Nós fazemos duas importantes descobertas ao longo da vida. Embora cada uma dessas descobertas possa parecer muito radical e inovadora no seu próprio momento, na realidade provavelmente a maioria das pessoas passa por elas. A primeira descoberta é a de que não precisamos nos importar com o que outras pessoas pensam. A segunda descoberta é a de que precisamos, sim, nos importar com o que outras pessoas pensam.
A aparente contradição na realidade revela uma diferença importante. Cada uma dessas duas verdades têm seu próprio lugar. Quando somos crianças, nós somos dominados pelo que outras pessoas pensam, pelas pessoas que, ao nosso redor, nos influenciam e orientam a nossa vida. As palavras dessas pessoas têm um grande poder de nos afetar emocionalmente: provocam medo, alegria, ira, desespero, esperança, desejo e várias outras paixões com muita facilidade. Parte do amadurecimento é descobrir que nossa própria vida interior não depende dos juízos que essas pessoas fazem. A formação da nossa própria identidade pessoal envolve essa primeira descoberta.
Mas frequentemente essa primeira descoberta vem com o sentimento de que sabemos de tudo, de que guiamos a nós mesmos, de que somos imbatíveis. E então descobrimos que tudo isso é falso, de que na realidade, embora nossa vida emocional não precise ser controlada por outras pessoas, não somos tão espertos e sábios quanto pensávamos, e nossa vida continuará, até o fim, dependente de outras pessoas. Na realidade, ao mesmo tempo que nossa percepção para essas coisas crescerá, nosso próprio vigor físico diminuirá, nos dando maior consciência de nossa própria limitação e mortalidade. Naqueles que passarem por esse crescimento, o primeiro sentimento libertário adolescente será progressivamente moderado por um senso comunitário.
A verdade de que não dependemos de outras pessoas deve ocupar nossas paixões. A verdade de que dependemos de outras pessoas deve ocupar nossa inteligência. A “opinião” alheia é boa quando forma e eleva, e má quando nos domina e subjuga.
Há vários motivos importantes pelos quais devemos nos importar com o que outras pessoas pensam. O primeiro motivo óbvio é o de que, na realidade, o conhecimento que nós temos é construído socialmente; mesmo as descobertas individuais se dão num contexto de uma liberdade construída em sociedade, com instrumentos que recebemos de outras pessoas. Ou, nas palavras da Escritura, “na multidão de conselheiros há segurança“, “na multidão de conselheiros está a vitória“.
Existe um outro motivo, mais profundo. A Sagrada Escritura nos ensina que, por amor, devemos evitar escandalizar todas as pessoas. Escandalizar é colocar obstáculos desnecessários à fé, coisas que para nós podem parecer relativamente importantes e interessantes, mas que acabam impedindo outras pessoas de terem acesso a Cristo, ou acabam fazendo perecer aquelas pessoas por quem Cristo morreu. Paulo fala de como os primeiros cristãos, mesmo sabendo que os ídolos nada são, deveriam evitar comer a comida consagrada aos ídolos, para que outros cristãos, menos sábios, não se escandalizassem. “O saber ensoberbece, mas o amor edifica“.
Esse ensinamento de Paulo é fácil de entender à luz da virtude que Deus exige de nós: continuamente, a Escritura ensina que devemos ser pacificadores, nos esforçar pela paz, procurar ter paz com todas as pessoas tanto quanto pudermos. Há uma importante prioridade a ser colocada na paz. A paz não é só um efeito colateral de nossas ações, algo que acontece quando, por acaso, as pessoas resolvem concordar. Não, na verdade nós devemos promover a paz ativamente, procurando reconciliar o que estava dividido. Por isso também, aprendemos na Escritura a procurar ter o mesmo pensamento, o mesmo sentimento, a manter unidade em tudo o que pudermos. Existe, é verdade, um espaço de liberdade de pensamento e juízo pessoal — “Cada um tenha opinião bem-definida em sua própria mente.” (Rm 14:5) —, portanto não se trata de uma anulação da consciência pessoal. Mas há uma ênfase continuada, na Escritura, em torno da preservação da paz e da unidade entre as pessoas. Não devemos ser os divisores, e essa verdade vale tanto para a sociedade civil (na condenação do pecado da sedição) quanto para a sociedade eclesiástica (na condenação dos pecados do cisma e da heresia).
A aparente contradição entre as duas verdades ditas no começo do texto tem uma semelhança com algo que aparece na Escritura, também nas palavras de Paulo. Ele escreveu, em momentos diferentes:
“Porventura, procuro eu, agora, o favor dos homens ou o de Deus? Ou procuro agradar a homens? Se agradasse ainda a homens, não seria servo de Cristo.“ Gálatas 1:10
“Portai-vos de modo que não deis escândalo nem aos judeus, nem aos gregos, nem à igreja de Deus. Como também eu em tudo agrado a todos, não buscando o meu próprio proveito, mas o de muitos, para que assim se possam salvar.“ 1 Coríntios 10:32-33
O que devemos fazer? Procuramos agardar a homens ou não? No primeiro caso, há uma comparação: nossa prioridade está nos homens ou em Deus? Nesse caso, Paulo é transparente: somos servos de Cristo. Ele se utiliza da frequente antítese hiperbólica semítica (absoluteness) para expressar uma preferência, uma prioridade. Mas, quando ele se compara a outras pessoas, mostra logo que ele não busca seu próprio interesse, mas o de outras pessoas, procurando agradá-las. Ambos os textos partem de certas comparações, e o resultado disso é que, em muitas situações, devemo, sim, ter o interesse intencional e movido pela missão (e não passional e movido pelo medo e pela dependência afetiva) de agradar outras pessoas. Ao dizer essas coisas, São Paulo mostra como ele estava imitando ao próprio Cristo, que se desfez dos seus interesses pelos nossos.
Nesse sentido, o sentimento desagradável do tipo “não me importo com nada e ninguém” não tem aprovação na Escritura Sagrada. Devemos, sim, nos importar com o que outras pessoas pensam, ouvi-las, receber de sua sabedoria, devemos evitar escandalizá-las, devemos procurar agradá-las em justa medida, devemos nos esforçar para estar em paz com elas, não devemos interpor obstáculos desnecessários à comunhão. Isso, no fim das contas, é a virtude da amabilidade. Não devemos nos escravizar a outras pessoas, mas devemos, sim, servi-las por amor. Essas verdades valem para nosso relacionamento com todas as pessoas, e sobretudo na Igreja de Cristo, “para que não haja divisão no corpo” (1Co 12:25). Segundo as Escrituras, os passionais que provocam divisões “não têm o Espírito” (Jd 19). Deus ordena a sua bênção onde há união.
Por isso, deve ser evitado e rechaçado todo pensamento e desejo de “falar a verdade” que não seja com amor e em paz. Se falamos sem amor, é só barulho, “o bronze que soa ou como o címbalo que retine“. Toda comunicação eficaz se dá num ambiente de respeito mútuo. Quando tentamos “pregar a verdade” num ambiente em que essas ideias não são bem vindas, e sem o devido amor e atenção, tudo o que fazemos é lançar pérolas aos porcos que, depois de as terem pisado, se lançarão contra nós. Ao contrário do que dizem os que pensam que devem falar o que quiser, sem considerar as consequências — pecando contra a virtude da prudência —, em vários momentos a Escritura nos ensina a ponderar essas coisas, “para que o ministério não seja censurado” (2Co 6:3), “para que a palavra de Deus não seja difamada” (Tt 2:5), “não deem ao adversário ocasião favorável de maledicência” (1Tm 5:14), “para que o nome de Deus e a doutrina não sejam blasfemados” (1Tm 6:1). Os primeiros cristãos se importavam com o que as pessoas de fora pensavam deles, tanto que o ministro deveria ser alguém que tenha “bom testemunho dos de fora” (1Tm 3:7).
Em outras palavras: “Portai-vos com sabedoria para com os que são de fora; aproveitai as oportunidades. A vossa palavra seja sempre agradável, temperada com sal, para saberdes como deveis responder a cada um.” (Cl 4:5-6)
Algumas pessoas têm essa ideia de que quem serve a Deus precisa ser rejeitado pelas pessoas em redor. É um pensamento sectário, que só estimula o orgulho e o separatismo. Alguém vai nos rejeitar, é claro, e não devemos fazer o bem apenas para receber reconhecimento mundano, mas a virtude também será reconhecida por outras pessoas, especialmente pelos pequeninos. O testemunho dos de fora deve ser o das palavras de Tertuliano: “Vede como se amam!“. Cristo ensinou que as boas obras dos discípulos, resplandecendo como luz, deveriam ser reconhecidas pelas outras pessoas; Paulo ensinou que quem serve bem a Deus é “aprovado pelos homens” (Rm 14:18). Essa realidade se cumpriu na vida dos primeiros cristãos em Jerusalém, os quais, mesmo sendo perseguidos pelas autoridades, contavam “com a simpatia de todo o povo” (At 2:47).
Também há quem pense que temos a obrigação de desafiar tudo aquilo que vai contra a nossa fé, mas isso não é verdade, e, no fundo, a maioria das pessoas sabe disso. A maioria de nós convive com familiares, colegas de trabalho, vizinhos e amigos que não compartilham da mesma fé e doutrina, que professam outras religiões ou nenhuma religião, que seguem uma moralidade substancialmente distinta, e nós sabemos que a convivência pacífica com essas pessoas exige que nós não as corrijamos o tempo todo. Todos nós, em algum momento, passamos em frente a templos de religiões com as quais não concordamos. Seria nossa obrigação entrar nesses templos, sem convite e sem respeito, e tentar retirar daquela religião as pessoas? É claro que não. Tentar fazê-lo é ainda pior. Não é assim, por exemplo, que Paulo se comportou no Areópago (ele elogiou sua religiosidade). Em Éfeso, ele não criticou o culto de Diana. Aliás, segundo os Atos dos Apóstolos, a perseguição em Éfeso surgiu não porque os cristãos fossem inimigos de Diana, mas porque a conversão das pessoas à religião cristã os ameaçava. Os cristãos não foram em busca de briga. A briga veio até eles.
Existem momentos em que a verdade precisa ser dita, e, nessas situações, devemos dizê-la sem medo e com amor. Mas nem sempre a verdade precisa ser dita; na maior parte das situações, você simplesmente se cala. Todos nós convivemos com situações em que temos que fazer de conta que não vemos as coisas. Usando um exemplo que uma pessoa me trouxe: se um amigo seu colocou um nome feio no filho, você não tem obrigação nenhuma de dizê-lo. Se um pregador de alguma religião maluca estiver anunciando sua mensagem na rua, não se pode dizer que todo mundo tenha obrigação de corrigi-lo imediatamente. A maioria pode simplesmente seguir sua vida e ignorá-lo. Nós fazemos esse tipo de coisa o tempo todo. Se alguém está protegendo um judeu no sótão e mente para o agente da SS, dizendo que não há nenhum judeu, você, estando ali presente, não tem obrigação de dizer a verdade; sua obrigação é manter o silêncio, para não cooperar com o mal, que deseja se utilizar da verdade.
Existe um tipo de vício perigoso, que é o respeito humano, que consiste num cuidado exagerado com o que outras pessoas pensam ou permitem. Mas o perigo do respeito humano não deve servir de justificativa para que nos lancemos no perigo ainda maior da sedição, do ódio e do escândalo. O que caracteriza o respeito humano é uma prontidão para fingir, para mentir, por colocar as outras pessoas acima da verdade, efetivamente rejeitando a Cristo, se não por palavras explícitas, ao menos por atitudes. Não é isso o que eu defendo, nem o que todos esses exemplos bíblicos citados ensinam, mas sim o comportamento pacífico e capaz de silenciar quando falar for imprudente, e que se importa, sim, com a preservação da paz nas relações. O Evangelho verdadeiro e bíblico é o Evangelho da Paz.
Essa preocupação com a preservação da unidade e a evitação do escândalo é tão importante que São Tomás de Aquino, ao falar da punição da excomunhão, declara na Suma Teológica, repetindo a opinião de Santo Agostinho, que: “Mas se pela inflicção das penas é manifesto que mais e maiores pecados se seguem, então a inflicção das penas não será contida na justiça. E é deste caso que fala Agostinho, ou seja, quando há perigo de cisma na excomunhão de alguns, então realizar a excomunhão não pertenceria à verdade da justiça.” (II-II q43 a7 ad1) Note-se: aqui está em jogo a unidade da Igreja, e, para São Tomás, é melhor preservar a unidade da Igreja do que excomungar algumas pessoas. Quem lê a Suma sabe que São Tomás tinha muito apreço pela preservação da verdade, e não tinha a paciência moderna para os problemáticos dentro da Igreja. Mas ele preferia evitar o cisma, resultante do escândalo, tolerando essas pessoas.
Sobre isso, há duas situações necessárias a comentar: a de Cristo e a dos mártires. Esses casos frequentemente são colocados como exemplos de pessoas que disseram a verdade e foram punidas por isso. Quem coloca esses exemplos pensa: não devemos ser assim também, dizer a verdade mesmo que haja risco de punição? O argumento falha porque presume que Jesus e os mártires foram punidos por serem polêmicos, por saírem dizendo a verdade que queriam a quem queriam.
A “comunidade” para a qual Jesus pregava não era um corpo unido ao qual ele perturbou trazendo discórdia. Era um corpo desunido, “ovelhas sem pastor“, segundo o próprio Jesus, e ele procurou, antes, uni-los, como pintinhos debaixo das asas da galinha. Jesus procurou trazer unidade, e não divisão, a Israel. Mas é óbvio que quando você faz isso numa comunidade desunida, com várias forças em ação em busca do poder, suas palavras acabarão atingindo alguém, justamente às forças que ganham em cima da desunião. Si vis pacem, para bellum. É diferente o caso de um corpo coeso e unido que alguém procura perturbar.
Cristo disse, certa vez, que não veio “trazer paz, mas espada“, e que, como resultado de sua doutrina, famílias se dividiriam. Mas é importante notar que há certa ironia nas palavras de Cristo, certa linguagem figurada. O que acontece não é que Cristo dividiu essas famílias, mas sim que alguém, ao colocar obstáculos a essa doutrina, traria divisão. O divisor não é Cristo; seus inimigos é que o são. Frequentemente, no ministério de Cristo, são esses divisores, em busca de poder, que vem até ele com a polêmica. Ele não vai até eles. Às vezes as pessoas vão a Cristo com maus interesses, e ele lhes diz palavras duras (como no Discurso em Cafarnaum, João 6) que os faz ir embora. Mas note-se: Cristo não foi até essas pessoas, elas vieram até ele, sendo que elas mesmas rejeitaram o que ele disse.
De todo modo, em toda situação de unidade, há sempre um “princípio de unidade” que a promove — uma pessoa, um grupo de pessoas, um símbolo. Cristo era o princípio de unidade de Israel, e o provou com sabedoria irresistível e milagres numerosos. Esse princípio de unidade fala em nome da unidade do grupo, de modo que quem diverge dele diverge do grupo — então o grupo divergente, e não o princípio de unidade, é quem tem a culpa de promover a divisão. Onde quer que chegue, Cristo tem o direito de nos iluminar no que não sabemos. Onde quer que chegue, ele é a autoridade a quem todos devem ouvir, ele é a voz da unidade.
A maioria de nós não tem uma condição sequer análoga à Cristo, no entanto — a maioria não tem uma autoridade incontestável, ou sabedoria irresistível, ou milagres atestados. Por isso, quando falamos, nós o fazemos numa posição que não pode obrigar as outras pessoas com a mesma força, então não podemos exigir tanto das pessoas, mas devemos ser mais pacientes e mais tolerantes com elas, pois estamos, quanto à nossa humanidade e autoridade, mais perto delas do que de Jesus. Mesmo os ministros do evangelho, que poderiam falar com maior autoridade e obrigar à obediência, na realidade devem falar com ainda maior mansidão, como exemplos para todo o povo de Deus, quanto à paz civil; quanto à paz eclesiástica, devem zelar, sim, pela preservação da verdade, mas ainda com mansidão.
Assim como Jesus, embora deteste a polêmica, eu falo de temas que são polêmicos, mas a divisão que há nesses temas não é uma divisão trazida por mim, e sim uma divisão que já está aí, entre os cristãos. Nesses casos, a minha posição é, tanto quanto eu consigo enxergar, uma posição de “via média”, com a qual a maioria das pessoas pode se identificar em parte. Eu evito o radicalismo justamente porque ele é inerentemente divisivo.
Há uma profunda ilusão em pensar que simplesmente jogando verdades na cara das pessoas nós nos tornamos mais semelhantes aos mártires de Cristo; é achar que, porque somos maltratados pelas pessoas, somos iguais aos mártires. Não é essa a ousadia dos mártires. Mas eu direi que acredito nos argumentos dessas pessoas, que acham que fazem o mesmo que fazem os mártires, quando elas começarem a operar os mesmos milagres que os mártires fizeram.
A verdade está na paz, e a paz está na verdade. Devemos resistir aos pensamentos de quem quer separá-las. Abraçar o evangelho é abraçar o escândalo do Crucificado. Não precisamos inventar nenhum outro escândalo.
Rev. Gyordano M. Brasilino