A Verdade a todo custo?

Nós fazemos duas importantes descobertas ao longo da vida. Embora cada uma dessas descobertas possa parecer muito radical e inovadora no seu próprio momento, na realidade provavelmente a maioria das pessoas passa por elas. A primeira descoberta é a de que não precisamos nos importar com o que outras pessoas pensam. A segunda descoberta é a de que precisamos, sim, nos importar com o que outras pessoas pensam.

A aparente contradição na realidade revela uma diferença importante. Cada uma dessas duas verdades têm seu próprio lugar. Quando somos crianças, nós somos dominados pelo que outras pessoas pensam, pelas pessoas que, ao nosso redor, nos influenciam e orientam a nossa vida. As palavras dessas pessoas têm um grande poder de nos afetar emocionalmente: provocam medo, alegria, ira, desespero, esperança, desejo e várias outras paixões com muita facilidade. Parte do amadurecimento é descobrir que nossa própria vida interior não depende dos juízos que essas pessoas fazem. A formação da nossa própria identidade pessoal envolve essa primeira descoberta.

Mas frequentemente essa primeira descoberta vem com o sentimento de que sabemos de tudo, de que guiamos a nós mesmos, de que somos imbatíveis. E então descobrimos que tudo isso é falso, de que na realidade, embora nossa vida emocional não precise ser controlada por outras pessoas, não somos tão espertos e sábios quanto pensávamos, e nossa vida continuará, até o fim, dependente de outras pessoas. Na realidade, ao mesmo tempo que nossa percepção para essas coisas crescerá, nosso próprio vigor físico diminuirá, nos dando maior consciência de nossa própria limitação e mortalidade. Naqueles que passarem por esse crescimento, o primeiro sentimento libertário adolescente será progressivamente moderado por um senso comunitário.

A verdade de que não dependemos de outras pessoas deve ocupar nossas paixões. A verdade de que dependemos de outras pessoas deve ocupar nossa inteligência. A “opinião” alheia é boa quando forma e eleva, e má quando nos domina e subjuga.

Há vários motivos importantes pelos quais devemos nos importar com o que outras pessoas pensam. O primeiro motivo óbvio é o de que, na realidade, o conhecimento que nós temos é construído socialmente; mesmo as descobertas individuais se dão num contexto de uma liberdade construída em sociedade, com instrumentos que recebemos de outras pessoas. Ou, nas palavras da Escritura, “na multidão de conselheiros há segurança“, “na multidão de conselheiros está a vitória“.

Existe um outro motivo, mais profundo. A Sagrada Escritura nos ensina que, por amor, devemos evitar escandalizar todas as pessoas. Escandalizar é colocar obstáculos desnecessários à fé, coisas que para nós podem parecer relativamente importantes e interessantes, mas que acabam impedindo outras pessoas de terem acesso a Cristo, ou acabam fazendo perecer aquelas pessoas por quem Cristo morreu. Paulo fala de como os primeiros cristãos, mesmo sabendo que os ídolos nada são, deveriam evitar comer a comida consagrada aos ídolos, para que outros cristãos, menos sábios, não se escandalizassem. “O saber ensoberbece, mas o amor edifica“.

Esse ensinamento de Paulo é fácil de entender à luz da virtude que Deus exige de nós: continuamente, a Escritura ensina que devemos ser pacificadores, nos esforçar pela paz, procurar ter paz com todas as pessoas tanto quanto pudermos. Há uma importante prioridade a ser colocada na paz. A paz não é só um efeito colateral de nossas ações, algo que acontece quando, por acaso, as pessoas resolvem concordar. Não, na verdade nós devemos promover a paz ativamente, procurando reconciliar o que estava dividido. Por isso também, aprendemos na Escritura a procurar ter o mesmo pensamento, o mesmo sentimento, a manter unidade em tudo o que pudermos. Existe, é verdade, um espaço de liberdade de pensamento e juízo pessoal — “Cada um tenha opinião bem-definida em sua própria mente.” (Rm 14:5) —, portanto não se trata de uma anulação da consciência pessoal. Mas há uma ênfase continuada, na Escritura, em torno da preservação da paz e da unidade entre as pessoas. Não devemos ser os divisores, e essa verdade vale tanto para a sociedade civil (na condenação do pecado da sedição) quanto para a sociedade eclesiástica (na condenação dos pecados do cisma e da heresia).

A aparente contradição entre as duas verdades ditas no começo do texto tem uma semelhança com algo que aparece na Escritura, também nas palavras de Paulo. Ele escreveu, em momentos diferentes:

Porventura, procuro eu, agora, o favor dos homens ou o de Deus? Ou procuro agradar a homens? Se agradasse ainda a homens, não seria servo de Cristo. Gálatas 1:10

Portai-vos de modo que não deis escândalo nem aos judeus, nem aos gregos, nem à igreja de Deus. Como também eu em tudo agrado a todos, não buscando o meu próprio proveito, mas o de muitos, para que assim se possam salvar. 1 Coríntios 10:32-33

O que devemos fazer? Procuramos agardar a homens ou não? No primeiro caso, há uma comparação: nossa prioridade está nos homens ou em Deus? Nesse caso, Paulo é transparente: somos servos de Cristo. Ele se utiliza da frequente antítese hiperbólica semítica (absoluteness) para expressar uma preferência, uma prioridade. Mas, quando ele se compara a outras pessoas, mostra logo que ele não busca seu próprio interesse, mas o de outras pessoas, procurando agradá-las. Ambos os textos partem de certas comparações, e o resultado disso é que, em muitas situações, devemo, sim, ter o interesse intencional e movido pela missão (e não passional e movido pelo medo e pela dependência afetiva) de agradar outras pessoas. Ao dizer essas coisas, São Paulo mostra como ele estava imitando ao próprio Cristo, que se desfez dos seus interesses pelos nossos.

Nesse sentido, o sentimento desagradável do tipo “não me importo com nada e ninguém” não tem aprovação na Escritura Sagrada. Devemos, sim, nos importar com o que outras pessoas pensam, ouvi-las, receber de sua sabedoria, devemos evitar escandalizá-las, devemos procurar agradá-las em justa medida, devemos nos esforçar para estar em paz com elas, não devemos interpor obstáculos desnecessários à comunhão. Isso, no fim das contas, é a virtude da amabilidade. Não devemos nos escravizar a outras pessoas, mas devemos, sim, servi-las por amor. Essas verdades valem para nosso relacionamento com todas as pessoas, e sobretudo na Igreja de Cristo, “para que não haja divisão no corpo” (1Co 12:25). Segundo as Escrituras, os passionais que provocam divisões “não têm o Espírito” (Jd 19). Deus ordena a sua bênção onde há união.

Por isso, deve ser evitado e rechaçado todo pensamento e desejo de “falar a verdade” que não seja com amor e em paz. Se falamos sem amor, é só barulho, “o bronze que soa ou como o címbalo que retine“. Toda comunicação eficaz se dá num ambiente de respeito mútuo. Quando tentamos “pregar a verdade” num ambiente em que essas ideias não são bem vindas, e sem o devido amor e atenção, tudo o que fazemos é lançar pérolas aos porcos que, depois de as terem pisado, se lançarão contra nós. Ao contrário do que dizem os que pensam que devem falar o que quiser, sem considerar as consequências — pecando contra a virtude da prudência —, em vários momentos a Escritura nos ensina a ponderar essas coisas, “para que o ministério não seja censurado” (2Co 6:3), “para que a palavra de Deus não seja difamada” (Tt 2:5), “não deem ao adversário ocasião favorável de maledicência” (1Tm 5:14), “para que o nome de Deus e a doutrina não sejam blasfemados” (1Tm 6:1). Os primeiros cristãos se importavam com o que as pessoas de fora pensavam deles, tanto que o ministro deveria ser alguém que tenha “bom testemunho dos de fora” (1Tm 3:7).

Em outras palavras: “Portai-vos com sabedoria para com os que são de fora; aproveitai as oportunidades. A vossa palavra seja sempre agradável, temperada com sal, para saberdes como deveis responder a cada um.” (Cl 4:5-6)

Algumas pessoas têm essa ideia de que quem serve a Deus precisa ser rejeitado pelas pessoas em redor. É um pensamento sectário, que só estimula o orgulho e o separatismo. Alguém vai nos rejeitar, é claro, e não devemos fazer o bem apenas para receber reconhecimento mundano, mas a virtude também será reconhecida por outras pessoas, especialmente pelos pequeninos. O testemunho dos de fora deve ser o das palavras de Tertuliano: “Vede como se amam!“. Cristo ensinou que as boas obras dos discípulos, resplandecendo como luz, deveriam ser reconhecidas pelas outras pessoas; Paulo ensinou que quem serve bem a Deus é “aprovado pelos homens” (Rm 14:18). Essa realidade se cumpriu na vida dos primeiros cristãos em Jerusalém, os quais, mesmo sendo perseguidos pelas autoridades, contavam “com a simpatia de todo o povo” (At 2:47).

Também há quem pense que temos a obrigação de desafiar tudo aquilo que vai contra a nossa fé, mas isso não é verdade, e, no fundo, a maioria das pessoas sabe disso. A maioria de nós convive com familiares, colegas de trabalho, vizinhos e amigos que não compartilham da mesma fé e doutrina, que professam outras religiões ou nenhuma religião, que seguem uma moralidade substancialmente distinta, e nós sabemos que a convivência pacífica com essas pessoas exige que nós não as corrijamos o tempo todo. Todos nós, em algum momento, passamos em frente a templos de religiões com as quais não concordamos. Seria nossa obrigação entrar nesses templos, sem convite e sem respeito, e tentar retirar daquela religião as pessoas? É claro que não. Tentar fazê-lo é ainda pior. Não é assim, por exemplo, que Paulo se comportou no Areópago (ele elogiou sua religiosidade). Em Éfeso, ele não criticou o culto de Diana. Aliás, segundo os Atos dos Apóstolos, a perseguição em Éfeso surgiu não porque os cristãos fossem inimigos de Diana, mas porque a conversão das pessoas à religião cristã os ameaçava. Os cristãos não foram em busca de briga. A briga veio até eles.

Existem momentos em que a verdade precisa ser dita, e, nessas situações, devemos dizê-la sem medo e com amor. Mas nem sempre a verdade precisa ser dita; na maior parte das situações, você simplesmente se cala. Todos nós convivemos com situações em que temos que fazer de conta que não vemos as coisas. Usando um exemplo que uma pessoa me trouxe: se um amigo seu colocou um nome feio no filho, você não tem obrigação nenhuma de dizê-lo. Se um pregador de alguma religião maluca estiver anunciando sua mensagem na rua, não se pode dizer que todo mundo tenha obrigação de corrigi-lo imediatamente. A maioria pode simplesmente seguir sua vida e ignorá-lo. Nós fazemos esse tipo de coisa o tempo todo. Se alguém está protegendo um judeu no sótão e mente para o agente da SS, dizendo que não há nenhum judeu, você, estando ali presente, não tem obrigação de dizer a verdade; sua obrigação é manter o silêncio, para não cooperar com o mal, que deseja se utilizar da verdade.

Existe um tipo de vício perigoso, que é o respeito humano, que consiste num cuidado exagerado com o que outras pessoas pensam ou permitem. Mas o perigo do respeito humano não deve servir de justificativa para que nos lancemos no perigo ainda maior da sedição, do ódio e do escândalo. O que caracteriza o respeito humano é uma prontidão para fingir, para mentir, por colocar as outras pessoas acima da verdade, efetivamente rejeitando a Cristo, se não por palavras explícitas, ao menos por atitudes. Não é isso o que eu defendo, nem o que todos esses exemplos bíblicos citados ensinam, mas sim o comportamento pacífico e capaz de silenciar quando falar for imprudente, e que se importa, sim, com a preservação da paz nas relações. O Evangelho verdadeiro e bíblico é o Evangelho da Paz.

Essa preocupação com a preservação da unidade e a evitação do escândalo é tão importante que São Tomás de Aquino, ao falar da punição da excomunhão, declara na Suma Teológica, repetindo a opinião de Santo Agostinho, que: “Mas se pela inflicção das penas é manifesto que mais e maiores pecados se seguem, então a inflicção das penas não será contida na justiça. E é deste caso que fala Agostinho, ou seja, quando há perigo de cisma na excomunhão de alguns, então realizar a excomunhão não pertenceria à verdade da justiça.” (II-II q43 a7 ad1) Note-se: aqui está em jogo a unidade da Igreja, e, para São Tomás, é melhor preservar a unidade da Igreja do que excomungar algumas pessoas. Quem lê a Suma sabe que São Tomás tinha muito apreço pela preservação da verdade, e não tinha a paciência moderna para os problemáticos dentro da Igreja. Mas ele preferia evitar o cisma, resultante do escândalo, tolerando essas pessoas.

Sobre isso, há duas situações necessárias a comentar: a de Cristo e a dos mártires. Esses casos frequentemente são colocados como exemplos de pessoas que disseram a verdade e foram punidas por isso. Quem coloca esses exemplos pensa: não devemos ser assim também, dizer a verdade mesmo que haja risco de punição? O argumento falha porque presume que Jesus e os mártires foram punidos por serem polêmicos, por saírem dizendo a verdade que queriam a quem queriam.

A “comunidade” para a qual Jesus pregava não era um corpo unido ao qual ele perturbou trazendo discórdia. Era um corpo desunido, “ovelhas sem pastor“, segundo o próprio Jesus, e ele procurou, antes, uni-los, como pintinhos debaixo das asas da galinha. Jesus procurou trazer unidade, e não divisão, a Israel. Mas é óbvio que quando você faz isso numa comunidade desunida, com várias forças em ação em busca do poder, suas palavras acabarão atingindo alguém, justamente às forças que ganham em cima da desunião. Si vis pacem, para bellum. É diferente o caso de um corpo coeso e unido que alguém procura perturbar.

Cristo disse, certa vez, que não veio “trazer paz, mas espada“, e que, como resultado de sua doutrina, famílias se dividiriam. Mas é importante notar que há certa ironia nas palavras de Cristo, certa linguagem figurada. O que acontece não é que Cristo dividiu essas famílias, mas sim que alguém, ao colocar obstáculos a essa doutrina, traria divisão. O divisor não é Cristo; seus inimigos é que o são. Frequentemente, no ministério de Cristo, são esses divisores, em busca de poder, que vem até ele com a polêmica. Ele não vai até eles. Às vezes as pessoas vão a Cristo com maus interesses, e ele lhes diz palavras duras (como no Discurso em Cafarnaum, João 6) que os faz ir embora. Mas note-se: Cristo não foi até essas pessoas, elas vieram até ele, sendo que elas mesmas rejeitaram o que ele disse.

De todo modo, em toda situação de unidade, há sempre um “princípio de unidade” que a promove — uma pessoa, um grupo de pessoas, um símbolo. Cristo era o princípio de unidade de Israel, e o provou com sabedoria irresistível e milagres numerosos. Esse princípio de unidade fala em nome da unidade do grupo, de modo que quem diverge dele diverge do grupo — então o grupo divergente, e não o princípio de unidade, é quem tem a culpa de promover a divisão. Onde quer que chegue, Cristo tem o direito de nos iluminar no que não sabemos. Onde quer que chegue, ele é a autoridade a quem todos devem ouvir, ele é a voz da unidade.

A maioria de nós não tem uma condição sequer análoga à Cristo, no entanto — a maioria não tem uma autoridade incontestável, ou sabedoria irresistível, ou milagres atestados. Por isso, quando falamos, nós o fazemos numa posição que não pode obrigar as outras pessoas com a mesma força, então não podemos exigir tanto das pessoas, mas devemos ser mais pacientes e mais tolerantes com elas, pois estamos, quanto à nossa humanidade e autoridade, mais perto delas do que de Jesus. Mesmo os ministros do evangelho, que poderiam falar com maior autoridade e obrigar à obediência, na realidade devem falar com ainda maior mansidão, como exemplos para todo o povo de Deus, quanto à paz civil; quanto à paz eclesiástica, devem zelar, sim, pela preservação da verdade, mas ainda com mansidão.

Assim como Jesus, embora deteste a polêmica, eu falo de temas que são polêmicos, mas a divisão que há nesses temas não é uma divisão trazida por mim, e sim uma divisão que já está aí, entre os cristãos. Nesses casos, a minha posição é, tanto quanto eu consigo enxergar, uma posição de “via média”, com a qual a maioria das pessoas pode se identificar em parte. Eu evito o radicalismo justamente porque ele é inerentemente divisivo.

Há uma profunda ilusão em pensar que simplesmente jogando verdades na cara das pessoas nós nos tornamos mais semelhantes aos mártires de Cristo; é achar que, porque somos maltratados pelas pessoas, somos iguais aos mártires. Não é essa a ousadia dos mártires. Mas eu direi que acredito nos argumentos dessas pessoas, que acham que fazem o mesmo que fazem os mártires, quando elas começarem a operar os mesmos milagres que os mártires fizeram.

A verdade está na paz, e a paz está na verdade. Devemos resistir aos pensamentos de quem quer separá-las. Abraçar o evangelho é abraçar o escândalo do Crucificado. Não precisamos inventar nenhum outro escândalo.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Pare de culpar os eleitores

Um dos sintomas da divisão política é a maneira como cada extremo do espectro político culpa o outro extremo por todos os males do mundo, igualmente culpando também qualquer pessoa que queira ver a guerra sob outra perspectiva. Nesse processo, todas as decisões ruins dos candidatos são lançadas na conta dos seus eleitores, como se fossem eles os responsáveis. Que medida de verdade há nisso?

Aqui não estamos falando de uma responsabilidade jurídica, naturalmente. Os eleitores não são, em lugar nenhum, responsáveis juridicamente pelas ações do candidato. (Uma nação pode sofrer sanções internacionais com base nas decisões da sua liderança política, mas a sanção não se dirige aos eleitores e isso ocorre mesmo fora das democracias representativas.) O que está em jogo aqui é a responsabilidade moral, que, no mundo das ideias, significa imputar culpa moral; mas, na realidade concreta, significa o direito de envergonhar socialmente outras pessoas, numa tentativa de transferir frustrações ou de converter futuros votantes.

Numa eleição representativa democrática, o voto pessoal é, em geral, irrelevante, incapaz de realizar qualquer mudança no cenário governamental. Há essa ilusão frequente de que o nosso voto é crucial, mas qualquer pessoa que saiba fazer as contas perceberá que não é assim; não importa em quem eu vote, o voto não mudará o resultado. Os políticos de qualquer lugar no espetro político, numa democracia liberal representativa, querem que os eleitores pensem que cada voto é uma decisão moral seríssima, e nesse processo são ajudados por professores e jornalistas, que em geral corroboram com a narrativa. Por um lado, isso é um meio de enfrentar o problema dos votos nulos ou em branco (através da pressão passional, não do convencimento); por outro, é também uma forma que várias pessoas “bem posicionadas” se utilizam para fazer campanha velada para algum candidato.

Não são os votos individuais que contribuem para a eleição de um candidato, mas somente a movimentação de milhares e milhões de votos. Não estamos falando de uma eleição de síndico de prédio, em que cada voto possa ser decisivo. Nas eleições nacionais, a situação do voto de desempate não ocorre, e, mesmo se ocorrer, ela é improvável, então todo mundo vota já supondo que ela não ocorrerá.

Quem é capaz de eleger um candidato, então? Além do próprio candidato e a estrutura partidária por trás dele, a mídia nas suas várias formas, e pessoas que detêm algum tipo de poder ou influência. Uma notícia, como a facada em Bolsonaro em 2018, atrai a atenção de milhões de pessoas. Retornarei a essa questão mais abaixo. De todo modo, se quiséssemos atribuir responsabilidade a cada eleitor pela vitória do seu candidato, quanta responsabilidade seria? 0,000001%? Se quisermos dizer que cada eleitor contribui — coisa que eu não concedo! —, poderemos dizer que contribui, no máximo, de modo microscópico, infinitesimal.

O que acontece é que a tentativa de atribuir responsabilidade aos eleitores só funciona para os outros, não funciona para quem faz a acusação. As pessoas podem se arrepender de ter votado ou apoiado determinado candidato, mas nunca assumem a responsabilidade pessoal e nunca se consideram objetivamente culpadas pelos erros dos candidatos que apoiam — mas querem que os outros o sejam. E mais: quem não apóia nenhum candidato e além disso vota nulo, expressando insatisfação por todos os candidatos disponíveis, é julgado como se aceitasse qualquer um.

Existe uma segunda coisa que ninguém gosta de admitir, que é a responsabilidade cruzada. Os candidatos que apoiamos acabam, por seu comportamento, atraindo adversários que também são reprováveis. Somos também responsáveis por isso? Por exemplo, os progressistas que querem a legalização dos “direitos reprodutivos” se consideram responsáveis por forçar parte do eleitorado (que não tem dificuldade com outras questões de justiça social) a votar em candidatos abjetos apenas para evitar essa pauta? Não, não se consideram.

Essa tentativa de pautar as decisões éticas por consequências é uma forma bastante propagada de consequencialismo, na sua versão mais ingênua, que significa algo como: você é culpado por qualquer consequência danosa das suas ações, de maneira que as ações são definidas como boas ou mais através da soma preponderante de consequências boas ou más. Essa forma ingênua, embora seja muito comum, basicamente não é defendida seriamente por ninguém, pois suas falhas são óbvias. No fim das contas, esse tipo de pensamento termina por nos ensinar que os fins justificam os meios, portanto qualquer crueldade é justificável. Mas outra falha nos interessa aqui: em que medida podemos responsabilizar Sócrates por Stalin — um não existiria sem o outro —, ou São Paulo por Auschwitz? Em casos extremos assim, poucas pessoas atribuiriam muita responsabilidade, mas o fato é que não temos critérios para julgar até onde uma pessoa pode ser responsabilizada pelas ações de outra, se não considerarmos outras coisas além das consequências.

Uma melhor maneira de tratar essa questão é levar em conta as diferentes intenções morais dos eleitores. De fato, é assim que cada um de nós deseja ser julgado — quando tomamos decisões difíceis, queremos que outras pessoas levem em conta nossas intenções, que não julguem nossas ações apenas com base no que veem, que considerem também as várias dificuldades envolvidas. Historicamente, cristãos e pessoas de outras religiões cometeram e cometem muitas injustiças quando julgaram os praticantes das demais religiões, por considerarem apenas a maneira como vivem, dissociada das intenções e das muitas dificuldades que envolvem a vida humana — vindo a perceber que um avanço no diálogo só acontece quando as partes decidem parar de imputar culpa mutuamente. Quando julgamos as pessoas considerando apenas suas ações, cometemos muitas injustiças. A ética cristã nos ensina a considerar as intenções: “o Senhor pesa os espíritos” (Pv 16:2). Por isso, Cristo nos ensina a buscar a pureza de coração.

Nessa constelação de intenções, cada pessoa vota considerando certas prioridades — coisas que considera importantes ou urgentes, por exemplo —, e vota para que o candidato exerça bem o cargo. Presumivelmente, as pessoas não votam para que o candidato exerça mal o seu cargo, nem votam em ações exteriores ao cargo. Mas é a mesma pessoa, então não há como separar o exercício da função e a vida do candidato eleito.

Nesse paradigma cristão, não somos imediatamente responsáveis por consequências de nossas ações, mas sim pela nossa própria prudência em considerar as consequências. A virtude da prudência é a capacidade e atenção para usarmos os melhores meios para alcançarmos os melhores fins; prudência é providência, previsão. Mas ela é uma virtude pessoal, e uma pessoa prudente, no exercício mesmo de sua prudência, pode tomar decisões que tragam a consequências ruins, por vários motivos (cálculo errado, informações ruins). Duas pessoas prudentes podem chegar a conclusões contrárias. Elas só são culpadas por faltarem com a prudência; não são culpadas pelas consequências em si mesmas, desconsiderando as intenções.(A responsabilidade jurídica objetiva não funciona assim, e com razão, mas não é dela que tratamos aqui.)

Em 2012, na segunda eleição de Barack Obama, o brasileiro Mangabeira Unger atraiu atenção quando pediu que os eleitores progressistas americanos não votasem nele, sob o argumento de que Obama havia falhado em implementar a agenda progressista e precisava ser derrotado. Esse tipo de posicionamento público choca os mais “pragmáticos” e imediatistas, mas é um exercício de gratificação adiada: é preciso dar um passo atrás, num dado momento, para dar vários à frente depois. Esse é um exemplo de como a relação entre o voto e suas consequências é complicada. Nesse caso, o voto é visto como uma escolha estratégica.

Quando consideramos as diferentes intenções por trás dos votos, lidamos com uma geografia mental muito tortuosa: um voto pode significar apoio irrestrito ou um apoio moderado e parcial; pode significar apoio ao candidato, ao partido ou à ideologia; pode significar uma escolha pragmática pelo “mal menor” ou uma rejeição do poder corruptor do “mal menor”; pode significar repulsa moral ao opositor ou adesão ao grupo (corporativismo); pode significar uma escolha pessoal refletida ou delegação aos mais entendidos; pode significar algum tipo de protesto ou afirmação de interesses pessoas, interesses sectários, interesses comunitários; pode significar puro desejo de alternância ou mudança. Outros fatores envolvidos são a ignorância parcial — todos nós somos parcialmente ignorantes da política concreta —, a pressão moral, as diferentes hierarquias de valores, a insegurança, o medo, a ira, a afinidade pessoal. O que parece é que só podemos atribuir responsabilidade objetiva e unívoca ao voto quando assumimos algum tipo muito superficial de “psicologia pop”, onde toda decisão é óbvia para todo mundo.

É por isso que dizer que “presidiários votam em Lula” ou que “racistas votam em Bolsonaro” não nos dá nenhum motivo para pensar que a massa de eleitores apóia o crime ou o racismo. Isso é tão óbvio que é difícil não imaginar que haja desonestidade em quem faz esse tipo de generalização — desonestidade que, mais uma vez, não pode ser generalizada.

Quanto à questão da ignorância em particular, eleitores não são capazes de prever razoavelmente as situações todas com as quais os candidatos irão lidar, nem têm todos o mesmo instrumental político e a capacidade de acompanhar todas as notícias. Estamos todos em uma guerra de informações, e a maioria de nós só pode almejar dar um bom chute. O número de pessoas que votam nulo, em branco ou até se abstêm (e a atenção que essas pessoas recebem no segundo turno) é um bom índice de como as pessoas em geral votam insatisfeitas.

Dentre os votantes, há todo tipo de gente. A coisa muda de figura quando falamos não dos votantes, mas dos apoiadores, das pessoas que fizeram algum tipo de campanha, que influenciaram outras pessoas. Pois quando apoiamos um candidato, nós nós arriscamos a convencer um pequeno número de pessoas que podem influenciar outras. Nunca sabemos que impacto nossa influência pode ter, então assumimos um risco ao apoiar um candidato, e por isso somos, sim, responsáveis moralmente, quando havia chances razoáveis de prever os resultados.

Uma questão ligada a essa das intenções por trás dos votos é o problema recorrente não resolvido: até que ponto votar significa aprovar o comportamento dos candidatos? Aqui, os candidatos jogam nos dois times: no primeiro turno, tentarão convencer a todos de que são honestos, corajosos, honrados; no segundo, outras pessoas, falando em seus nomes, dirão a todos que não estamos votando em santos, que não precisamos ser criteriosos demais. (Aqui, embora não atribua esse tipo de responsabilidade ao voto, acredito que quem conecta o voto ao apoio moral ao candidato acerta em parte: não há como separar a prática política da virtude ética. O govenante é um líder nacional, não só um técnico à frente da máquina. A sociedade aberta, sem orientação para a virtude, é uma ilusão.)

No momento em que enpregamos essa lógica de responsabilidade pelo voto, criamos uma culpa eterna, irredimível. Não há nenhum meio de se livrar dela. Tratamos o outro lado como inimigo a ser desprezado. É fato que, nas sociedades modernas, não há nenhuma forma transparente de se livrar dessa culpa; só se livra dela quem se torna útil para a elite do momento.

A ideia de responsabilizar os eleitores é lançar a culpa sobre as pessoas que têm menos poder de decisão política, e, no processo, contribuir com a divisão social através do pecado de sedição. Devemos olhar para os mais poderosos (não só na política em sentido estrito) para encontrar os culpados. Ninguém estará lá assumir a culpa pelas consequências do consequencialismo, quando a tentativa de inculpar o outro lado produzir divisão ainda maior.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Os Pais da Igreja provavelmente vão te decepcionar

Os Pais da Igreja serão uma decepção para qualquer pessoa que procure uma defesa irrestrita de alguma política moderna. A despeito das diferenças entre eles, as tendências deles simplesmente não se encaixam no que alguém esperaria hoje.

• Eles eram “antiproprietaristas”, no sentido de conceberem a propriedade privada e o enriquecimento como resultantes de convenções sociais e tendo, ao menos em parte, origem maligna. Além disso, havia, óbvio, a boa e velha crítica ao pecado da usura e prática abudante da misericórdia.

• Eles viam o trabalho como sofrimento e desprezavam a preguiça.

• Eles não viam a liberdade como capacidade de fazer qualquer coisa desimpedidamente, mas como o desimpedimento para buscar o Bem Supremo.

• Eles certamente acreditavam em uma moral bastante robusta quanto aos costumes, e iam na contramão de qualquer liberação sexual, mas eram muito tolerantes com condições que há poucas décadas eram tratados como “degeneração”. A sua transigência com o concubinato, e até proteção eclesial dos concubinos — que comungavam —, era sintomática, e não mostrava, em nenhum lugar, consciência de ser exceção pastoral. Essa posição é desconcertante quando justaposta à sua abordagem estridente e intransigente contra o adultério.

• Não se encontrará nada nos Pais que pareça uma separação entre política e religião. (Alguém tenta forçar algo assim em Santo Agostinho, mas basta estudar sua abordagem da controvérsia donatista para perceber que não.)

• Eles eram moderadamente antinacionalistas, ou, melhor dizendo, fortemente internacionalistas (como bons platônicos). Os Pais acreditavam, de maneira geral, que a separação entre as nações, e especialmente as guerras entre elas, resultavam em parte de um cativeiro demoníaco. A ênfase da doutrina patrística estava na irmandade universal (sem detrimento, mas justamente em função, da irmandade eclesial).

• Eles não eram capazes de viver sem uma sólida teologia da desobediência civil.

• Tanto antes como depois de Constantino, eles eram também moderadamente “imperialistas”, no sentido de verem maior vantagem em que os diversos povos estivessem unidos sob mesmo governo, justamente em razão da humanidade comum e do “antinacionalismo”. Além disso, como vários deles acreditavam que o Império Romano era o “katechon” que impedia o fim do mundo, desejavam a continuidade perene do Império. As pessoas se surpreendem com o quanto Tertuliano, o proto-tolstoísta, e Eusébio, o ideólogo constantiniano orgânico, eram semelhantes. (Quem não entende essas coisas verá 313 como uma tragédia inexplicável.)

• Eles tinham uma noção vaga mas certa de progresso, no sentido de acreditarem que certo avanço civilizacional no mundo estava acontecendo em razão do Império e da expansão da religião cristã.

• Pelos mesmos motivos, eles eram, ainda que em graus variados, fortemente contra a guerra. (A doutrina da “guerra justa”, como perceberá qualquer pessoa que tente aplicá-la, mais entrava as guerras do que as justifica, pois acaba colocando barreiras normalmente impraticáveis, particularmente no ius in bello.)

Rev. Gyordano M. Brasilino

O que é a Lei Natural?

O erro de quem considera a propriedade privada com parte da lei natural está em não entender o que lei natural é — ou seja, por que damos o nome de “lei natural” a certas obrigações, ou o que elas têm em comum. O que elas têm em comum é a natureza humana, razão por que o nome dessa lei também é lei da natureza. Falamos da lei natural porque observamos a natureza humana da perspectiva dos motivos fundamentais do seu agir.

A natureza humana não aparece sozinha, sem a cultura. Sem nossas vestes, nós nos animalizamos; a cultura é a elevação da humanidade, a sinalização do nosso potencial quase angélico. Por isso, nosso comportamento sempre é guiado por costumes e leis diversas, mas algumas dessas leis não são resultado do desenvolvimento histórico, não pertencem a nenhuma cultura em particular, e sim manifestam de necessidades inerentes à existência humana. Não são parte de uma sabedoria alcançada com o tempo; são injunções vitais, que precisam ser conhecidas, como inclinações naturais, desde o começo, ou a vida humana se torna praticamente impossível. Embora o coração não viva sem o restante do corpo, há um coração distinto.

(Aliás, é por isso que é absurdo pensar que a lei natural foi totalmente corrompida na natureza humana, como querem alguns reformados mais desconhecedores da tradição, inclusive da sua própria. Se assim fosse, a humanidade não sobreviveria e não preservaria essa constância fundamental. A corrupção que há não é nossa ignorância ou desprezo pela lei natural exatamente, mas nossa tentativa de realizá-la de um jeito danoso. Como escreveu São Paulo, os gentios cumprem a lei “por natureza”, Rm 2:15.)

Nós somos corpos, somos animais e somos racionais, e essa sobreposição de “naturezas” aponta para exigências distintas: como corpos, precisamos de integridade e continuidade física; como animais, precisamos de alimentação, de reprodução, de cuidar da prole; como racionais, precisamos de socialização e de sentido último. Esses são alguns exemplos. Nossa existência está orientada para essas coisas, e é nelas que está basicamente nossa obrigação. É lei natural tudo o que nos orienta, em termos de princípios, a cumprir essa natureza humana, a fazê-la florescer.

Diferentemente dos outros corpos e animais, nós somos racionais, significando que somos capazes de apreender intelectualmente a lei natural, enquanto eles se guiam de outras maneiras. Nós tomamos decisões. Mas os princípios da lei natural são gerais demais, não tratam detalhadamente de cada situação. Pela lei natural, podemos saber, por exemplo, que devemos reprimir a ação má de outras pessoas; mas como fazê-lo? Devemos castigar outras pessoas? De que maneiras? Sabemos que não podemos matar outras pessoas. Mas nem em legítima defesa? Nem em defesa das vítimas? A lei natural é suficiente para nos dar certeza sobre os princípios da ação, ela nos dá os ditames da razão prática, mas não especifica concretamente o que fazer em cada ação.

Por isso, os seres humanos experimentam, descobrem, refletem, ponderam. De várias maneiras, os conflitos sociais e pessoas resultantes da aplicação da lei natural nos leva a avançar na compreensão do que é melhor, chegando a conclusões que não estão na lei natural, mas dela decorrem a partir da comparação com a realidade social. Num primeiro momento, essas são as leis humanas, criadas por nós. A lei humana mais importante é certa cultura ético-jurídica compartilhada pela maior parte da humanidade, a que a tradição clássica chamou de ius gentium (direito das gentes, direito das nações).

Assim, pela natureza humana, somos todos irmãos e temos acesso ao mundo inteiro por igual. Mas o que fazer quando os recursos são escassos, e a sobrevivência de uma comunidade parece ser ameaçada pela ação de outra?

A lei natural nos diz que devemos ser bons para com toda a humanidade, querendo para os demais o mesmo bem que queremos para nós mesmos. O ius gentium especifica, por exemplo, como devemos lidar com os estrangeiros, que direitos de hospitalidade, comunicação e peregrinação eles têm. A lei natural nos diz que o mundo inteiro é de todos nós, porque as necessidades de todos nós precisam ser satisfeitas. O ius gentium nos fala de como a humanidade convencionou a propriedade privada, e de como ela deve ter limites. A lei natural nos mostra que somos irmãos por descendermos da mesma raiz, e por isso ligados uns aos outros. O ius gentium organiza e separa famílias. O ius gentium é, por isso, um híbrido entre natureza e cultura, entre a lei natural e a lei convencional, unindo processo histórico e (quase) universalidade. Como a natureza humana nunca está sozinha, o “ius gentium” media a lei natural. A lei natural nos diz que a comunidade precisa de unidade em meio à diversidade. Quando alguém acha que a propriedade privada é parte da lei natural, o que ocorre é uma confusão entre os princípios de primeira ordem e as conclusões posteriores e um pouco mais concretas, que admitem possibilidades e tentativas.

Em alguns momentos históricos, torna-se necessário para a comunidade decidir essas e outras coisas. Essa necessidade não é inerente à natureza humana, mas às condições históricas e sociais. Essas condições estão ligadas à natureza humana, mas não são idênticas a ela.

O ius gentium não é infalível. A escravidão foi parte dessa cultura quase universal, e aqui e ali algumas pessoas não deixaram de observar como a realidade da escravidão é degradante e “contra a natureza”, para dizer o mínimo — de como não podemos ser donos de outras pessoas. Um dos vários motivos por que esse costume perdurou tanto é o fato de que a propriedade privada não é parte da natureza humana e, por isso, não há um regramento natural dos limites da propriedade privada. Nada na natureza humana nos diz se podemos ser individualmente donos do solo e das águas, do espaço aéreo, da Lua, de outros planetas, do Sol, das árvores e dos animais, das ideias… e de outros seres humanos. Como a propriedade privada é uma convenção, os limites da convenção não são imediatamente óbvios à razão.

De todo modo, a lei natural não é suficiente para que uma sociedade se guie em todas as situações. Ela é suficiente para que tenhamos certeza dos princípios que devem guiar nossas ações em geral, mas nós temos necessidade de leis particulares (além do ius gentium), que digam quem será responsável por julgar e quem será responsável por punir, quem será responsável por defender e por caçar, que atribuam autoridades e liberdades, que mostrem como certa sociedade se guiará.

Rev. Gyordano M. Brasilino

DE STATU NATURAE: sobre a propriedade privada.

A discussão sobre a propriedade privada adquire uma perspectiva muito distinta quando a observamos com alguma consciência histórica. É fácil imaginar que a propriedade privada seja “natural” quando nós somos criados em sociedades nas quais ela existe e toda a nossa estrutura social depende dela. Mas não foi sempre assim.

Durante a maior parte da existência humana, na verdade durante mais de nove décimos dela, vivemos na terra sem a noção de propriedade privada, até por volta de 12 mil anos atrás, quando ocorreu a Revolução do Neolítico, uma transição ampla do modo de vida caçador-coletor nômade para a agricultura (sedentária). Embora seja opinião comum que essa revolução trouxe o surgimento da propriedade privada, certos autores defendem o contrário: foi o surgimento da propriedade privada que precipitou essa revolução[1].

Isso significa que, desde que surgiu, a espécie humana viveu por milênios em uma condição muito distinta, que de certo modo ainda existe em alguns lugares do mundo (como o povo Hadza da Tanzânia, ou pigmeus da bacia do Congo). De fato, um estudo recente sugere que toda a humanidade descende de três grupos africanos de caçadores-coletores que existiram há cerca de 50 mil anos[2].

Esses agrupamentos são marcados por alto grau de cooperação (diferente da violência típica de macacos), e um dos motivos apontados é o surgimento de famílias[3]. Por via da seleção natural, grupos com maior cooperação sobrevivem melhor e por mais tempo, enquanto grupos com menor cooperação se desfazem, então os genes que favorecem a cooperação são mais preservados. Ademais, assim como nos grupos de caçadores-coletores modernos, as pessoas migravam entre os grupos.

Como dito acima, essas comunidades não conheciam a noção de propriedade privada. A sobrevivência das comunidades num ambiente hostil, não “domesticado” pelo ser humano, exigia um alto grau de integração dos membros da comunidade, que existia como uma grande família ou clã. Quando os caçadores conseguiam um animal e o traziam para a comunidade, o animal não era “propriedade” desses caçadores; clamar para si o animal seria uma forma de trair a comunidade, na sua necessidade de sobrevivência. Aquilo que certas pessoas conseguiam pertencia à comunidade. Se algum caçador resolvesse pensar que tinha direito individual sobre a caça, porque a conseguiu, ele seria um “ladrão”, um traidor. Seria furto, em conformidade com a lei natural, mesmo não havendo propriedade privada.

É possível dizer que os membros da tribo tinham “posses” pessoais, como sua roupa e alguns instrumentos, que eram respeitados em razão das necessidades do grupo, mas sem qualquer título “jurídico”. Eram os objetos carregados com o corpo, que eram bem poucos; caso alguém deixasse para trás algum objeto, não seria mais seu. Não havia qualquer sentido em dizer que objetos maiores pertenciam a qualquer pessoa. A terra não pertencia diretamente a ninguém, nem ao indivíduo nem à comunidade.

A propriedade era comunal desde o princípio. Considerando a origem evolutiva da espécie humana, não houve um momento em que o ser humano individual e livre decidiu abrir mão dos seus direitos individuais para formar uma sociedade de propriedade comunal — ao contrário, ela sempre esteve lá, e o direito individual é que, com o tempo, se forma. Quando surge a propriedade privada, ela surge como uma concessão dentro de um espaço comunitário. Nesse sentido, não é possível pensar, como os liberais, que a propriedade privada é o fato e a função social é exceção; dá-se o contrário.

Quando observamos essas primeiras comunidades, podemos ter certeza de que, desde o princípio, elas conheciam a lei natural nos termos clássicos (pré-modernos): eles tinham, assim como todos os seres materiais e também como os animais, bem como enquanto seres racionais, inclinação à sua própria conservação, à conjunção entre macho e fêmea, à educação da prole, à vida em sociedade, por exemplo, e essas coisas se tornavam tão mais óbvias quanto o descuido de certos deveres poderia ser fatal para a sobrevivência e coesão da comunidade. A lei natural está diretamente ligada à sua inclinação natural.

Se dizemos, no entanto, que a propriedade privada é parte da lei natural, e não uma criação posterior (tutelada pelos princípios da lei natural), essa lei passa a ter um caráter distinto, não conectado às inclinações naturais, mas uma imposição, um regramento arbitrário lançado sobre o mundo. Nesse sentido, tratar a propriedade privada como lei natural acaba por destruir a noção de lei natural e a teleologia humana, lançada à arbitrariedade.

A pergunta que devemos fazer aqui é: como os Pais da Igreja e os estoicos, assim como São Tomás, sabiam que, na origem, não havia propriedade privada? Eles não tinham memória do paleolítico, e, embora houvesse ainda comunidades de caçadores-coletores, é improvável que a maioria deles tivesse tido contato com essas comunidades. (Alguns de fato o tiveram, mas a percepção “histórica” de que essas comunidades representam um modo de vida mais antigo vem de outro lugar.)

O que ocorre é que, vivendo numa época em que muitas ideias modernas ainda não haviam surgido (ex: a de que a propriedade privada é lei natural, o ser humano é um indivíduo isolado), eles estavam preparados para julgar, com bastante atenção e perspicácia ontológica, a estrutura da realidade social e política: não há nada essencial nos objetos ao nosso redor que os conecte radicalmente a nós, mas apenas uma convenção social, por mais respeitável (e divinamente autorizada) que seja. Eles tinham sensibilidade para distinguir entre o essencial e o arbitrário e, portanto, entre o natural e o convencional.

Há, ainda hoje, perguntas assim que devemos fazer: a que se refere a propriedade privada? Refere-se a qualquer coisa? Refere-se a pedras, à terra, ao ar, aos rios e mares, ao oxigênio? Refere-se a outras pessoas (escravos)? Refere-se a ideias e objetos intelectuais? Não há nada nesses objetos que diga que podemos ser proprietários de uns e não de outros; há apenas uma convenção humana autorizando a propriedade.

Quando lemos a narrativa final do Gênesis (a justaposição de Gn 1 e Gn 2-3), encontramos implícita essa mesma percepção. A humanidade é criada para dominar toda a criação em redor, e é criada como uma família. Toda “propriedade”, inicialmente, é propriedade familiar, não individual. Note-se detidamente: o primeiro homicídio, no Gênesis, ocorre numa competição entre um “agricultor” (Caim) e um “pecuarista” (Abel), ou seja, entre sedentários. O assassino edifica a primeira cidade. Há aqui, na Escritura, o registro de uma intuição espiritual sobre as origens da rivalidade humana, que depois é aproveitada pelos pais da Igreja (veja-se o livro V das Instituições Divinas de Lactâncio), muito antes de que uma figura cândida e banal como Rousseau pudesse fazê-lo.

Hugo Grócio, que não era nenhum conservador em termos em lei natural (e sim um inovador que deu passos na direção da compreensão moderna de lei natural), escreveu no De jure belli ac pacis:

Devemos ademais notar que o direito natural não se refere apenas àquelas coisas que existem independentemente da vontade humana, mas a muitas coisas que necessariamente seguem o exercício daquela vontade. Assim a propriedade, que agora existe, foi primeiramente uma criatura da vontade humana.” (I, 1, X)

Deus deu à humanidade em geral domínio sobre todas as criaturas da terra, desde que primeiro foi criado o mundo; concessão que foi renovada quando da restauração do mundo depois do dilúvio. Todas as coisas, diz Justino, formaram a provisão comum para toda a humanidade, como herdeiros de um patrimônio geral. Disso se seguiu que cada homem tomou para seu próprio uso ou consumo o que quer que tenha encontrado; exercício geral de um direito que supriu o lugar da propriedade privada… A propriedade portanto deve ter sido estabelecida ou por acordo expresso, como por divisão, ou por consentimento tácito, como por ocupação.” (II, 2, II)

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[1] https://www.journals.uchicago.edu/doi/10.1086/701789
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3670368/
[2] https://theconversation.com/ancient-dna-helps-reveal-social-changes-in-africa-50-000-years-ago-that-shaped-the-human-story-175436
[3] https://www.nytimes.com/2011/03/11/science/11kin.html

Por que a Regra de Ouro não é suficiente

As famosa palavras de Cristo, que se encontram presentes em diversas tradições religiosas e éticas, ensinam: “Tudo quanto, pois, quereis que os homens vos façam, assim fazei-o vós também a eles; porque esta é a Lei e os Profetas.” (Mt 7:12)

Em seu livro “Uma fé pública”, Volf reproduz um erro comum na maneira como esse texto é lido. Volf conclui que, na sociedade em que estamos, esse texto implica que devemos querer os mesmos direitos para todas as religiões — os mesmos que queremos para nós.

O erro se dá em dois movimentos, que eu chamarei de simplificação e individualização.

A simplificação é uma atitude comum para com religião em geral, na modernidade. Há certa aversão pelas milhares de complicações que a religião acarreta — que, no fundo, são as complicações da vida humana —, e, por isso, sempre que vemos palavras espirituais que tendem a resumir e facilitar a compreensão dessas exigências, nós tratamos o “resumo” como um substituto.

Assim, achamos que a Regra de Ouro de certa maneira dispensa tudo mais, dispensa “a Lei e os Profetas”, como se, num ato de dedução lógica, eu pudesse saber tudo o que preciso a partir dela. Se bastava isso, então toda a história da religião parecerá meio boba, realmente muito distinta de uma revelação.

O segundo erro, a individualização, tem mais a ver com a Regra em si. Quando pensamos no que ela exige, cada um de nós tenderá a interpretar o “tudo quanto quereis” como significando a vontade pessoal, a escolha ou preferência do indivíduo. O resultado é que, no fim das contas, o certo e errado acaba sendo uma questão de preferência pessoal, ainda que espelhada — depende da minha vontade, da minha escolha, do meu desejo.

Basta testar essa interpretação. O que acontece se a aplicarmos à condição de uma pessoa que tenha algum hábito autodestrutivo, como um adicto? Isso significa que essa pessoa deverá querer para os outros o mesmo hábito destrutivo que quer para si? Ou o que diremos de uma pessoa que não quer ser punido? Em certo sentido, nenhum ser humano quer ser punido (a melhor definição de punição está centrada na contrariedade da vontade), ainda que aceite a punição como meio. Um juiz ou policial que não quer ser punido está proibido de punir? Um pai de família que quer que o filho lhe obedeça, deve obedecer ao filho?

A leitura simplificada e individualizada da Regra de Ouro leva a esse tipo de conclusões bizarras.

O sentido correto da Regra de Ouro não é esse. O sentido correto diz respeito àquilo que nós, enquanto humanidade, queremos de bem para nós mesmos — bem a partir do padrão absoluto, e não segundo as preferências pessoais. O ser humano bem ordenado quer sua própria felicidade, bem-estar, alegria, quer ter acesso à verdade, quer ser ajudado a sair da condição de sofrimento — isso nós devemos querer para todas as pessoas, e devemos nos comprometer em realizá-lo.

Em outras palavras, o que a Regra diz, basicamente, é que devemos amar como amamos a nós mesmos, presumindo que amamos, como humanidade, e não como indivíduos.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Contra o Altruísmo

“Disse o Senhor a Caim: Onde está Abel, teu irmão? Ele respondeu: Não sei; acaso, sou eu tutor de meu irmão?” Gênesis 4:9

No uso corrente da palavra, “altruísmo” significa a atitude de bondade gratuita, de benevolência, de importar-se genuinamente com as outras pessoas, sem atrelar o resultado ao seu próprio ganho pessoal, coisas desse tipo. Isso significa, inclusive, fazer o bem a pessoas que não merecem ou que não nos recompensarão. Nesse sentido, quem discordaria do altruísmo, senão somente uma alma corrompida? E mesmo uma alma assim ainda faria uma homenagem implícita parasitária, quando o altruísmo alheio lhe beneficia.

No entanto, às vezes “altruísmo” significa algo mais: um ideal de que toda ação moral, para encontrar validade, deve estar totalmente desligada (ao menos na intenção) de qualquer benefício a quem a realiza. Nesse sentido, a ação mais virtuosa seria aquela que não procura nenhuma recompensa; a virtude seria sua própria recompensa. Essa perspectiva ética é associada à figura do pietista liberal Immanuel Kant. (Algumas pessoas associam algo nesse sentido ao confucionismo, mas eu suspeito que isso seja muito mais uma leitura moderna.)

Isso coloca diante de nós um problema imediato. Aquilo que os cristãos chamam de escatologia emerge, na história humana, precisamente como uma reparação final dos problemas do mundo e então uma premiação dos bons e castigo dos maus, uma recompensa dos méritos e deméritos, transposta para a eternidade. Quando lemos as Escrituras, não nos parece que Deus quer que desejemos recompensas? Do contrário, não no-las prometeria. Ele procura, de algum modo, atrair o nosso desejo através disso que ele coloca diante de nós. Isso vale tanto para ambos os testamentos. Cristo fala explicitamente sobre sermos “dignos de alcançar a era vindoura e a ressurreição dentre os mortos”.

Por outro lado, há muito, na Escritura, na direção de que devemos agir desinteressadamente: a caridade “não busca os seus interesses”. Paulo ensina, em lugares diferentes: “Não tenha cada um em vista o que é propriamente seu, senão também cada qual o que é dos outros.”; “Ninguém busque o seu próprio interesse, e sim o de outrem.”

Ainda assim, não é curioso que, no momento exato em que Cristo tem a melhor oportunidade de tratar da ação sem recompensa, no caso do socorro a pessoas em condições miseráveis, que não podem nos recompensar, fugindo das limitações da lógica do retorno pessoal e da gratificação social (“esse quam videri”), ele faça questão de reintroduzir a crença na Ressurreição? Ele diz: “serás bem-aventurado, pelo fato de não terem eles com que recompensar-te; a tua recompensa, porém, tu a receberás na ressurreição dos justos.”

Se, por um lado, Cristo manifestou uma atitude de desprendimento sacrificial em favor da humanidade, por outro lado, ele não o fez sem receber e sem olhar para recompensar (“…Jesus, o qual, em troca da alegria que lhe estava proposta, suportou a cruz…”). A questão é: que recompensa é essa? A quem ela beneficia de fato? A recompensa que Cristo recebe não é, muito mais, em favor de outras pessoas do que dele mesmo?

O que ocorre é que a separação entre altruísmo e egoísmo presume uma antropologia individualista e liberal, aquela do “cogito” cartesiano. Se eu vejo no ser humano uma identidade aberta e comunitária, que atravesse os indivíduos, a ideia de uma felicidade individual é ilusão, e pautar nisso a intenção das ações é correr de uma miragem. Como escreveu o poeta anglicano, “Nenhum homem é uma ilha”, e, cada vez que o sino toca, indicando que alguém se foi, eu sei que eu mesmo ali morri também. O que diz respeito aos outros diz respeito a mim. Quem fere à humanidade fere a mim. Quem pede perdão, pede perdão a mim; quem perdoa, perdoa a mim. Crime, vergonha, constrangimento e reconciliação nunca se dão entre mônada sociais, mas são sempre eventos políticos. Somos cúmplices das comunidades das quais participamos, na proporção dessa participação.

Por isso, quando, elaborando a raiz do que os cristãos chamaram de “Comunhão dos Santos”, São Paulo escreve que “se um membro sofre, todos sofrem com ele; e, se um deles é honrado, com ele todos se regozijam”, ele não descreve aí uma forma totalmente nova de existência humana, mas a restauração e elevação daquilo que é a vocação humana universal. A Igreja é a pólis restaurada. Não sabe disso toda família que, em meio às contradições e vicissitudes da nossa existência, cumpre o seu papel? Não sabe disso todo exército em batalha? A vitória de um é a vitória de todos, e, a cada um que perece, todos nós perecemos um pouco mais. Somos, em Cristo, membros uns dos outros porque fomos feitos para sermos membros uns dos outros. Nas palavras do rei Davi: “Vós sois meus irmãos, sois meu osso e minha carne”.

Por isso, quando um de nós não se preocupa com sua própria vida, quando age de maneira relaxada e irresponsável, pode tornar mais miserável a vida de outras pessoas que se importam, pois somos membros uns dos outros.

Nesse sentido, o que se quer evitar é que cada um procure o que é seu enquanto apenas seu, enquanto posse e domínio pessoal, e não enquanto serviço em favor do outro. A recompensa divina, nesse sentido, é algo que temos obrigação de buscar, e isso inclusive em favor de outras pessoas, pois nossa santificação e elevação afeta outras pessoas, que nós arrastamos conosco. Rejeitar a recompensa divina é rejeitar a amizade com Deus, pois toda amizade é reciprocidade ao longo do tempo, numa teia de obrigações que se fortalece a cada resposta que se dá, a cada gesto de gratidão. Quem recusa a reciprocidade manifesta independência, recusa a comunidade, recusa as obrigações decorrentes. Nesse sentido, somente uma vida de oração (que é em favor dos outros) pode justificar a reclusão do eremita cristão.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Por que as igrejas não podem apoiar candidatos

Nenhum soldado em serviço se envolve em negócios desta vida, porque o seu objetivo é satisfazer àquele que o arregimentou.” 2Timóteo 2:4

Quero deixar muito claro, antes de mais nada: não acredito na separação entre religião e política. Isso não é nem ideal, nem real. Não é real porque as religiões são parte da maneira como as pessoas tomam decisões, como elas constroem critérios e prioridades. Existe a possibilidade de uma ética com base na razão e em valores compartilhados, mas isso tem limites. As pessoas religiosas precisam saber que não vivem numa sociedade em que todo mundo compartilha dos seus valores, e devem saber lidar com isso. Mas as pessoas céticas, ateias ou contrárias aos valores religiosos também precisam saber que as religiões influenciarão o mundo. Enquanto estivermos numa democracia, será assim. A separação também não é ideal, de uma perspectiva cristã, porque cada um dos meus pensamentos deve obedecer a Cristo.

Nesta altura do campeonato, quando os partidários mais aguerridos e decididos de Bolsonaro e Lula já tomaram suas posições, eles partem agora em busca dos “do meio”, fazendo todo tipo de apelo passional, e o argumento dominante será o do mal menor, já que esses “indecisos” ou “isentos” obviamente não consideram os dois lados satisfatórios. De fato, isso já começou, e é irônico ver pessoas de ambos os lados usando exatamente o mesmo tipo de discurso para forçar apoio. (Enquanto isso, líderes políticos que há pouco tempo trataram Bolsonaro e Lula como corruptos passam a apoiá-los.)

Pois bem, o “mal menor” é o motivo pelo qual igrejas não podem apoiar candidatos. Falando em termos gerais, cada pessoa pode e deve tomar partido segundo os ditames de sua própria consciência, fazendo o cálculo difícil de qual seja o mal menor, e, estando nós numa democracia, cada um tem liberdade inclusive para defender (com honestidade) o político que considera melhor. Considerando que cada lado representa uma doutrina política diferente e diametralmente oposta — com seus próprios interesses, acordos e movimentos concretos —, o cálculo comparativo é complicado, as informações são enviesadas, e nós tomamos partido sempre antecipando a miséria que certo candidato pode acabar fazendo. Sendo honesto: a maioria de nós não tem condições de tomar decisões políticas bem-informadas. Quando você apoia um candidato irrestritamente, você escolhe ignorar algumas coisas e fingir que sabe outras.

Eu falava do “mal menor”. Diferentes do povo cristão como um todo, os ministros do evangelho não podem tomar partido e defender candidatos, justamente pelo motivo de que, enquanto representantes do Reino de Deus, não devem usar seu discurso e sua autoridade em favor de nenhum “mal menor”, mas apenas do bem maior, do ideal, sem negociá-lo em favor do pragmatismo político, sem ceder ao desespero mais próximo. Esse ideal inclui muitas coisas que não concordam com as propostas disponíveis. Mas, para que ele seja alcançado, é essencial que os cristãos estejam unidos e construam uma alternativa a Bolsonaro e a Lula, que nos represente melhor. Trocar o bem maior mandamental pelo mal menor pragmático, no discurso da igreja, é perder a voz profética, e dar carta branca eterna para todo tipo de pilantra que use um ou dois valores cristãos. Quando os ministros do evangelho tomam partido, eles escandalizam gregos e judeus, e não promovem a paz.

Por isso, é importante que, numa situação em que alguns cristãos votam pelo mal menor (de esquerda ou de direita), outros cristãos devem ter plena liberdade de criticá-lo, e nós, pastores, somos pastores de ambos. Você não evangeliza a pessoa com quem você está “em guerra”. Você renuncia à missão em nome da guerra. Isso é omissão, fugir da missão de um ministro da Palavra e dos Sacramentos e se tornar cabo eleitoral de um reino tão cheio de impiedades. É sempre uma narrativa ideológica que constrói os inimigos (os “fascistas”, “comunistas”…), mas nós representamos a perspectiva de Deus, que vê seres humanos caídos e necessitados de graça.

Na eleição presidencial em que nós nos encontramos, assim como na anterior, o papel dos evangélicos é determinante. Os católicos também têm um papel aqui, mas em geral são muito mais receptivos a ideias de esquerda, inclusive no clero, mesmo quando elas vão contra o ensino “oficial” da igreja. Não resta nenhuma dúvida de que, se o número de evangélicos fosse menor, a eleição teria sido decidida já no primeiro turno.

Um fator decisivo, para os evangélicos, é a questão do aborto, e continuará sendo. A esquerda precisa desistir da ideia insana de que aborto é uma questão de saúde pública. Isso será motivo de tensão permanente. Autorizar o extermínio de crianças, com dinheiro público, não é questão de saúde pública. É assassínio puro e simples, sob o pretexto liberal e individualista “meu corpo, minhas regras”. Como os evangélicos acreditarão na compaixão da esquerda pelas vítimas do coronavírus, se não se importam com crianças no ventre das mães? (O mesmo deve ser perguntado: como a esquerda acreditará na compaixão dos evangélicos quando apoiam um presidente com discurso insensível?) Cada vez que um político de esquerda repete aquele discurso “não quero o aborto, mas é uma questão de saúde pública”, o evangélico sabe que a primeira parte é uma mentira. Isso não convence a ninguém.

Por outro lado, o que significa o apoio a Bolsonaro de parcela tão grande dos evangélicos? Significa ignorar a apologia à tortura, filistinismo, insensibilidade para com as vítimas da pandemia? Aliás, quem pode acreditar na aproximação de Bolsonaro e Guedes com as questões de justiça social e igualdade econômica? É a mesma coisa. Não vejo, na maioria dos evangélicos, uma apologia a essas coisas, mas vejo, sim, como, eles se veem forçados a ignorar muito porque veem uma alternativa que é pior ainda, e que só lhes oferece críticas.

Diante disso, os adversários de Bolsonaro devem pensar o que fazer: cuspir ódio nos evangélicos e assim acirrar as divergências, confirmando que são realmente inimigos (cada um de sua própria perspectiva: a batalha espiritual, a luta de classes…); ou sentar à mesa tentar construir uma ponte para um futuro diferente, em que o bolsonarismo não precise sequer ser discutido. Se a esquerda não é capaz de oferecer uma alternativa melhor do que Bolsonaro, ela também é culpada pelos erros dele.

Rev. Gyordano M. Brasilino

O “Mistério” não salvará a Substituição Penal

Eu costumo argumentar que a ideia de Cristo ser punido no lugar da humanidade é injusta, segundo a lei divina revelada. É um defeito moral dessa teoria.

Alguém me trouxe uma resposta que eu considero a escapatória óbvia, mas que pouca gente tem coragem de apresentar, o “apelo ao mistério”, ou, mais propriamente, o “apelo à ignorância” (argumentum ad ignorantiam): não se pode dizer que punir um inocente (Cristo) seria injusto porque a justiça de Deus está além da nossa compreensão. Algo assim.

Pouca gente tem coragem porque instintivamente as pessoas sabem que é uma resposta falaciosa. Quem a apresenta comete contradição performática: diz que não entendemos a justiça de Deus, mas, ao usá-lo como argumento, age como se soubesse o que é e o que não é compatível com essa justiça, logo presumindo que entende a justiça divina.

A questão é: como podemos separar a justiça de Deus revelada daquela supostamente oculta? Como vou desprezar o revelado e fazer de conta que sei o segredo? O que está revelado é que Deus abomina mãos que derramam sangue inocente.

O “apelo ao mistério” não funciona. Uma situação pode ser incompreensível porque o número de fatores nos escapa, mas não é assim nesse assunto. A situação de Cristo tem um número muito pequeno de fatores, todos perfeitamente compreensíveis. Ninguém tem qualquer dificuldade de entender que Caifás e Pilatos cometeram uma injustiça ao punirem um inocente. Não há mistério. Não há fatores ocultos. Não há como dizer que Caifás e Pilatos, ao punirem um inocente, erravam, mas “Deus” acertaria em fazer exatamente o mesmo, como cúmplice deles.

Aliás, o próprio Cristo via que a justiça de Deus reverteria a injustiça sofrida:

“porque é coisa agradável que alguém, por causa da consciência para com Deus, sofra agravos, padecendo injustamente. Porque para isto sois chamados, pois também Cristo padeceu por nós… e, quando padecia, não ameaçava, mas entregava-se àquele que julga justamente,” (1Pedro 2:19,21,23)

Como vários outros, o defeito moral da Substituição Penal é invencível, não há resposta possível. Mas ele tem pouco poder de convencimento, porque os defensores da SP, por entenderem errado alguns textos da Bíblia, acham que a coisa realmente aconteceu (Deus puniu Cristo como substituto), então guardam uma esperança de que, de algum modo, não seja injustiça aquilo que eles sabem que é injustiça.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Jesus não estudou Hermenêutica

Jesus não era biblicista. Certamente ele reconhecia e afirmava a veracidade e a autoridade das Escrituras, referindo-se a eles em seus ensinos. Mas ele as usa com relativa liberdade, seguindo padrões conhecidos da halāḵâ judaica, encarando-as mais como janelas do que como destinos. Ele não esperava que os seus interlocutores usassem as Escrituras de modo restrita, antes traz mais cartas para a mesa.

No diálogo com o intérprete da lei em Lc 10:25ss, Cristo concorda em colocar dois mandamentos da lei acima de todos os demais, mas discorda de que o mandamento do amor ao próximo se limite aos compatriotas. O problema é: se lido de maneira puramente contextual, o mandamento se referia, sim, apenas ao amor entre os israelitas:

Não te vingarás, nem guardarás ira contra os filhos do teu povo; mas amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou o Senhor.” (Levítico 19:18)

Por implicação do paralelismo, o “próximo” corresponde aos “filhos do teu povo”. Essa é a leitura mais natural do texto. Por isso mesmo, o capítulo contém um segundo mandamento equiparando os estrangeiros que vivessem entre os israelitas (Lv 19:33-34); o primeiro mandamento não dava conta. Isso é uma importante expressão de humanidade e empatia, mas não é, ainda, em termos de contexto estrito, um mandamento de amor universal e irrestrito.

Então Cristo usa o mandamento para além dos seus limites contextuais e da intenção do autor. Ele não traz aí um mandamento novo — não é uma questão de “antiga aliança e nova aliança” —, mas observa como deve ser aplicado o mandamento antigo, como a lei deve ser usada. O texto não é a regra última, mas uma expressão dela.

Assim também, nas discussões sobre o sábado. No dia santo, seus interlocutores circuncidavam (Jo 7:21-24) e sacrificavam (Mt 12:5), e isso encontra amparo na lei, de modo que Cristo apela a uma hierarquização implícita nela, que deve ser válida também em situações não prescritas, como naquela de curar no sábado ou alimentar pessoas.

Mas a argumentação vai além: no sábado, eles levavam seus animais para beber água e socorriam seus filhos e animais caídos numa vala (Lc 13:15; 14:5), e isso é um apelo ao senso moral (expresso na lei oral), não à própria lei escrita. O fermento dos fariseus, a hipocrisia (Lc 12:1), consistia precisamente em ocultar o senso moral, e julgar as coisas apenas através de uma prescrição fria da lei, quando ela lhes convém.

Em outras palavras, Cristo exige dos seus interlocutores uma leitura não biblicista, na qual seja válido o princípio da analogia legal através do senso moral. Ele foi além da intentio auctoris e reclamou com quem não fez o mesmo. Se a hermenêutica é a ciência do contexto, Cristo nunca estudou hermenêutica.

Rev. Gyordano M. Brasilino