber, por exemplo, que devemos reprimir a ação má de outras pessoas; mas como fazê-lo? Devemos castigar outras pessoas? De que maneiras? Sabemos que não podemos matar outras pessoas. Mas nem em legítima defesa? Nem em defesa das vítimas? A lei natural é suficiente para nos dar certeza sobre os princípios da ação, ela nos dá os ditames da razão prática, mas não especifica concretamente o que fazer em cada ação.

Por isso, os seres humanos experimentam, descobrem, refletem, ponderam. De várias maneiras, os conflitos sociais e pessoas resultantes da aplicação da lei natural nos leva a avançar na compreensão do que é melhor, chegando a conclusões que não estão na lei natural, mas dela decorrem a partir da comparação com a realidade social. Num primeiro momento, essas são as leis humanas, criadas por nós. A lei humana mais importante é certa cultura ético-jurídica compartilhada pela maior parte da humanidade, a que a tradição clássica chamou de ius gentium (direito das gentes, direito das nações).

Assim, pela natureza humana, somos todos irmãos e temos acesso ao mundo inteiro por igual. Mas o que fazer quando os recursos são escassos, e a sobrevivência de uma comunidade parece ser ameaçada pela ação de outra?

A lei natural nos diz que devemos ser bons para com toda a humanidade, querendo para os demais o mesmo bem que queremos para nós mesmos. O ius gentium especifica, por exemplo, como devemos lidar com os estrangeiros, que direitos de hospitalidade, comunicação e peregrinação eles têm. A lei natural nos diz que o mundo inteiro é de todos nós, porque as necessidades de todos nós precisam ser satisfeitas. O ius gentium nos fala de como a humanidade convencionou a propriedade privada, e de como ela deve ter limites. A lei natural nos mostra que somos irmãos por descendermos da mesma raiz, e por isso ligados uns aos outros. O ius gentium organiza e separa famílias. O ius gentium é, por isso, um híbrido entre natureza e cultura, entre a lei natural e a lei convencional, unindo processo histórico e (quase) universalidade. Como a natureza humana nunca está sozinha, o “ius gentium” media a lei natural. A lei natural nos diz que a comunidade precisa de unidade em meio à diversidade. Quando alguém acha que a propriedade privada é parte da lei natural, o que ocorre é uma confusão entre os princípios de primeira ordem e as conclusões posteriores e um pouco mais concretas, que admitem possibilidades e tentativas.

Em alguns momentos históricos, torna-se necessário para a comunidade decidir essas e outras coisas. Essa necessidade não é inerente à natureza humana, mas às condições históricas e sociais. Essas condições estão ligadas à natureza humana, mas não são idênticas a ela.

O ius gentium não é infalível. A escravidão foi parte dessa cultura quase universal, e aqui e ali algumas pessoas não deixaram de observar como a realidade da escravidão é degradante e “contra a natureza”, para dizer o mínimo — de como não podemos ser donos de outras pessoas. Um dos vários motivos por que esse costume perdurou tanto é o fato de que a propriedade privada não é parte da natureza humana e, por isso, não há um regramento natural dos limites da propriedade privada. Nada na natureza humana nos diz se podemos ser individualmente donos do solo e das águas, do espaço aéreo, da Lua, de outros planetas, do Sol, das árvores e dos animais, das ideias… e de outros seres humanos. Como a propriedade privada é uma convenção, os limites da convenção não são imediatamente óbvios à razão.

De todo modo, a lei natural não é suficiente para que uma sociedade se guie em todas as situações. Ela é suficiente para que tenhamos certeza dos princípios que devem guiar nossas ações em geral, mas nós temos necessidade de leis particulares (além do ius gentium), que digam quem será responsável por julgar e quem será responsável por punir, quem será responsável por defender e por caçar, que atribuam autoridades e liberdades, que mostrem como certa sociedade se guiará.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Contra a Mais-Valia

Há uns dias, eu publiquei uma lista de dez coisas que não existem; dentre elas, “mais-valia marxiana” e “propriedade privada na lei natural”. Com isso, alguém comentou que eu consegui ofender comunistas e liberais ao mesmo tempo. Eu creio que existe um bom motivo para isso, e não é simples um reflexo moderacionista e centrista. Embora as duas noções possam parecer opostas, a realidade é que, tanto histórica como conceitualmente, os profetas contra a mais-valia e os sacerdotes da propriedade privada têm a mesma origem.

Ambos são lockianos (ou “lockeanos”). Uns são lockianos de esquerda, outros são lockianos de direita, todos revolucionários à sua maneira. Ambos se apropriaram de ideias que estão originalmente em John Locke, de fato herdaram basicamente a mesma ideia, mas uns, seguindo os augúrios do seu patriarca, deram a ela a expressão de uma lei perene e mandatória (orgânica), e os outros lhe concederam uma interpretação subversiva e crítica (dialética), como expressão do funcionamento do capitalismo. A ideia é a maneira como John Locke justifica a propriedade privada através do trabalho.

Assim como eu historicizei o que os liberais essencializaram, agora essencializarei o que os marxistas historicizaram. A mais-valia é fundamental no pensamento de Karl Marx, é central na sua teoria madura da alienação. Embora eu ache que a crítica do modo de produção capitalista seja importante, creio que seja preciso fornecer uma base mais sólida e menos ilusória do que a noção de mais-valia. (A Escritura Sagrada contém uma crítica à injustiça na relação entre acumulação e salários, num contexto campesino, então essa é uma questão que deve interessar a todos os cristãos. Vide Tg 5:1-4.)

Na tentativa de justificar a pertença da propriedade privada à lei natural, John Locke havia escrito, no seu célebre Segundo Tratado — em parte, para confutar a antiquíssima prerrogativa monárquica de expropriação —, que nós temos um direito básico ao nosso próprio corpo e, com isso, temos também direito ao nosso trabalho e, portanto, temos também direito àquilo que está “misturado” ao nosso trabalho: os objetos do mundo que nós “produzimos”, como ferramentas que criamos com trabalho, terrenos que cultivamos com trabalho. O nosso trabalho, ao se misturar com os objetos do mundo, adquire um caráter apropriador, colonizador; torna-se nosso o que não, supostamente, era de ninguém. (Locke sabe e reconhece que Deus deu tudo a todos, mas aqui faz de conta que o mundo não é de ninguém.)

O trecho mais famoso é este, do quinto capítulo:

Embora a terra e todas as criaturas inferiores sejam comuns a todos os homens, ainda assim cada homem tem propriedade de sua própria pessoa: a isso ninguém tem direito senão a si mesmo. O trabalho do seu corpo e a obra de suas mãos, podemos dizer, são propriamente seus. O que quer, então, que ele remova do estado que a natureza proveu e no qual a deixou, tenha misturado com o seu trabalho, e unido a isso algo que seja seu, torna-se assim sua propriedade.”

(Meu corpo, minhas regras, ensinou Locke. Essa ontologia egoísta, resultante de uma desintegração da socialidade humana, ignora o fato de que o ser humano já nasce inserido numa rede de obrigações e vínculos. Uma criança não teria direito ao leite materno, por conseguinte, embora Locke não o afirme e até o contradiga, instituindo uma lei da caridade separada da lei da justiça, separação cujas origens são ainda mais remotas no tempo. Daí até chegar a aborto e eutanásia, é só questão de tempo, como defenderão os herdeiros modernos de Locke, sob argumentos utilitaristas. Mas isso fica para outro momento.)

Note-se, de antemão, que a linguagem desse trecho é a mesma usada por Karl Marx em O Capital (livro I, parte III, capítulo 7), ali despida da linguagem jusnaturalista, como descrição materialista.

Com isso, Locke tenta provar que a propriedade privada não é uma convenção, mas um direito. A convenção que virá depois, que é o pacto social constitutivo do governo civil, é apenas uma proteção a essa propriedade natural. De fato, para Locke, o fim principal da sociedade civil é “a preservação da propriedade” (Sect. 85). Ou seja, para Locke, a propriedade privada não é um meio de alcançar um fim (a saúde da sociedade civil); dá-se o contrário. A sociedade civil gira em torno da propriedade, e a propriedade gira em torno do corpo do indivíduo produtivo. Se é assim, é natural que, para Locke, nem mesmo o poder supremo do governante possa tomar a propriedade de alguém sem o seu consentimento. É o tipo de coisa que os marxistas gostam de ler, porque é uma admissão do quão burguesa é essa noção de governo. Devemos lamentar que ela seja tão pouco cristã e tão secularizada.

Essa ideia lockiana realmente é muito influente no mundo moderno, e extrapola discussões estritamente econômicas. Ela pode ser usada para justificar a colonização das terras americanas, por exemplo. Num vídeo recente, Benjamin Netanyahu usa o mesmo tipo de pensamento para justificar as atitudes do estado de Israel para com os palestinos — estes não fizeram nada com a terra enquanto a tiveram, enquanto os israelenses tornaram a terra produtiva. (Locke também diz que a terra foi dada “para o uso dos produtivos e racionais”, o que pode legitimar ainda mais essa ideologia.)

Essa teoria de Locke tem dois lados: nós adquirimos direitos de propriedade através do trabalho; nós conferimos valor através do trabalho. Ela é simultaneamente uma teoria da propriedade (ou teoria da legitimação) e uma teoria do valor; esse aspecto como teoria do valor foi desenvolvido pelos economistas, na época seguinte.

Como eu disse, essa ideia leva tanto ao liberalismo quanto ao marxismo, que é a sua outra metade. Fica fácil ver que o uso de Locke levava ao liberalismo, mas há um outro lado possível para a moeda: numa sociedade capitalista, na qual nós não mais produzimos diretamente, mas somos forçados, pela nossa própria necessidade de subsistência, a vender nossa força de trabalho (falando particularmente dos proletários) como mercadoria, e em competição com outros trabalhadores desempregados e sem a possibilidade de apropriar-se de terra para a sua própria produção — a chamada “Cláusula Lockiana”, praticamente abandonada pelos lockianos de direita e levada adianta pelos lockianos de esquerda —, o produtor do trabalho deixa de ser o dono do que é produzido, mas tem o valor do seu trabalho alienado.

Distinguindo entre o valor-de-uso (utilidade) e o valor-de-troca da mercadoria, Marx escreve em dois trechos de O Capital (I, 4, 7, 2):

Sabemos que o valor de qualquer mercadoria é determinado pela quantidade de trabalho materializado em seu valor-de-uso, pelo tempo de trabalho socialmente necessário a sua produção.”

Mas, o trabalho pretérito que se materializa na força de trabalho e o trabalho vivo que ela pode realizar, os custos diários de sua produção e o trabalho que ela despende são duas grandezas inteiramente diversas. A primeira grandeza determina seu valor-de-troca, a segunda constitui seu valor-de-uso.”

Ou seja: Valor-de-troca da mercadoria é determinado pelo trabalho materializado, pelos custos diários de sua produção. O valor-de-uso é o trabalho que a mercadoria pode produzir, o trabalho que dela depende. A noção de mais-valia gira em torno do valor-de-troca, que é determinado pela força de trabalho materializada (em termos lockianos). A força de trabalho do proletariado produz determinado valor-de-troca incorporado na mercadoria; esse valor-de-troca é colocado pelo capitalista no mercado, mas ele não retorna totalmente ao proletariado; somente uma parte retorna, na forma de salários de fome, digamos assim. A mais-valia é essa diferença, como o “lucro” entre o que o que o capitalista paga (ao proletário) e o que ele ganha (com o valor-de-troca produzido pelo proletário).

Como se vê facilmente, a raiz do problema aqui está em saber se existe realmente esse valor-de-troca. Muitas críticas podem ser feitas, e concepções alternativas do valor formuladas. O fato é que, em geral, tentativas de mostrar ao marxista que o valor-de-troca não é determinado pelo trabalho materializado são em vão. Os defensores da teoria aceitaram essa ideia no começo, como um ato de fé, e por isso não estão dispostos a abandoná-la. Marx não apresenta, em O Capital, nenhum argumento em favor dessa noção de valor-trabalho; ele a toma como axioma, assim como o tomam os seus seguidores. Por isso, sempre confrontados com situações que não se conformam às previsões da teoria — exemplo de como muito trabalho produz pouco valor, pouco trabalho produz muito valor —, eles dão sempre um jeito de justificar a teoria: o que não se conforma é tratado como exceção, como perturbação, através de alguma outra causa. Distingue-se o preço (oscilante) do valor-de-troca (material). Até a lei da oferta e procura, que, no senso comum, determina os preços do mercado (e não algum valor-de-troca), é colocada para trabalhar em paralelo. É realmente inútil tentar provar diretamente que a teoria não funciona.

A pergunta a se fazer é, retornando ao começo: existe algum motivo razoável para pensarmos que o valor-de-troca das mercadorias é determinado pelo trabalho, ou que existe um valor-de-troca distinto do preço?

Quando pedimos um motivo, o que os marxistas nos dão é sempre um exemplo, e interpretam o exemplo à luz da teoria; ou seja, eles contam uma história e inserem, ao final da história, a “moral da história”. Ou seja, em vez de nos darem um motivo para acreditarem na teoria, eles mostram como ela funciona. Em termos retóricos, isso funciona perfeitamente — a maioria das pessoas se convence de uma ideia não porque ela tenha bons motivos lógicos e boas provas, mas porque ela faz sentido numa narrativa, porque ela é apresentada com “pathos” visceral. Eles esperam que, ao explicar como a mais-valia funciona, as pessoas simplesmente acreditem.

Esse é o grande desafio: mostrar um bom motivo para acreditar no valor-trabalho. Se não existe valor-trabalho, não existe mais-valia. Se não existe mais-valia, o marxismo descreve mal a exploração e alienação no modo de produção capitalista.

Rev. Gyordano M. Brasilino

DE STATU NATURAE: sobre a propriedade privada.

A discussão sobre a propriedade privada adquire uma perspectiva muito distinta quando a observamos com alguma consciência histórica. É fácil imaginar que a propriedade privada seja “natural” quando nós somos criados em sociedades nas quais ela existe e toda a nossa estrutura social depende dela. Mas não foi sempre assim.

Durante a maior parte da existência humana, na verdade durante mais de nove décimos dela, vivemos na terra sem a noção de propriedade privada, até por volta de 12 mil anos atrás, quando ocorreu a Revolução do Neolítico, uma transição ampla do modo de vida caçador-coletor nômade para a agricultura (sedentária). Embora seja opinião comum que essa revolução trouxe o surgimento da propriedade privada, certos autores defendem o contrário: foi o surgimento da propriedade privada que precipitou essa revolução[1].

Isso significa que, desde que surgiu, a espécie humana viveu por milênios em uma condição muito distinta, que de certo modo ainda existe em alguns lugares do mundo (como o povo Hadza da Tanzânia, ou pigmeus da bacia do Congo). De fato, um estudo recente sugere que toda a humanidade descende de três grupos africanos de caçadores-coletores que existiram há cerca de 50 mil anos[2].

Esses agrupamentos são marcados por alto grau de cooperação (diferente da violência típica de macacos), e um dos motivos apontados é o surgimento de famílias[3]. Por via da seleção natural, grupos com maior cooperação sobrevivem melhor e por mais tempo, enquanto grupos com menor cooperação se desfazem, então os genes que favorecem a cooperação são mais preservados. Ademais, assim como nos grupos de caçadores-coletores modernos, as pessoas migravam entre os grupos.

Como dito acima, essas comunidades não conheciam a noção de propriedade privada. A sobrevivência das comunidades num ambiente hostil, não “domesticado” pelo ser humano, exigia um alto grau de integração dos membros da comunidade, que existia como uma grande família ou clã. Quando os caçadores conseguiam um animal e o traziam para a comunidade, o animal não era “propriedade” desses caçadores; clamar para si o animal seria uma forma de trair a comunidade, na sua necessidade de sobrevivência. Aquilo que certas pessoas conseguiam pertencia à comunidade. Se algum caçador resolvesse pensar que tinha direito individual sobre a caça, porque a conseguiu, ele seria um “ladrão”, um traidor. Seria furto, em conformidade com a lei natural, mesmo não havendo propriedade privada.

É possível dizer que os membros da tribo tinham “posses” pessoais, como sua roupa e alguns instrumentos, que eram respeitados em razão das necessidades do grupo, mas sem qualquer título “jurídico”. Eram os objetos carregados com o corpo, que eram bem poucos; caso alguém deixasse para trás algum objeto, não seria mais seu. Não havia qualquer sentido em dizer que objetos maiores pertenciam a qualquer pessoa. A terra não pertencia diretamente a ninguém, nem ao indivíduo nem à comunidade.

A propriedade era comunal desde o princípio. Considerando a origem evolutiva da espécie humana, não houve um momento em que o ser humano individual e livre decidiu abrir mão dos seus direitos individuais para formar uma sociedade de propriedade comunal — ao contrário, ela sempre esteve lá, e o direito individual é que, com o tempo, se forma. Quando surge a propriedade privada, ela surge como uma concessão dentro de um espaço comunitário. Nesse sentido, não é possível pensar, como os liberais, que a propriedade privada é o fato e a função social é exceção; dá-se o contrário.

Quando observamos essas primeiras comunidades, podemos ter certeza de que, desde o princípio, elas conheciam a lei natural nos termos clássicos (pré-modernos): eles tinham, assim como todos os seres materiais e também como os animais, bem como enquanto seres racionais, inclinação à sua própria conservação, à conjunção entre macho e fêmea, à educação da prole, à vida em sociedade, por exemplo, e essas coisas se tornavam tão mais óbvias quanto o descuido de certos deveres poderia ser fatal para a sobrevivência e coesão da comunidade. A lei natural está diretamente ligada à sua inclinação natural.

Se dizemos, no entanto, que a propriedade privada é parte da lei natural, e não uma criação posterior (tutelada pelos princípios da lei natural), essa lei passa a ter um caráter distinto, não conectado às inclinações naturais, mas uma imposição, um regramento arbitrário lançado sobre o mundo. Nesse sentido, tratar a propriedade privada como lei natural acaba por destruir a noção de lei natural e a teleologia humana, lançada à arbitrariedade.

A pergunta que devemos fazer aqui é: como os Pais da Igreja e os estoicos, assim como São Tomás, sabiam que, na origem, não havia propriedade privada? Eles não tinham memória do paleolítico, e, embora houvesse ainda comunidades de caçadores-coletores, é improvável que a maioria deles tivesse tido contato com essas comunidades. (Alguns de fato o tiveram, mas a percepção “histórica” de que essas comunidades representam um modo de vida mais antigo vem de outro lugar.)

O que ocorre é que, vivendo numa época em que muitas ideias modernas ainda não haviam surgido (ex: a de que a propriedade privada é lei natural, o ser humano é um indivíduo isolado), eles estavam preparados para julgar, com bastante atenção e perspicácia ontológica, a estrutura da realidade social e política: não há nada essencial nos objetos ao nosso redor que os conecte radicalmente a nós, mas apenas uma convenção social, por mais respeitável (e divinamente autorizada) que seja. Eles tinham sensibilidade para distinguir entre o essencial e o arbitrário e, portanto, entre o natural e o convencional.

Há, ainda hoje, perguntas assim que devemos fazer: a que se refere a propriedade privada? Refere-se a qualquer coisa? Refere-se a pedras, à terra, ao ar, aos rios e mares, ao oxigênio? Refere-se a outras pessoas (escravos)? Refere-se a ideias e objetos intelectuais? Não há nada nesses objetos que diga que podemos ser proprietários de uns e não de outros; há apenas uma convenção humana autorizando a propriedade.

Quando lemos a narrativa final do Gênesis (a justaposição de Gn 1 e Gn 2-3), encontramos implícita essa mesma percepção. A humanidade é criada para dominar toda a criação em redor, e é criada como uma família. Toda “propriedade”, inicialmente, é propriedade familiar, não individual. Note-se detidamente: o primeiro homicídio, no Gênesis, ocorre numa competição entre um “agricultor” (Caim) e um “pecuarista” (Abel), ou seja, entre sedentários. O assassino edifica a primeira cidade. Há aqui, na Escritura, o registro de uma intuição espiritual sobre as origens da rivalidade humana, que depois é aproveitada pelos pais da Igreja (veja-se o livro V das Instituições Divinas de Lactâncio), muito antes de que uma figura cândida e banal como Rousseau pudesse fazê-lo.

Hugo Grócio, que não era nenhum conservador em termos em lei natural (e sim um inovador que deu passos na direção da compreensão moderna de lei natural), escreveu no De jure belli ac pacis:

Devemos ademais notar que o direito natural não se refere apenas àquelas coisas que existem independentemente da vontade humana, mas a muitas coisas que necessariamente seguem o exercício daquela vontade. Assim a propriedade, que agora existe, foi primeiramente uma criatura da vontade humana.” (I, 1, X)

Deus deu à humanidade em geral domínio sobre todas as criaturas da terra, desde que primeiro foi criado o mundo; concessão que foi renovada quando da restauração do mundo depois do dilúvio. Todas as coisas, diz Justino, formaram a provisão comum para toda a humanidade, como herdeiros de um patrimônio geral. Disso se seguiu que cada homem tomou para seu próprio uso ou consumo o que quer que tenha encontrado; exercício geral de um direito que supriu o lugar da propriedade privada… A propriedade portanto deve ter sido estabelecida ou por acordo expresso, como por divisão, ou por consentimento tácito, como por ocupação.” (II, 2, II)

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[1] https://www.journals.uchicago.edu/doi/10.1086/701789
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3670368/
[2] https://theconversation.com/ancient-dna-helps-reveal-social-changes-in-africa-50-000-years-ago-that-shaped-the-human-story-175436
[3] https://www.nytimes.com/2011/03/11/science/11kin.html

Sobre o Nacionalismo, mais uma vez

Eu gosto de conservadores nacionalistas como Yoram Hazony. Eles me parecem sempre muito cândidos — são como Rousseau transposto para as relações internacionais: no começo havia a nação pura e independente, então ela é corrompida pelos poderes imperialistas da lei internacional. (É difícil conceber a nação sem o império, mas essa é outra história.)

Hazony, judeu e também biblista, faz uma leitura interessante das Escrituras (o “Antigo Testamento”). Ele observa que o Deus de Israel é o primeiro Deus anti-imperialista de que se tem notícia. Não é difícil elaborar a tese. Temos uma narrativa de uma nação construída a partir de uma família, a defesa das fronteiras (supostamente sem um discurso de expansão), o estímulo do heroísmo patriótico, a honra aos pais, o amor pelos compatrícios e ódio pelos inimigos da nação (como os amonitas e egípcios), e não há um projeto claro de impor a outros povos a lei e o culto de Israel (e.g. a ideia “antipluralista” do monoteísmo).

Em suma, há um intenso discurso de “afinidade” e “lealdade” que dá substância ao nacionalismo como doutrina política. Isso não significa automaticamente o desprezo pelos estrangeiros, que muitas vezes são protegidos pelos profetas e pela tradição deuteronômica; há espaço para empatia e hospitalidade (“amareis o estrangeiro, pois fostes estrangeiros na terra do Egito”). Tudo isso é relevante.

Mas, acrescento agora, esse discurso não é totalmente uniforme, e podemos ver, sim, em alguns lugares do AT, intimações de um pensamento imperial (como a declaração, do Terceiro Isaías, de que “os filhos dos estrangeiros edificarão os teus muros, e os seus reis te servirão”, ou as visões apocalípticas de Daniel).

A coisa muda muito no Novo Testamento, e aquilo que era secundário no AT se torna principal. O evangelho pode ser visto como a transcendência da afinidade, não no sentido de que a afinidade em si seja simplesmente abandonada ou rejeitada em nome de algo melhor — essa seria uma leitura marcionita, antissemítica —, mas de que a própria afinidade transcende os limites nacionais.

Assim Cristo diz, desde o começo, coisas chocantes, mesmo que descontada toda hipérbole semítica, como quando relativiza a sacratíssima honra aos pais (e, com isso, a família, o clã, a tribo): era preciso amá-lo mais do que a pai e mãe; que sua mãe e seus irmãos eram os que observavam a palavra de Deus; que mesmo gestos tão humanos de sepultar e se despedir são colocados em segundo lugar. Levada a sério, essa ideia naturalmente conduziria à expansão daquela seita judaico-platônica para além da nação israelita, e para a formação de uma nação cuja lealdade máxima é para com essa nova família: deve-se fazer o bem a todos, diz Paulo, mas “primeiro aos domésticos da fé“.

A ordo amoris da ética cristã é o registro dessa transformação da afinidade natural em uma afinidade sobrenatural e, portanto, uma missão estrangeira. As diferenças entre o particularismo judaico de alguns dos primeiros discípulos e o universalismo de Paulo podem ser vistas como maneiras diferentes de preservar laços de afinidade e lealdade. Talvez por debaixo daquelas acusações bizarras que os cristãos sofreram nos séculos seguintes (ateísmo, antropofagia, incesto) — que os colocavam como abomináveis, horrendos, desumanos —, estivesse a percepção de que os cristãos transcendiam as afinidades que mantinham a sociedade.

É verdade que se pode perceber em Jesus um descontentamento implícito para com o Império Romano e sua “benfeitoria”, e a percepção da necessidade de carregar a cruz, instrumento de morte desse Império, implicando a certa aceitação da tensão política. Muito do que Jesus disse pode e às vezes deve ser lido como contra Roma.

No entanto, essas ideias convivem com palavras bastante “imperiais” de Jesus, a começar com a ideia do Reino de Deus que se expande para todas as nações, nas quais já se insinuam as imagens chocantes (para uma sensibilidade moderna) do Armagedom canônico, e já visíveis nas palavras do compassivo Jesus lucano: “Quanto, porém, a esses meus inimigos, que não quiseram que eu reinasse sobre eles, trazei-os aqui e executai-os na minha presença.” Ademais, há várias insinuações de uma “Nova Roma” em vários personagens do Novo Testamento, em especial os vários “centuriões” do NT que prenunciam os soldados romanos cristãos dos séculos seguintes.

A transcendência da afinidade pede uma outra política.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Tertuliano e o Império

Um questionamento às vezes feito, por aqueles de tendência mais pacifista, diz respeito à mudança ocorrida com Constantino. Quando olhamos para os séculos anteriores, vemos um cristianismo sem poder político, perseguido e pacifista; mas então vemos um cristianismo que chega ao poder e se estabelece como religião oficial e privilegiada. Parece haver aí uma corrupção pelo poder.

Sem negar que todo ingresso no poder acarrete sua própria tentação — embora também haja tentação na miséria política —, a realidade é que a “teologia política” anterior a Constantino já havia preparado o caminho. Podemos tomar o exemplo de Tertuliano, um dos mais bravos pacifistas do período anterior, contrário, como vários dos primeiros pais, ao ingresso dos cristãos no exército imperial (que, hoje sabemos, acontecia com frequência). Um radical de coração, Tertuliano considera que, mesmo que não tenham que participar em sacrifícios ou penas capitais, ainda assim seria ilícito para os cristãos participar desses empreendimentos, pois não é possível servir a dois senhores: ou Deus, ou César.

Tertuliano é insuspeito. No seu Apologético, dirigido aos imperadores, ele deixou claro que os reinos e impérios se estabelecem a partir da guerra e da destruição de cidades, casas, templos, pelo massacre de sacerdotes e cidadãos. Ele tem essa ousadia — que seria mais ousada hoje do que antes, é verdade — num texto em que procura defender os cristãos da acusação de traidores do trono imperial. Ele não manifesta nenhum prazer nessas calamidades. Esse sentimento, essa sensibilidade para o sofrimento, essa percepção de como o poder inquestionável e distante trata a vida humana como nada e a pisa como traça, é a raiz de todo antiimperialismo possível.

No entanto, na mesma obra, enquanto criticava o culto aos imperadores, ele escreveu:

“…sem cessar, oramos sempre por todos os imperadores. Oramos por sua vida prologada, por um império seguro, por uma casa (imperial) protegida, por exércitos fortes, um senado fiel, um povo probo, um mundo tranquilo, pelo que, como homem ou como César, ele desejar…” (XXX)

“Há também uma outra maior necessidade para o oferecimento de nossas orações pelos imperadores, a saber, pela completa estabilidade do império e pelos interesses romanos, pois nós sabemos que um poderoso impacto iminente sobre toda a terra, aliás, o próprio fim de todas as coisas ameaçando com amargores horrendos, só é retardado pela contínua existência do Império Romano. Não desejamos, então, ser subvertidos por esses eventos terríveis; e, orando para que sua vinda seja retardada, emprestamos nosso auxílio à duração de Roma… Respeitamos nos imperadores o juízo de Deus, que os colocou sobre os povos. Sabemos que há neles o que Deus quis; e àquilo que Deus quis desejamos toda segurança, e consideramos esse um grande juramento.” (XXXII)

“Oramos, também, pelos imperadores, pelos seus ministros e por todos em autoridade, pelo bem-estar do mundo, pela prevalência da paz, pelo adiamento da consumação final.” (XXXIX)

Essas palavras não podem ser lidas como mera aplicação eloquente e exaltada da injunção bíblica da intercessão pelo bem-estar de governantes e povos. Há, bem aí, somada ao sentimento “não-nacionalista” patrístico geral, a noção de que o Império Romano, em particular, é mantenedor político da paz. Deus não apenas permite ou autoriza que Roma exista, como um caso da regra de que Deus dá autoridade aos governantes, mas, dentro da teologia de Tertuliano, existe um desejo particular de Deus para com o Império Romano, um desígnio divino para a “pax romana”.

Nesse sentido, já havia, muito antes da apologia pró-imperial de Eusébio, uma crença, entre esses cristãos perseguidos, de que havia um elemento importante na preservação do Império, razão por que, se desobedientes a ele em matéria de religião, não deixavam de lhe servir. Quase podemos, adaptando o dito de Loisy, dizer: Cristo prometeu o Reino, e o que veio foi o Império.

Rev. Gyordano M. Brasilino

SED UT COMMUNES

Um pouco mais de comunitarismo, agora sobre um tema controverso: o direito natural à propriedade privada.

Uma diferença importante entre São Tomás e os jusnaturalistas liberais diz respeito precisamente ao estatuto da propriedade privada. Para São Tomás, a propriedade privada (ou pessoal) não é um direito natural, inerente à natureza humana, mas uma convenção racional. O que é da lei natural, ao contrário, é a comunidade de todos os bens.

No artigo sobre furto e roubo, ele escreve (ST II-II q66 a2 ad1): “Ao primeiro respondo que a comunidade das coisas é atribuída ao direito natural, não de maneira que o direito natural dite que todas as coisas devam ser possuídas comumente e nada possa ser possuído propriamente, mas que segundo o direito natural não há distinção de posses, mas muito mais segundo um acordo humano [humanum condictum], que pertence ao direito positivo, como dito acima. De modo que a propriedade de posses não é contra o direito natural; antes é acrescentada [superadditur] ao direito natural por invenção da razão humana.”

A defesa da propriedade privada se dá, aqui, por uma distinção: ela não é do direito natural, mas um acréscimo. A propriedade privada é convencional. Não é necessário presumir a existência de um grande pacto social que tenha inaugurado a propriedade privada, como no contratualismo. É suficiente que haja um respeito legal convencional à propriedade privada, por uma aceitação tácita, não inerente à natureza humana ou à ordem do mundo, e respeitada como costume mais ou menos universal.

(É errado deduzir a condição de “direito natural” da propriedade privada de sua presença nos Dez Mandamentos, como querem alguns liberais-conservadores. Pela mesma lógica, também a escravidão seria direito natural, como muita gente já pensou, já que ela é duas vezes mencionada nos Dez Mandamentos: “o teu servo” (Êx 20:10), “o seu servo” (Êx 20:17). O raciocínio é enganoso.)

Note: São Tomás considera que essa decisão convencional é racional, ela tem bons motivos para ser mantida, mas não é absoluta, e seu modo de administração pode mudar e se adaptar com a sociedade. (São Tomás acreditava em certa tendência ao progresso filosófico e político, cf. ST I-II q. 97 a. 1 co.)

Portanto a universalidade da propriedade privada (no sentido mais amplo) não implica sua pertença à lei natural. É comum que os argumentos da lei natural às vezes se baseiem naquilo que é costumeiro aos povos (ius gentium), mas, em razão dessa distinção, esse raciocínio não se aplica à propriedade privada, e, é claro, também não se dá igualmente em todos os povos.

Essa distinção entre direito natural e positivo permite que São Tomás incorpore a doutrina patrística segundo a qual o excedente é devido aos pobres como justiça — é óbvio, já que uma convenção do direito positivo (a propriedade privada) não pode revogar um princípio da lei natural (os bens são comuns e se destinam ao bem comum), mas apenas explicá-lo e concretizá-lo. Assim como, numa república, o governante não é (de jure) dono do estado, mas apenas o titular e servidor de uma função pública, assim é com todas as formas de propriedade e poder na comunidade.

Nesse sentido, quanto às coisas exteriores, toda pessoa deve ter o que é seu, não como seu, mas como algo que é de todos, e, por isso, disponível para atender prontamente às necessidades comuns (“non debet homo habere res exteriores ut proprias, sed ut communes, ut scilicet de facili aliquis ea communicet in necessitates aliorum“).

Se eu penso, como os liberais (a começar de John Locke), que a propriedade privada é direito natural, qualquer noção de finalidade social da propriedade passará, em algum momento, pelo consentimento do proprietário, ou aparecerá como uma exceção intrusa. Mas aqui, presumindo a comunidade dos bens, é muito mais fácil entender a propriedade privada como uma concessão providencial razoável.

Por isso, São Tomás justifica a atitude de quem, emergencialmente, furta para comer ou sobreviver. É a lei natural falando acima de qualquer convenção. Com isso também, é inteligível a rejeição tradicional à usura (juros), já que tudo é comum, concepção que se perde facilmente num mundo moderno onde tudo é racionalizado, burocratizado, abstraído, matematizado e distanciado das relações comunitárias concretas.

Não sem um *preço*, é claro.

Também por isso, o imposto não é roubo, porque nada é tirado de ninguém, mas tudo pertence à comunidade. De certo modo, o furto não estaria em tirar de alguém o que é propriamente seu, mas de tirar do lugar próprio que ocupa na comunidade, das mãos do seu gestor.

Aqui, inonicamente, vemos como Marx absorveu um princípio liberal, dos economistas políticos que ele leu, ao tratar o fruto do trabalho como pertencendo originalmente, não à comunidade, mas ao trabalhador que o produz, na proporção do tempo de produção. (Recordemos: na escatologia marxiana, cada trabalhador se torna uma “síntese” dos ideais aristocrata e burguês, dissociado das trocas comunitárias.) Antes, deve-se ver todo trabalho como pertencendo à comunidade, e perguntar apenas como a comunidade cuida das necessidades do trabalhador que a sustenta.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Sobre o Nacionalismo, um comentário

“Nascido também na cidade de Belém, tão pequena entre todas as cidades da Judeia, que ainda hoje é chamada de vila, (Cristo) não quis que ninguém se orgulhasse da nobreza de qualquer cidade terrena.” — Santo Agostinho, Primeira Catequese aos Não Cristãos XXII

Quando cada um de nós olha para sua cidade e sua nação, encontrará motivos para agradecer, traços de uma história que nos fizeram ser quem somos e que são responsáveis por construir a liberdade de que desfrutamos. Há um nacionalismo ou patriotismo são, que consiste em olhar para tudo o que há de verdadeiro, bom e belo em nossa própria história, identidade e cultura, e se ver como também responsável por preservá-lo, algo que nos liga a pessoas distantes e nos ajuda a amá-las, por vermos aí o reflexo da humanidade comum.

Em grande medida, temos um destino comum, e enfrentaremos juntos as mesmas mazelas nacionais, queiramos ou não. Tal sentimento é bom quando serve para minar o espírito de seita e de individualismo, ambos alheios ao bem comum, assim como fator de unidade que sirva para minar hegemonias internacionais.

Esse sentimento agradecido de pertencimento e responsabilidade deve ser temperado com realismo histórico. Nem todas as pessoas, quando olham para a história da nação, veem tantos motivos de alegria, porque essa história se verá manchada por injustiças e crueldades, e ambiguidades e contradições por toda parte. O passado não foi igualmente generoso com todos, e cabe ao presente fazer a reparação.

Quando olhamos para trás em busca de nossas próprias raízes, devemos tomar o cuidado para não imitar os pecados de ontem, como se fossem virtudes esquecidas, que no fundo apelam mais à parte mais baixa e instintiva de nossa humanidade, e não às suas aspirações mais elevadas e universais (católicas). Se a água é mais espessa que o sangue, a fé cristã terá sempre um elemento internacionalista de cooperação, reconciliação e hospitalidade.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Caridade e Coerção

Reflexão sobre caridade, coerção e modernidade, a propósito de Tolstói.

Em sua famosa “Carta a um Hindu” (1908), Tolstói apresenta os termos gerais de uma narrativa interessante, ainda que não muito inovadora: ele trata parte da história política humana como um conflito entre a “lei do amor” (lei espiritual inerente à natureza humana e conhecida de todas as grandes religiões) e instituições políticas de coerção e violência (punições, prisões, execuções, torturas, guerras), marcada pela tirania de uma minoria sobre a maioria.

Nisso ele está em continuidade como que já havia escrito em “O Reino de Deus está dentro de vós” (1894), agora incluindo outras tradições religiosas (particularmente o hinduísmo). Por que a humanidade não percebeu a contradição entre a lei do amor e a coerção política? Segundo Tolstói, porque as superstições religiosas e depois as superstições científicas justificaram o recurso à violência. O que há de interessante na carta é que nela o romântico Tolstói se coloca também contra parte da modernidade (até mesmo contra a teoria atômica) e contra a ilusão de que a ciência traria ordem ao mundo.

A resposta, para Tolstói, estaria na lei inerente à natureza humana. Por isso, há na carta elementos que prenunciam a pós-modernidade, mas também há um essencialismo de fundo, o Rousseau em Tolstói. De todo modo, se Tolstói via contradição entre a lei do amor e a violência, a saída não seria a violência libertária, mas simplesmente o recurso à lei do amor, com o abandono das superstições. Simples, não? Imagine all the people living for today.

Essa tensão entre amor e opressão na política não é criação de Tolstói, mas tem longa história, e pode mesmo ser vista em Santo Agostinho, o qual, contudo, soube distinguir a Cidade de Deus e a cidade dos homens, em suas aproximações e afastamentos. (Por isso, há um considerável elemento “anárquico” em Agostinho, também.)

Isso mostra aquilo que eu considero como a heresia fundamental do tolstoísmo: a sua incapacidade de perceber o elemento caritativo na política. Ou, dito de outro modo, e em termos muito claros: a necessidade de defender a lei da caridade através de alguma forma coerção. Não a tortura (que corrompe o torturador e o torturado), nem a invasão a outras nações, mas realismo. Tolstói foi traído pelo individualismo romântico.

Ou talvez o melhor seria dizer que essa é a hipocrisia fundamental, ou a ingenuidade cordial, ou mesmo a desatenção essencial. Pois, se é verdade que a política moderna procurou expulsar a influência religiosa explícita, e gradativamente trocou a ética transcendente pelo positivismo e pelo constitucionalismo (que nunca se divorcia totalmente da ética), não conseguiu desfazer a conexão com o princípio do amor: quando proibimos que se mate, quando punimos a incitação a delito, quando limitamos os danos causados sob o primado da liberdade de expressão, nós agimos por uma preocupação caritativa (mesmo que oblíqua) para com o ser humano igual a nós. De fato, quando punimos torturadores, é à lei da caridade que prestamos homenagem.

Digo que há ingenuidade no tolstoísmo, e mesmo conivência com o mal, porque, na verdade, o motivo fundamental pelo qual não há ordem política sem violência, é este: há pessoas que, mesmo que não sejam espiritualmente irredimíveis, são politicamente irreformáveis, são inobjetificáveis, estão além de toda psiquiatria repressiva, de toda pedagogia libertadora, de toda negociação ao nosso alcance. Nunca devemos presumir que estamos diante dessas pessoas, a caridade nos obriga a dar a todos a chance de mudança, e isso certamente nos inspirará a condições distintas e humanas no tratamento dos condenados criminalmente. Num mundo em que pessoas assim existem, a caridade exige que protejamos aqueles que podem estar sob sua mira.

AOS CRISTÃOS CONSERVADORES

AOS CRISTÃOS CONSERVADORES

Misericórdia, paz e amor.

As Sagradas Escrituras nos ensinam que Deus reina sobre as nações e que é ele quem eleva e depõe os nossos governantes.

Diante de tantos cristãos que oraram, jejuam, intercederam, choraram e fizeram campanha para Jair Bolsonaro, a pergunta que devemos fazer agora é: o que Deus nos ensina com esses resultados?

A aritmética do primeiro turno já nos havia dito que as chances de Bolsonaro eram poucas. Somente um milagre poderia elegê-lo.

E o milagre não veio.

Esses evangélicos, se não confundindos pela ideologia, foram, na melhor das hipóteses, enganados pelo “mal menor”, que tem e sempre terá o poder de nos corromper. Mal menor porque, sabendo dos erros graves de Bolsonaro, não poderiam suportar as consequências do retorno de Lula e daquilo que sabem que ele pretende avançar, como a causa assassina em favor da legalização do aborto.

Quantos ministérios não foram humilhados por esse apoio? Quantas comunidades não caíram na vergonha? Quantas igrejas e famílias não foram divididas? Quantos púlpitos não foram maculados? E quantos cristãos não foram ostracizados e hostilizados naquela que deve ser a “Casa de Oração para todas as nações”, por não se verem obrigados a participar desse jogo? Em vão. Só veio o ônus.

Bolsonaro não foi capaz de convencer mais de 60 milhões de eleitores brasileiros de sua honestidade e sanidade, de sua lealdade à democracia, de sua capacidade de governar, de combater a corrupção e de conduzir a nação numa direção melhor.

Bolsonaro foi incapaz de unir o Brasil diante da crise da pandemia, a maior oportunidade que ele teve. Ele fracassou, a ponto de que um candidato corrupto, Lula, seja eleito.

Ele não cumpriu o seu papel.

Os evangélicos serão maiores em número nas próximas eleições. Os cristãos precisam de uma maneira diferente de lidar com a política, e construir alternativas que representem a totalidade dos nossos valores cristãos, sem ceder ao pragmatismo — a favor da vida e a favor do pobre, a favor da mãe nordestina, a favor do negro, da educação e da saúde, a favor da justiça, a favor da paz. Se não formos capaz disso, a falha é nossa.

Jesus Cristo reina.

Por que eu não acredito em Cosmovisão Cristã?

Não sei se é só impressão pessoal ou ilusão da bolha, mas parece que de um tempo para cá esse papo de “cosmovisão cristã” perdeu um pouco de força. Em algum momento as pessoas iriam cansar, é claro, e ouvi dizer quer algumas vozes do movimento mudaram de foco. Isso é bastante positivo.

Os motivos pelos quais eu não acredito nessa ideia são principalmente três, e acho que eles ditam, em parte, os motivos do cansaço (atual ou futuro).

1. Em geral, são calvinistas aplicando o calvinismo (de certo tipo) a todas as esferas da cultura e do pensamento. Isso lhes traz o benefício de escreverem algo extremamente relevante para o grupo e profundamente irrelevante para os cristãos que não tenham essa “cosmovisão cristã”, assim como para os não-cristãos. (Além de ser mais fácil de atrair jovens em busca de intelectualidade, pois é o caminho fácil para se sentir mais douto que Aristóteles.) Então pode haver interação com os de fora, leitura, releitura, mas não diálogo no sentido estrito. Há sempre uma contaminação presumida no pensamento exterior. Por isso, é um movimento que só pode crescer de fato até atingir a pequena parcela dos correligionários; depois, como qualquer império, cansa.

2. Eu não acredito que essa coisa de “cosmovisão cristã” exista. Cristãos de culturas, eras e lugares sociais diferentes não têm a mesma cosmovisão, e a Bíblia não é suficiente para gerar uma cosmovisão, além de que seria impossível demonstrar que os escritores sagrados tinham a mesma cosmovisão. A Bíblia nos fornece uma janela para uma cosmologia, uma doutrina sobre o mundo, mas essa cosmologia não é exclusivamente cristã — ela está presente em outras religiões e deve muito à cultura helenística mediterrânea — e não é completa. Custa usar a Bíblia para o propósito pelo qual ela foi escrita e reunida?

3. Essa proposta, como várias outras, parece presumir um relativismo de fundo: se não for pelo meio “A“, resta apenas a relatividade total, o caos do pensmento. Todo mundo sabe como é ridículo quando algum apologista católico de internet vem com aquele papo de “ou o Papa, ou não tem doutrina certa”, como se essa autoridade fosse a única via de acesso à verdade. Não são fideístas, mas agem como se fossem. O caso dos cosmovisionários é que eles parecem ser mesmo fideístas. A ausência de fontes múltiplas do saber, naturalmente acessíveis para cristãos e não cristãos, tende a formar um pensmento único que é facilmente instrumentalizado na política.

Rev. Gyordano M. Brasilino