Sobre o Nacionalismo, um comentário

“Nascido também na cidade de Belém, tão pequena entre todas as cidades da Judeia, que ainda hoje é chamada de vila, (Cristo) não quis que ninguém se orgulhasse da nobreza de qualquer cidade terrena.” — Santo Agostinho, Primeira Catequese aos Não Cristãos XXII

Quando cada um de nós olha para sua cidade e sua nação, encontrará motivos para agradecer, traços de uma história que nos fizeram ser quem somos e que são responsáveis por construir a liberdade de que desfrutamos. Há um nacionalismo ou patriotismo são, que consiste em olhar para tudo o que há de verdadeiro, bom e belo em nossa própria história, identidade e cultura, e se ver como também responsável por preservá-lo, algo que nos liga a pessoas distantes e nos ajuda a amá-las, por vermos aí o reflexo da humanidade comum.

Em grande medida, temos um destino comum, e enfrentaremos juntos as mesmas mazelas nacionais, queiramos ou não. Tal sentimento é bom quando serve para minar o espírito de seita e de individualismo, ambos alheios ao bem comum, assim como fator de unidade que sirva para minar hegemonias internacionais.

Esse sentimento agradecido de pertencimento e responsabilidade deve ser temperado com realismo histórico. Nem todas as pessoas, quando olham para a história da nação, veem tantos motivos de alegria, porque essa história se verá manchada por injustiças e crueldades, e ambiguidades e contradições por toda parte. O passado não foi igualmente generoso com todos, e cabe ao presente fazer a reparação.

Quando olhamos para trás em busca de nossas próprias raízes, devemos tomar o cuidado para não imitar os pecados de ontem, como se fossem virtudes esquecidas, que no fundo apelam mais à parte mais baixa e instintiva de nossa humanidade, e não às suas aspirações mais elevadas e universais (católicas). Se a água é mais espessa que o sangue, a fé cristã terá sempre um elemento internacionalista de cooperação, reconciliação e hospitalidade.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Caridade e Coerção

Reflexão sobre caridade, coerção e modernidade, a propósito de Tolstói.

Em sua famosa “Carta a um Hindu” (1908), Tolstói apresenta os termos gerais de uma narrativa interessante, ainda que não muito inovadora: ele trata parte da história política humana como um conflito entre a “lei do amor” (lei espiritual inerente à natureza humana e conhecida de todas as grandes religiões) e instituições políticas de coerção e violência (punições, prisões, execuções, torturas, guerras), marcada pela tirania de uma minoria sobre a maioria.

Nisso ele está em continuidade como que já havia escrito em “O Reino de Deus está dentro de vós” (1894), agora incluindo outras tradições religiosas (particularmente o hinduísmo). Por que a humanidade não percebeu a contradição entre a lei do amor e a coerção política? Segundo Tolstói, porque as superstições religiosas e depois as superstições científicas justificaram o recurso à violência. O que há de interessante na carta é que nela o romântico Tolstói se coloca também contra parte da modernidade (até mesmo contra a teoria atômica) e contra a ilusão de que a ciência traria ordem ao mundo.

A resposta, para Tolstói, estaria na lei inerente à natureza humana. Por isso, há na carta elementos que prenunciam a pós-modernidade, mas também há um essencialismo de fundo, o Rousseau em Tolstói. De todo modo, se Tolstói via contradição entre a lei do amor e a violência, a saída não seria a violência libertária, mas simplesmente o recurso à lei do amor, com o abandono das superstições. Simples, não? Imagine all the people living for today.

Essa tensão entre amor e opressão na política não é criação de Tolstói, mas tem longa história, e pode mesmo ser vista em Santo Agostinho, o qual, contudo, soube distinguir a Cidade de Deus e a cidade dos homens, em suas aproximações e afastamentos. (Por isso, há um considerável elemento “anárquico” em Agostinho, também.)

Isso mostra aquilo que eu considero como a heresia fundamental do tolstoísmo: a sua incapacidade de perceber o elemento caritativo na política. Ou, dito de outro modo, e em termos muito claros: a necessidade de defender a lei da caridade através de alguma forma coerção. Não a tortura (que corrompe o torturador e o torturado), nem a invasão a outras nações, mas realismo. Tolstói foi traído pelo individualismo romântico.

Ou talvez o melhor seria dizer que essa é a hipocrisia fundamental, ou a ingenuidade cordial, ou mesmo a desatenção essencial. Pois, se é verdade que a política moderna procurou expulsar a influência religiosa explícita, e gradativamente trocou a ética transcendente pelo positivismo e pelo constitucionalismo (que nunca se divorcia totalmente da ética), não conseguiu desfazer a conexão com o princípio do amor: quando proibimos que se mate, quando punimos a incitação a delito, quando limitamos os danos causados sob o primado da liberdade de expressão, nós agimos por uma preocupação caritativa (mesmo que oblíqua) para com o ser humano igual a nós. De fato, quando punimos torturadores, é à lei da caridade que prestamos homenagem.

Digo que há ingenuidade no tolstoísmo, e mesmo conivência com o mal, porque, na verdade, o motivo fundamental pelo qual não há ordem política sem violência, é este: há pessoas que, mesmo que não sejam espiritualmente irredimíveis, são politicamente irreformáveis, são inobjetificáveis, estão além de toda psiquiatria repressiva, de toda pedagogia libertadora, de toda negociação ao nosso alcance. Nunca devemos presumir que estamos diante dessas pessoas, a caridade nos obriga a dar a todos a chance de mudança, e isso certamente nos inspirará a condições distintas e humanas no tratamento dos condenados criminalmente. Num mundo em que pessoas assim existem, a caridade exige que protejamos aqueles que podem estar sob sua mira.

Contra o Altruísmo

“Disse o Senhor a Caim: Onde está Abel, teu irmão? Ele respondeu: Não sei; acaso, sou eu tutor de meu irmão?” Gênesis 4:9

No uso corrente da palavra, “altruísmo” significa a atitude de bondade gratuita, de benevolência, de importar-se genuinamente com as outras pessoas, sem atrelar o resultado ao seu próprio ganho pessoal, coisas desse tipo. Isso significa, inclusive, fazer o bem a pessoas que não merecem ou que não nos recompensarão. Nesse sentido, quem discordaria do altruísmo, senão somente uma alma corrompida? E mesmo uma alma assim ainda faria uma homenagem implícita parasitária, quando o altruísmo alheio lhe beneficia.

No entanto, às vezes “altruísmo” significa algo mais: um ideal de que toda ação moral, para encontrar validade, deve estar totalmente desligada (ao menos na intenção) de qualquer benefício a quem a realiza. Nesse sentido, a ação mais virtuosa seria aquela que não procura nenhuma recompensa; a virtude seria sua própria recompensa. Essa perspectiva ética é associada à figura do pietista liberal Immanuel Kant. (Algumas pessoas associam algo nesse sentido ao confucionismo, mas eu suspeito que isso seja muito mais uma leitura moderna.)

Isso coloca diante de nós um problema imediato. Aquilo que os cristãos chamam de escatologia emerge, na história humana, precisamente como uma reparação final dos problemas do mundo e então uma premiação dos bons e castigo dos maus, uma recompensa dos méritos e deméritos, transposta para a eternidade. Quando lemos as Escrituras, não nos parece que Deus quer que desejemos recompensas? Do contrário, não no-las prometeria. Ele procura, de algum modo, atrair o nosso desejo através disso que ele coloca diante de nós. Isso vale tanto para ambos os testamentos. Cristo fala explicitamente sobre sermos “dignos de alcançar a era vindoura e a ressurreição dentre os mortos”.

Por outro lado, há muito, na Escritura, na direção de que devemos agir desinteressadamente: a caridade “não busca os seus interesses”. Paulo ensina, em lugares diferentes: “Não tenha cada um em vista o que é propriamente seu, senão também cada qual o que é dos outros.”; “Ninguém busque o seu próprio interesse, e sim o de outrem.”

Ainda assim, não é curioso que, no momento exato em que Cristo tem a melhor oportunidade de tratar da ação sem recompensa, no caso do socorro a pessoas em condições miseráveis, que não podem nos recompensar, fugindo das limitações da lógica do retorno pessoal e da gratificação social (“esse quam videri”), ele faça questão de reintroduzir a crença na Ressurreição? Ele diz: “serás bem-aventurado, pelo fato de não terem eles com que recompensar-te; a tua recompensa, porém, tu a receberás na ressurreição dos justos.”

Se, por um lado, Cristo manifestou uma atitude de desprendimento sacrificial em favor da humanidade, por outro lado, ele não o fez sem receber e sem olhar para recompensar (“…Jesus, o qual, em troca da alegria que lhe estava proposta, suportou a cruz…”). A questão é: que recompensa é essa? A quem ela beneficia de fato? A recompensa que Cristo recebe não é, muito mais, em favor de outras pessoas do que dele mesmo?

O que ocorre é que a separação entre altruísmo e egoísmo presume uma antropologia individualista e liberal, aquela do “cogito” cartesiano. Se eu vejo no ser humano uma identidade aberta e comunitária, que atravesse os indivíduos, a ideia de uma felicidade individual é ilusão, e pautar nisso a intenção das ações é correr de uma miragem. Como escreveu o poeta anglicano, “Nenhum homem é uma ilha”, e, cada vez que o sino toca, indicando que alguém se foi, eu sei que eu mesmo ali morri também. O que diz respeito aos outros diz respeito a mim. Quem fere à humanidade fere a mim. Quem pede perdão, pede perdão a mim; quem perdoa, perdoa a mim. Crime, vergonha, constrangimento e reconciliação nunca se dão entre mônada sociais, mas são sempre eventos políticos. Somos cúmplices das comunidades das quais participamos, na proporção dessa participação.

Por isso, quando, elaborando a raiz do que os cristãos chamaram de “Comunhão dos Santos”, São Paulo escreve que “se um membro sofre, todos sofrem com ele; e, se um deles é honrado, com ele todos se regozijam”, ele não descreve aí uma forma totalmente nova de existência humana, mas a restauração e elevação daquilo que é a vocação humana universal. A Igreja é a pólis restaurada. Não sabe disso toda família que, em meio às contradições e vicissitudes da nossa existência, cumpre o seu papel? Não sabe disso todo exército em batalha? A vitória de um é a vitória de todos, e, a cada um que perece, todos nós perecemos um pouco mais. Somos, em Cristo, membros uns dos outros porque fomos feitos para sermos membros uns dos outros. Nas palavras do rei Davi: “Vós sois meus irmãos, sois meu osso e minha carne”.

Por isso, quando um de nós não se preocupa com sua própria vida, quando age de maneira relaxada e irresponsável, pode tornar mais miserável a vida de outras pessoas que se importam, pois somos membros uns dos outros.

Nesse sentido, o que se quer evitar é que cada um procure o que é seu enquanto apenas seu, enquanto posse e domínio pessoal, e não enquanto serviço em favor do outro. A recompensa divina, nesse sentido, é algo que temos obrigação de buscar, e isso inclusive em favor de outras pessoas, pois nossa santificação e elevação afeta outras pessoas, que nós arrastamos conosco. Rejeitar a recompensa divina é rejeitar a amizade com Deus, pois toda amizade é reciprocidade ao longo do tempo, numa teia de obrigações que se fortalece a cada resposta que se dá, a cada gesto de gratidão. Quem recusa a reciprocidade manifesta independência, recusa a comunidade, recusa as obrigações decorrentes. Nesse sentido, somente uma vida de oração (que é em favor dos outros) pode justificar a reclusão do eremita cristão.

Rev. Gyordano M. Brasilino