Negociando a Salvação

A salvação e a comunhão com Deus são tratadas, na Bíblia, a partir da perspectiva da dádiva: um presente de Deus que convida à reciprocidade por parte da pessoa humana, numa troca livre, diferente de uma compra.

No entanto, numa medida muito menor, a imagem da compra também é usada, e prepara o caminho para ela de várias maneiras. O Antigo Testamento já conhece a responsabilidade que Deus assume pelos pobres (Pv 19:17), raiz da noção judaica antiga de “tesouro no céu”. Nesse caso, ao assumir a dívida (de gratidão) dos pobres, a reciprocidade ganha um tom próximo ao da compra, porque Deus não falha na retribuição.

A imagem plena da compra aparece particularmente em dois lugares do Novo Testamento:

☩ Mateus 13:45–46 – “O reino dos céus é também semelhante a um que negocia e procura boas pérolas; e, tendo achado uma pérola de grande valor, vende tudo o que possui e a compra.”

☩ Apocalipse 3:18 – “Aconselho-te que de mim compres ouro refinado pelo fogo para te enriqueceres, vestiduras brancas para te vestires, a fim de que não seja manifesta a vergonha da tua nudez, e colírio para ungires os olhos, a fim de que vejas.”

No primeiro caso, o próprio “reino dos céus” é comprado pelo negociante. No segundo, compra-se de Cristo “ouro refinado” (riqueza espiritual), “vestiduras brancas” (identidade espiritual) e “colírio” (visão espiritual). Essas coisas são negociadas ou compradas de Deus ou de Cristo, não simplesmente recebidas como presentes.

Tudo isso se insere muito bem na imagem do “tesouro celestial”, que é adquirido (por exemplo) através das obras de misericórdia. Há um tesouro a ser alcançado pelos cristãos renunciando a coisas desta vida, e esse tesouro é distinto do tesouro terreno. Os pobres do mundo são ricos a fé (Tg 2:5). Os que parecem ser ricos são pobres e os que parecem ser pobre são ricos (Ap 2:9; 3:17; cf. 2Co 8:2). Há uma inversão entre riqueza e pobreza, e portanto uma possibilidade de conversão de uma riqueza na outra.

É importante que essa não se torne a maneira dominante pela qual nossa santificação e progresso na fé sejam tratadas, para que não se perca de vista a gratuidade e generosidade divinas, mas também é necessário que ela tenha um lugar, que nos relembre da necessidade de nosso próprio empenho.

Rev. Gyordano M. Brasilino

A Mediação Angélica da Lei

Alguém perguntou sobre os textos bíblicos que falam da lei de Moisés como sendo entregue “através de anjos”. O Pentateuco não nos diz ensina que anjos entregaram a Lei, então de onde vem essa ideia? Os textos do NT são estes:

☩ Atos 7:38,53 “É este Moisés quem esteve na congregação no deserto, com o anjo que lhe falava no monte Sinai e com os nossos pais; o qual recebeu palavras vivas para no-las transmitir… vós que recebestes a lei por ministério de anjos e não a guardastes.”

☩ Gálatas 3:19 “Qual, pois, a razão de ser da lei? Foi adicionada por causa das transgressões, até que viesse o descendente a quem se fez a promessa, e foi promulgada por meio de anjos [δι’ἀγγέλων], pela mão de um mediador.”

☩ Hebreus 2:2 “Se, pois, se tornou firme a palavra falada por meio de anjos [δι’ἀγγέλων], e toda transgressão ou desobediência recebeu justo castigo,”

Esse é um dentre tantos exemplos de conceitos e ideias presentes no Novo Testamento para os quais não se pode mostrar uma origem clara no Antigo Testamento, mas sim no judaísmo do Segundo Templo e, em particular, na sua vertente apocalíptica, assim como, de modo mais amplo, no simbolismo religioso do Antigo Oriente Médio.

A imaginação apocalíptica estava impregnada de uma cosmologia hierárquica na qual as realidades inferiores recebem das superiores sem saltos, de modo que tudo transcorra por mediação. Por isso, o que Deus quer revelar ao povo, ele o faz através de um anjo, que comunica a um vidente, o qual registra o que é dito. Essa mentalidade foi compartilhada (e adaptada de maneiras diferentes) por judeus, cristãos e gnósticos. O comentário judaico do Cântico dos Cânticos (Shir haShirim Rabbah) menciona a mediação angélica da lei quando comenta Ct 1:2.

Os gnósticos, por exemplo, usaram a ideia justamente para rechaçar o Antigo Testamento. Os cristãos seguiram uma rota mais sutil, não desprezando o Antigo Testamento mas exaltando o que veio depois (a palavra de Cristo). Os trechos do NT parecem presumir uma polêmica com judeus ou cristãos judaicos. No caso de Gl 3, em particular, o papel da lei é o de um “guardião” (paidagōgos) temporário que reduz os filhos à condição de escravos. Por isso era importante, para Hebreus, assinalar a superioridade de Cristo em relação aos anjos e, portanto, a superioridade da sua palavra dentro de um esquema cosmológico ordenado. Então essa imagem da outorga da lei, embora sinalize dentro da narrativa cristã uma origem positiva (distinta do que ocorre na gnose), também mostra uma tensão com a lei. Isso pode estar por trás de polêmicas como Gl 1:8 e Cl 2:18-19, nas quais as figuras angélicas putativas aparecem em favor .

Ademais, a mediação angélica é uma forma de conciliar narrativas díspares do Pentateuco: em alguns textos, parece que Deus falava diretamente a face a face com Moisés (cf. Nm 12:8); em outros, parece que Deus só lhe revelava obliquamente a sua glória, e o Nome Divino era portado pelo “anjo da presença” (Êx 23:20-22).

Em razão das complicações da interpretação de Dt 33:2 (tanto em hebraico como em grego), a referência israelita mais antiga à mediação angélica da lei está no Livro dos Jubileus, apócrifo por volta do século II a.C. que reconta o livro do Gênesis. Esse livro foi bastante influente entre judeus (e cristãos), sendo usado na comunidade de Qumran (como base para o Rolo do Templo). A mentalidade da mediação angélica da lei era plenamente coerente com as doutrinas de Qumran; nos seus cânticos, os anjos eram chamados de “deuses do conhecimento”.

Há várias referências explícitas à mediação angélica da Lei no Livro dos Jubileus. Por exemplo:

“E o anjo da presença falou a Moisés de acordo com a palavra do Senhor, dizendo: Escreve uma história completa da criação, como em seis dias o Senhor Deus acamou todas as suas obras e tudo o que ele criou, e guardou o Sábado no sétimo dia e o santificou para todas as eras, e o indicou como sinal de todas as suas obras.” (Jb 2:1)

Num trecho ambíguo, Josefo (contemporâneo do NT) registra palavras de Herodes:

“E nós a prendemos as melhores das nossas doutrinas e as partes mais santas das nossas leis através de anjos [δι’ἀγγέλων] enviados por Deus.” (Antiguidades Judaicas XV, 156). Essa expressão pode indicar os profetas e figuras semelhantes, então não é segura, mas é relevante que seja a mesma expressão grega de Gl 3:19 e Hb 2:2.

Um trecho de Fílon, que certamente fala de anjos, pode se referir também a essa noção:

“Ora, os filósofos em geral tendem a chamá-los de demônios, mas a Sagrada Escritura os chama de anjos, usando um nome mais concorde com a natureza. Pois de fato eles são mensageiros das injunções do pai para os seus filhos, e das necessidades dos filhos para o pai. E é em referência a esse seu emprego que a Santa Escritura os representou subindo e descendo, não porque Deus, que sabe de tudo antes de qualquer um, tenha necessidade de intérpretes; mas porque é a nossa sorte, como miseráveis mortais, a de usar a fala como mediadora e intercessora, por estarmos em tremor e temor do Governante do universo, e do poder onipotente da sua autoridade;” (De somnis I, 141-142)

Rev. Gyordano M. Brasilino

O Perdão segundo Jesus

As parábolas de Jesus nos dão uma imagem magnífica do perdão divino.

Na mais famosa, a do Filho Pródigo, o perdão escandaloso do pai vence toda a vergonha pública e se lança sobre filho, mesmo antes que ele confesse o seu pecado, e o chama à alegria do banquete escatológico. Bastou o retorno do filho. É o perdão doado sem reservas, sobre um filho que havia desonrado o pai, pela felicidade do retorno. O perdão é a reconciliação, é reviver, é ser encontrado.

Na parábola do Credor Incompassivo, o perdão é exigente quanto ao nosso comportamento futuro, mas sua compaixão diante da humilhação penitente é tamanha que toda a dívida é perdoada — nenhum centavo resta a pagar.

Repetindo o tema, a Parábola dos Dois Devedores fala da motivação do perdão: os dois devedores não têm com o que pagar, e o resultado é que aquele que foi mais perdoado amou mais.

Na parábola mais próxima da realidade humana (parábola exemplar), a do Fariseu e do Publicano, novamente bastou confissão penitente e contrita do publicano diante do altar divino, sem o desejo de parecer melhor do que ninguém, e ele retornou para casa justificado.

Essas lindas parábolas estão em continuidade com as narrativas patriarcais de perdão gratuito — de como Esaú e Jacó se reconciliam, ou de como José perdoa os seus irmãos —, e se inserem no Pai Nosso, no qual o perdão divino sobre nós e o perdão humano sobre os nossos devedores se vinculam tanto em natureza (perdoamos do medo modo) como em dependência (somos perdoados porque perdoamos).

A imagem que essas parábolas transmitem não é a de um Pai exigente que só perdoa quando é satisfeito, quando tem sua honra reparada (Sto Anselmo) ou quando tem sua ira satisfeita com violência (Calvino). Deus é maior que a mesquinharia humana.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Um Credo Contra Mamom

O Novo Testamento ensina que os pobres são bem-aventurados, mas ai dos ricos.

O Novo Testamento condena a ganância.

O Novo Testamento nos ensina a não desejar ser ricos, pois quem o deseja cai em tentação e laço.

O Novo Testamento nos ensina a não ter ansiedade com o que comeremos ou vestiremos, mas a estarmos satisfeitos com o que temos e em acreditar que Deus nos proverá para todas as necessidades.

O Novo Testamento retrata Cristo como alguém que se fez pobre por nós. Inclusive literalmente pobre, “escravo”, pedreiro, estrangeiro, sem cidadania, preso.

O Novo Testamento ensina que é difícil um rico entrar no reino dos céus.

O Novo Testamento ensina que é impossível um acordo entre Deus e ”mamom” — não e possível servir a Deus e ao dinheiro.

O Novo Testamento louva os primeiros cristãos por doarem tudo o que tinham e colocarem aos pés dos apóstolos, de modo que cada um recebesse conforme as suas necessidades.

O Novo Testamento nos encoraja a abrir mão do que temos em favor de outras pessoas.

O Novo Teamento conta que a pessoa mais próxima a Jesus, sua Mãe, celebrou o seu advento com estas palavras:

Derribou do seu trono os poderosos
e exaltou os humildes.
Encheu de bens os famintos
e despediu vazios os ricos.”

Senhor, dá-nos a graça de acreditar no Novo Testemento. Dá-nos a graça de crer no Evangelho do Reino. Amém.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Oração é Coração

Oração não é falatório, mas alinhamento entre o coração e Deus.

Isso revela um dos perigos de achar que o mais importante na oração é usar palavras espontâneas, falar do seu jeito, pois você acaba tratando a oração como um falar com Deus, conversar com ele, dizer coisas a ele. Isso é parte da oração, mas há algo mais fundamental.

Quando dizemos “Santificado seja o teu nome”, como Cristo ensinou, o que estamos fazendo?

O nome de Deus já é santo, e não estamos simplesmente pedindo a Deus para que continue sendo assim ou que isso seja reconhecido por outras pessoas. O que fazemos, ao pronunciar essas palavras, é posicionar nosso coração do melhor jeito. Cristo nos dá as palavras certas, nas quais podemos meditar, para que possamos estar com Deus. São palavras que nos ajudam a preparar o coração para a graça.

Sem proibir outras formas, Cristo nos ensinou a invocar a Deus dizendo “Pai” ou “Abá”. Essas palavras não têm efeito sobre Deus (ele já sabe que é Pai e não esquece disso), mas sobre nós mesmos, quando as pronunciamos de maneira significativa. Nossa fragilidade se esquece ou desacredita da filiação. As palavras certas, na oração, ativam na nossa fé certa dimensão de honra, proximidade e (lateralmente) fraternidade.

Não sentimos a mesma coisa quando dizemos “O Senhor é meu pastor, e nada me faltará”? Não nos recordamos do seu cuidado? Não reafirmamos nossa fé em sua bondade? As palavras da oração reposicionam o coração.

Tudo isso se perde ou se enfraquece quando eu trato a oração como se fosse apenas dizer coisas a Deus.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Imortalidade da Alma

Existem vários lugares na Bíblia em que se pode falar de uma continuidade da consciência após a morte, que tratem da morte como uma partida (peregrinação), mas creio que o melhor texto para apresentar uma noção de imortalidade da alma seja II Coríntios 4:16–5:8. É uma tragédia que tenham colocado a divisão de capítulos bem aí, no meio do assunto.

Esse trecho nos apresenta:
• A distinção entre o exterior corruptível e o interior incorruptível (4:16).
• A distinção entre o passageiro e o eterno (4:17).
• A distinção entre o visível temporal e o invisível eterno (4:18).
• Habitação celestial após a morte (5:1-2).
• “enquanto no corpo, estamos ausentes do Senhor” (5:6)
• “deixar o corpo e habitar com o Senhor” (5:8).

A correspondência leva à conclusão: o homem interior é incorruptível, invisível e eterno. Esse texto transmite a mesma noção de Fp 1:20–24, mas aponta mais claramente para o interior eterno.

Sim, o texto toca na ressurreição corporal, mas não fala só disso. Se lemos essas coisas levando em conta o ambiente cultural grego (dos leitores originais) e as várias concepções de vida após a morte no judaísmo na Antiguidade, não tem outra possibilidade.

Rev. Gyordano M. Brasilino

A Casa do Morto (Dt 26:14)

Eu gosto bastante das Bíblias Almeida Revista e Atualizada (ARA) e Nova Almeida Atualizada (NAA). São as que eu mais uso no dia a dia. Mas, sempre que alguém me pergunta sobre elas, eu aponto um defeito: elas são as únicas traduções obcecadas em deixar claro que são evangélicas. (A NVT faz isso com os sacramentos, mas no geral é bem menos.)

Eu já mencionei aqui o caso de Gl 3 e 1Pe 2, em que uma delas ou ambas mudam “por nós” para “em nosso lugar”. Outro caso engraçado é Tg 2:14, em que elas mudam a pergunta “Pode a fé salvá-lo?” para “Pode semelhante (ou essa) fé salvá-lo?”. Não está errado em termos de doutrina, mas a pergunta literal é um pouco mais contundente. É totalmente desnecessário, mas elas querem fechar qualquer brecha para leitura diferente do texto.

Hoje eu percebi um outro caso, que é Dt 26:14. O contexto é a entrega dos dízimos do terceiro ano, que eram dados aos levitas e aos pobres. O texto orienta se fazer uma oração na qual, dentre outras coisas, o israelita afirma, diante de Deus, que não desviou o uso dos dízimos e, com base nisso, suplica a bênção de Javé.

O problema está em uma das sentenças. Veja várias traduções:

“nem disso dei para algum morto” (ARC)

“nem delas dei para os mortos” (ACF)

“dela não ofereci nada aos mortos” (NVI)

• “não ofereci coisa alguma dela aos mortos” (NVT)

“nem dei nenhuma parte como oferta pelos mortos” (NTLH)

“dele nada ofereci por um morto” (BJ)

“nada ofereci por um morto” (EP)

“delas nada dei a um morto” (AM)

Variação nas palavras, mas todas com basicamente o mesmo sentido (explico abaixo). Agora segura esta:

“nem deles dei para a casa de algum morto” (ARA/NAA)

A casa de algum morto? Como assim? Todas as outras versões evidenciam algum tipo de crença na possibilidade de interceder pelos mortos, seja indiretamente (levando comida ao sepulcro do morto), seja indiretamente (oferecendo comida a Deus em favor do morto). Ambos os tipos de crença e prática são bem atestados no mundo antigo, e ambos são traduções possíveis da expressão hebraica: ləmeṯ (לְמֵת) pode ser vertido tanto como “por um morto” como “a um morto”.

O texto em si é muito sutil para servir de argumento em favor da intercessão pelos mortos; afinal, é uma sentença negativa, num contexto bastante restrito. Serve apenas para mostrar que essa era uma prática conhecida.

No entanto, nem isso a ARA e a NAA toleraram. Inseriram a “casa de algum morto”, como se fosse um tipo de doação para uma família pobre cujo provedor morreu. Isso não funciona, porque o sentido daquele dízimo é justamente ajudar (também) os pobres, então não seria desvio. Essas traduções aproveitaram uma situação totalmente aleatória para reafirmar a ideia de que seus leitores não acreditam em intercessão pelos mortos.

Perdem, com isso, um indício bem primitivo da crença na “vida após a morte” entre os antigos israelitas.

Rev. Gyordano M. Brasilino

“Soli Deo Gloria” serve para quê?


O princípio “Soli Deo Gloria” é um princípio plenamente bíblico. Afinal, Deus diz, na voz do profeta: “…a minha glória, pois, a outrem não darei…” (Is 42:8; 48:11). Uma vez que que todas as coisas são dele, por ele e para ele, a glória deve ser dada a ele eternamente (Rm 11:36). As doxologias do Apocalipse e do restante do Novo Testamento carregam o mesmo sentimento. Fomos criados para a glória de Deus (Is 43:6-7). Por isso, a glória dada a Deus deve permear nosso comportamento (1Co 10:31).

Essa glória certamente é exclusiva. Mas o que isso significa? Se ela é exclusiva, a quem ela exclui? Na Bíblia, ela exclui o culto aos deuses. O contexto do Segundo Isaías, no qual aparecem as sentenças mencionadas acima, é o do conflito de Javé com um povo que havia se acostumado a cultuar divindades pagãs no Exílio. Deus não divide sua glória com os deuses e ídolos das nações.

Por outro lado, essa glória não exclui o povo de Deus. Num outro momento, a mesma literatura profética fala do destino da Jerusalém redimida: “…sobre ti aparece resplendente o Senhor, e a sua glória se vê sobre ti… eu tornarei mais gloriosa a casa da minha glória…” (Is 60:2,7). O Templo é a casa da glória divina, o lugar em que essa glória reside. Deus visualiza sua própria glória entre o seu povo.

Numa leitura cristã, na qual a Igreja é o Templo de Deus, isso significa que Deus coloca sua glória e resplendor nos seus santos. Assim, é natural que o Novo Testamento veja os cristãos como “participantes” da glória de Deus (1Pe 5:1), que veja os redimidos como glorificados por Deus (Rm 8:30), que trate o crescimento dos apóstolos como um resplandecer de Cristo “de glória em glória” neles. Nesses casos, Deus partilha, sim, sua glória.

Por isso: “…diante de ti se prostrarão e te farão as suas súplicas, dizendo: Só contigo está Deus, e não há outro que seja Deus.” (Is 45:14); “…diante de ti se inclinarão com o rosto em terra e lamberão o pó dos teus pés…” (Is 49:23); “…prostrar-se-ão até às plantas dos teus pés… eu te constituirei glória eterna…” (Is 60:14-15); “eis que os farei vir e prostrar-se aos teus pés e conhecer que eu te amei.” (Ap 3:9).

Em toda essas coisas, Deus é glorificado, o único plenamente glorificado. Por isso, nesses casos, a glória de Deus não é dividida, porque os homens vivem para a glória de Deus. De fato, Deus ama dividir sua glória com quem não quer glória para si.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Jesus não estudou Hermenêutica

Jesus não era biblicista. Certamente ele reconhecia e afirmava a veracidade e a autoridade das Escrituras, referindo-se a eles em seus ensinos. Mas ele as usa com relativa liberdade, seguindo padrões conhecidos da halāḵâ judaica, encarando-as mais como janelas do que como destinos. Ele não esperava que os seus interlocutores usassem as Escrituras de modo restrita, antes traz mais cartas para a mesa.

No diálogo com o intérprete da lei em Lc 10:25ss, Cristo concorda em colocar dois mandamentos da lei acima de todos os demais, mas discorda de que o mandamento do amor ao próximo se limite aos compatriotas. O problema é: se lido de maneira puramente contextual, o mandamento se referia, sim, apenas ao amor entre os israelitas:

Não te vingarás, nem guardarás ira contra os filhos do teu povo; mas amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou o Senhor.” (Levítico 19:18)

Por implicação do paralelismo, o “próximo” corresponde aos “filhos do teu povo”. Essa é a leitura mais natural do texto. Por isso mesmo, o capítulo contém um segundo mandamento equiparando os estrangeiros que vivessem entre os israelitas (Lv 19:33-34); o primeiro mandamento não dava conta. Isso é uma importante expressão de humanidade e empatia, mas não é, ainda, em termos de contexto estrito, um mandamento de amor universal e irrestrito.

Então Cristo usa o mandamento para além dos seus limites contextuais e da intenção do autor. Ele não traz aí um mandamento novo — não é uma questão de “antiga aliança e nova aliança” —, mas observa como deve ser aplicado o mandamento antigo, como a lei deve ser usada. O texto não é a regra última, mas uma expressão dela.

Assim também, nas discussões sobre o sábado. No dia santo, seus interlocutores circuncidavam (Jo 7:21-24) e sacrificavam (Mt 12:5), e isso encontra amparo na lei, de modo que Cristo apela a uma hierarquização implícita nela, que deve ser válida também em situações não prescritas, como naquela de curar no sábado ou alimentar pessoas.

Mas a argumentação vai além: no sábado, eles levavam seus animais para beber água e socorriam seus filhos e animais caídos numa vala (Lc 13:15; 14:5), e isso é um apelo ao senso moral (expresso na lei oral), não à própria lei escrita. O fermento dos fariseus, a hipocrisia (Lc 12:1), consistia precisamente em ocultar o senso moral, e julgar as coisas apenas através de uma prescrição fria da lei, quando ela lhes convém.

Em outras palavras, Cristo exige dos seus interlocutores uma leitura não biblicista, na qual seja válido o princípio da analogia legal através do senso moral. Ele foi além da intentio auctoris e reclamou com quem não fez o mesmo. Se a hermenêutica é a ciência do contexto, Cristo nunca estudou hermenêutica.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Metáfora, Analogia, Representação

Três realidades simbólicas correlacionadas: metáfora, analogia entis e representações artísticas de Deus. Isso é muito importante.

Uma das críticas mais frequentes às representações de Cristo diz respeito à possibilidade de correspondência exata entre a maneira como ele é desenhado, pintado, esculpido na arte cristã e o protótipo concreto, aquele judeu de Nazaré da Galileia no século I da nossa era, conforme visto pelos seus contemporâneos ao longo da vida, particularmente nos últimos anos.

Uns alegam que ninguém sabe como Jesus era exatamente, então seria fútil representá-lo. Outros, indo um pouco além, dizem que, como não sabemos, toda representação que fizermos será inferior ao original e, portanto, o desonrará. Por fim, mais recentemente, as pessoas têm tido problema com certas representações europeias e particularmente renascentistas, que não corresponderiam ao fenótipo médio-oriental do semita Jesus, mas serviria apenas para reproduzir padrões culturais eurocêntricos. (Quem traz esse argumento geralmente ignora a iconografia bizantina ou etíope, por exemplo, e, na verdade, a arte cristã durante a maior parte da história.)

De todo modo, esse tema toca em algo central: a correspondência entre o representante e o representado, correspondência que sempre presume a inferioridade aceitável do representante em relação ao representado. Se houvesse identidade do representado, a representação seria totalmente imprestável. Representamos as coisas precisamente porque elas escapam a representação. Toda representação adequada tem em sua natureza um paradoxo.

Quando recitamos o salmo e dizemos “tu, Senhor, és o meu escudo”, a metáfora do escudo presume que Deus seja representado (imaginativamente) através de um objeto que, como qualquer outro, lhe é infinitamente inferior. Mais grave ainda: é inferior não só a Deus, mas mesmo a nós, que construímos a representação. Enquanto peça militar, não há correspondência direta e unívoca entre um escudo e Deus, mas há uma semelhança (num mar de diferença), às vezes chamada de hoje de “ponto de comparação”, que permita que a metáfora funcione de modo conveniente. A Escritura Sagrada, ao empregar continuamente a metáfora para descrever Deus, ou descrever nossa experiência diante de Deus, presume que haja uma semelhança possível entre a criatura e o Criador.

Portanto, a metáfora (no universo semântico) presume uma semelhança (no mundo metafísico), e essa relação de semelhança em meio à diferença, entre os seres e Deus, é o que se chama de analogia entis, analogia do ser. Ao ponto de comparação poético-comunicativo corresponde um “ponto de contato” ontológico (Anknüpfungspunkt) pelo qual Deus possa ser comparado.

Nesse sentido, qualquer tentativa de tornar a mensagem cristã inteligível à pessoa humana de hoje presume uma transmissibilidade, uma analogia, uma semelhança, que seja comunicável em linguagens diferentes. Rejeitar as representações artísticas de Deus e rejeitar a analogia entis é rejeitar, na base, a possibilidade de qualquer comunicação a respeito de Deus.

Rev. Gyordano M. Brasilino