Parônimos criativos

Um dos indícios de que o livro do Gênesis não deve ser tomado literalmente como relato histórico está na própria gramática do texto. Há certos traços que desaparecem quando o texto é lido nas línguas modernas, mas que são parte da riqueza do texto na língua de origem.

Se você perguntar a um muçulmano qual língua Adão e Eva falavam, talvez você receba a resposta de que eles falavam árabe. Isso nos parecerá estranho, como uma cultura se colocando na raiz e no centro de todas as outras. Se você pergunta a um judeu, talvez ouça coisa semelhante: a língua original era o hebraico. Um dos motivos dessa lógica é a própria forma dos textos sagrados dessas religiões. O Gênesis usa vários trocadilhos em hebraico, dando a entender que a língua dos personagens ali é realmente o hebraico, já que os trocadilhos não se preservam em línguas suficientemente distantes. (Razão por que quem lê em português não faz ideia da existência dos trocadilhos na maioria dos casos.)

As línguas semíticas, em particular, favorecem muito o uso de trocadilhos, já que o principal processo de formação de palavras é através de raízes trinconsonantais, que preservam um mesmo sentido nuclear em palavras diferentes; então a semelhança sonora entre palavras diferentes tende a não ser apenas coincidência, mas uma etimologia comum. Ou seja, a estrutura gramatical do hebraico favorece a paronomásia. (Na prática, há muita pseudoetimologia, mas isso é irrelevante. O que importa é que os falantes pensem que a mesma raiz é usada.)

O uso da paronomásia no Antigo Testamento é tão importante que ele até inspira a forma de várias profecias e visões do Antigo Testamento – às vezes, a relação entre o que o profeta vê e o significado da visão se dá através da ligação das palavras.

Isso acontece várias vezes no livro do Gênesis. Os personagens recebem seus nomes a partir das suas origens ou daquilo que se origina deles:

• Adão é tirado do solo, porque ‘ādām (homem) e ‘ădāmâ (solo) têm (para os falantes) a mesma raiz.

• Eva é chamada de “mãe de todos os viventes”, porque “Ḥawwâ” (Eva, vivente) e ḥay (vida) parecem ter a mesma raiz.

• A mulher é assim chamada (‘îššâ) porque procede do homem (‘îš). É fácil ver como essa relação etimológica inexiste no português corrente ou na maioria das línguas. (Ela se preserva no português mais arcaico: varão, varoa.)

Isso não afeta só o nome dos personagens, mas o próprio enredo. Um caso famoso é a transição de Gn 2:25-3:1. Em Gn 2:25, lemos que Adão e Eva estavam “nus” (sg. ʿārôm) e, no versículo seguinte, aparece a serpente como “astuta” ou “inteligente” (ʿārûm). Não é muito coerente que a nudez (desproteção) de uma pessoa convide à astúcia de outra? O contraste entre as duas palavra, assim como a semelhança quase-etimológica, sugeriram a narrativa para o hebreu que escreveu essa história.

Isso significa que o texto é construído por um falante de hebraico que modela a história a partir de sua própria língua. Então das duas uma: ou a história realmente aconteceu em hebraico e todos os falantes (inclusive Deus) usavam essa língua; ou a história não aconteceu da maneira como está ali, e deve ser lida de maneira simbólica.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Sacrifício, Violência, Dom

O Novo Testamento apresenta a Igreja como “casa espiritual” para “oferecer sacrifícios espirituais”. Em razão disso, não é possível entender a essência e a missão da Igreja sem entender o que é um sacrifício. Uma eclesiologia sacrificial é necessária.

Na linguagem corrente, usamos a palavra “sacrifício” num sentido negativo: sacrificar é eliminar, é destruir, é negar, ou, ao menos, realizar algo através de algum tipo de dor pessoal que seja, em algum sentido, também destruição. O sacrifício envolve alguma forma de violência, e a Igreja, particularmente na forma da comunidade concreta, passa a ser um lugar de violência sublimada — um lugar de violência simbólica. Embora Girard veja no sacrifício de Cristo o fim de uma história terrível, no fim das contas a narrativa padece desse mesmo preconceito antissacrificial, e nos deixa a ver navios quanto ao propósito da Igreja enquanto continuidade da prática sacrificial.

Esse é um dos motivos pelos quais eu creio que a heresia kenótica tenha certo apelo entre os diletantes modernos da cristologia. Se eu entendo que sacrificar é deixar para trás, é concebível, para os sequazes de uma antimetafísica obstinada, que a obra de Cristo consista, em parte, no abandono (temporário) da sua divindade. Se sacrificar é negar, há algum sentido nisso. (Bem pouco, sinceramente.)

Mas não é bem esse o sentido que a palavra “sacrifício” tem na tradição cristã e, francamente, também na própria Bíblia. Embora isso seja muito claro em Santo Agostinho — para quem o sacrifício é uma forma de unir, não uma forma de destruir, uma forma de afirmar, não uma forma de negar —, acho que a primeira pessoa que realmente chamou minha atenção para isso tenha sido Robert Daly, há poucos anos. O fogo do amor não destrói a oferta, antes a eleva às regiões superiores; isso é realmente “sacri-ficar”, tornar sagrado.

Um sacrifício é uma forma de presente, de entrega, de dom. Na raiz das mais diversas religiões, está a noção de que o sacrifício é uma forma de alimentar a divindade, coisa que, óbvio, se torna supérflua a partir do momento em que a divindade é tratada em termos propriamente absolutos. Por isso também, a forma de sacrificar é mudada. Santo Agostinho diz, de modo interessante, na Cidade de Deus: “E a razão por que aqueles sacrifícios [da lei] tiveram de ser mudados, no momento oportuno e pré-estabelecido, foi precisamente para impedir que as pessoas acreditassem que os sacrifícios em si mesmos, em vez das coisas significadas por eles, eram desejadas por Deus ou ao menos aceitáveis em nós.” (X, 5)

De todo modo, o que está em jogo não é a morte — que só acontece em alguns tipos de sacrifícios —, mas o oferecimento do presente. Não é à toa que os sacrifícios sejam chamados de “dons” (gr. dōra). Sacrificar é presentear, e, por isso, é uma forma de transitar (inaugurar, restaurar, fortalecer) numa dinâmica de amizade, agradecimento e reciprocidade para com os poderes superiores. O Antigo Testamento tem alguns resquícios simbólicos da ideia de alimentar a divindade, mas o rejeita frontalmente, particularmente no discurso dos profetas, para quem o melhor sacrifício a se oferecer a Deus é a justiça compassiva para com o próximo e o culto do coração a Deus. São Tomás nos lembra de que o nosso principal sacrifício é a devoção, e isso tudo é parte de um processo de quase três milênios, que ainda não acabou, no qual temos ressignificado (espiritualizado) o sacrifício.

Tudo isso é muito óbvio para quem tenha refletido acerca da noção de Sacrifício Eucarístico. Na Eucaristia, não eliminamos ou destruímos nada de Cristo, muito pelo contrário. O sacramento não destrói, somente “acrescenta”. Embora possamos falar de um investimento de recursos, tempo, atenção e tantas outras coisas que a celebração do sacramento possa envolver, no fundo, o nosso próprio oferecimento só é pleno quando todas essas coisas forem vistas como formas de ganhar, não como formas de perder. Tratar o sacrifício como eliminação é impiedade. Todas as vezes em que sacrificamos, seja na Eucaristia, seja em qualquer outra coisa, nós somos os beneficiários.

O sacrifício não é parte de um jogo de soma zero, mas sim de uma uma dinâmica simbólica criativa, um de aprofundamento ontológico. Por isso, ao dizer “não tenho minha vida por preciosa”, Paulo tornou sua vida sumamente preciosa. Inversamente, ao dizer “não darei ao Senhor sacrifícios que não me custem nada”, Davi tornou em nada o valor que ele ofereceu a Deus. No sacrifício, damos a Deus tudo como se não fosse nada, e é assim que nada se torna tudo. Sacrificar é dizer: nossa amizade, nossa comunhão, é mais importante do que tudo o que esteja em minhas mãos, por isso, com desapego, eu te dou. O apego destrói o valor; a entrega o multiplica.

Por isso, não há qualquer oposição ou contradição entre a Eucaristia como sacrifício e a Eucaristia como banquete — nós comemos entregando e entregamos comendo; tanto sacrifício quanto banquete são formas de dizer: união com Deus. Se essas duas coisas forem bem entendidas, não há sequer como enfatizar uma sem que a outra seja igualmente enfatizada.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Ansiedade é pecado?

As pessoas perguntam se a ansiedade é pecado. Existe muita confusão nesse assunto.

É falso o raciocínio do tipo “quem tem fé não tem ansiedade ”. Isso presume um vislumbre muito simplista da natureza humana, e não tem nada a ver com a Bíblia. A maneira como a Bíblia ensina a lidar com a ansiedade — por exemplo, através da oração — prova que não basta ter fé. Ansiedade não é só falta de confiança em Deus.

Na verdade, a ansiedade e a fé se alojam em dimensões diferentes da natureza humana. A ansiedade ocupa a carne (finitude, corporeidade, fragilidade, mortalidade, animalidade, instinto), a fé ocupa o espírito; não há contradição na coexistência delas.

Podemos falar, de um ponto de vista teológico filosófico, de três formas de ansiedade: a ansiedade como impulso, ansiedade como hábito, ansiedade como transtorno. Nem o impulso nem o transtorno são pecados, mas somente o hábito, resultante de um consentimento com o impulso.

Na verdade, o impulso da ansiedade, embora possa adoecer, é necessário para nossa sobrevivência, porque ele é o instinto de que nós não contornamos o futuro — o que é total verdade. Essa informação precisa ser completada pelo espírito, pois só ele sabe que, embora não controlemos o futuro, Deus controla.

Rev. Gyordano M. Brasilino

A Igreja Anglicana é reformada?

Por algum motivo, várias pessoas diferentes me fizeram a mesma pergunta: a Igreja Anglicana não é reformada?

É preciso entender que a Igreja Anglicana não é calvinista. Quando o Arcebispo Whitgift tentou tornar certo calvinismo moderado em doutrina anglicana, nos Artigos de Lambeth (1595), eles foram rejeitados. Ou seja, a Igreja Anglicana rejeitou o calvinismo como doutrina quando a proposta foi feita. (O que não significa que não haja influências calvinistas na doutrina e liturgia anglicanas; elas existem e são bastante positivas.)

Como eu digo muitas vezes: os 39 Artigos de Religião ensinam a doutrina da eleição e rejeitam ensinamentos como expiação limitada e perseverança dos santos, além de ensinarem certa cooperação com a graça. O Livro de Homilias tem um sermão cujo propósito é ensinar o perigo de perder a salvação. Um trecho:

“Pois se Deus mostrou, a todos os que creem verdadeiramente em seu Evangelho, sua face de misericórdia em Jesus Cristo, que ilumina seus corações, para que eles (se a observarem como devem) sejam transformados em sua Imagem, sejam feitos participantes da luz celeste e do seu Espírito Santo, e sejam conformados a ele em toda a bondade exigida dos filhos de Deus; então, se posteriormente eles negligenciam tais coisas, se forem ingratos a ele, se não ordenarem suas vidas de acordo com seu exemplo e doutrina, e ao anúncio de sua glória, ele lhes tirará o seu Reino, sua santa palavra, pela qual ele reinaria neles, por eles não trazerem o fruto que deles ele buscava.” — Livro de Homilias, On Declining from God

Esse trecho não só ensina a possibilidade de perder a salvação, como o faz à luz da doutrina da dupla justificação. Não se trata da doutrina luterana — perda de salvação por perda da fé —, mas a perda da salvação por pecado.

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Para os reformadores ingleses, era bem óbvio que a salvação podia ser perdida. Outro dia, compartilhei um trecho em que Hugh Latimer fala sobre essa possibilidade. Quem descreve esses homens como calvinistas não sabe bem o que diz. Eles acreditavam em predestinação, mas não a predestinação como posteriormente definiria Dort.

É por isso que o Art. 16 fala da possibilidade de cair da graça do Espírito Santo através do pecado, o que é óbvio para quem acredita em Regeneração Batismal. De fato, a homilia “On the Declining from God” (do Livro de Homilias da Igreja da Inglaterra), usando a famosa parábola da vinha em Isaías 5, expressa esse fato dizendo:

“…eles não mais serão do seu reino, eles não mais serão governados por seu Espírito Santo, eles serão tirados da graça e dos benefícios que tinham e que desfrutariam eternamente por Cristo, eles serão privados da luz celestial e da vida que tinham em Cristo enquanto permaneciam nele; eles serão (como um dia foram) homens sem Deus no mundo, ou até pior. Em suma, eles serão dados ao poder do diabo, que exerce domínio em todos os que são lançados de Deus, como fez com Saul e Judas (1Samuel 15:23; 16:14), e geralmente em todos quantos operam por suas próprias vontades, filhos da desconfiança e da descrença.”

A mesma homilia ensina ensina: “assim como a salvação é prometida aos fiéis em palavra e obra”.

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Revmo. Hugh Latimer (☩1555), bispo anglicano e mártir, sobre perda da salvação:

“Então essas pessoas que ainda não vieram a Cristo, ou, se vieram a Cristo, caíram novamente dele e assim perderam sua justificação (assim como há muitos de nós que, quando caímos voluntariamente no pecado contra a consciência, perdemos o favor de Deus, nossa salvação e finalmente o Espírito Santo)…” — Sermão sobre a Epístola do Primeiro Domingo do Advento

Primeiro podemos saber que podemos estar no livro num momento e noutro momento sair dele; como parece ser com Davi, que foi inscrito no livro da vida; mas quando pecou, naquele momento ele ficou fora do livro do favor de Deus, até que se arrependeu e se entristeceu por suas faltas. Assim podemos estar no livro uma vez e, em seguida, quando esquecemos de Deus e de sua palavra e agimos impiamente, saímos do livro; isto é, saímos de Cristo, que é o livro.” — Sermão do Terceiro Domingo depois da Epifania

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No nosso Livro de Oração Comum, a oração (coleta) desta semana é uma na qual a possibilidade de perda da salvação é apresentada:

“Ó Deus, protetor dos que em ti confiam, sem o qual nada é forte, nada é santo; acrescenta e multiplica a tua misericórdia para conosco, a fim de que, sob o teu governo e direção, vivamos esta vida de tal maneira que não percamos a vida eterna. Por nosso Senhor Jesus Cristo, que vive e reina contigo e com o Espírito Santo, um só Deus, agora e sempre. Amém.”

O trecho relevante é o que diz “vivamos esta vida de tal maneira que não percamos a vida eterna”. Essa oração está presente também na edição mais importante do LOC (1662), numa forma mais simples.

Nessa oração, vemos algo constante na Lex Orandi anglicana, particularmente nas coletas semanais: afirmamos, ao mesmo tempo, que podemos perder a vida eterna através do nosso modo de vida mau e, por outro lado, que perseveramos no caminho é graça de Deus, pelo que lhe pedimos.

O cair é do homem; o firmar é de Deus.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Quatro enganos sobre Perdão

Quatro enganos frequentes envolvem o perdão.

O primeiro é o de que perdoar significa esquecer. Isso é falso, se tomarmos a palavra “esquecer” no sentido mais comum. Pessoas que sofreram profundamente carregam danos por anos, sem conseguir esquecer o que passaram. Você pode dizer que perdoar implica esquecer apenas se usar o sentido qualificado da palavra — não alimentar a lembrança dolorosa, não dar a ela uma atenção aprisionadora, não se entregar à amargura.

Quando alguém diz “eu não consigo perdoar”, o mais comum é que signifique “eu não consigo esquecer” — e, portanto, que a memória continua trazendo dor. Mas somente feridas superficiais são esquecidas facilmente. Embora ser capaz de respirar sem o fantasma da memória má, encontrando “resolução”, seja muito bom e parte do nosso crescimento, perdoar não significa esquecer.

(Talvez venha daí o mito de que, no Paraíso, as pessoas não lembrariam do que aconteceu nesta vida. É claro que elas lembram, mas lembram com Amor desimpedido.)

O segundo engano é o de que perdoar significa conviver. Esse é um pouco mais complicado. O Amor Divino envolve desejar o bem e desejar a união mesmo com nossos inimigos. Se amo uma pessoa, eu não só desejo que ela fique bem, eu desejo união com ela em Deus. Mas, num mundo marcado pelo pecado e por mil dificuldades das relações humanas e da comunicação, nem sempre a união (ou sua busca) significa presença física, proximidade e convívio. Em alguns casos, o convívio pode ser mau, não só para quem sofre, mas também para quem pratica o mal, porque pode reforçar o hábito do pecado já cometido. (Isso exige atenção pastoral.)

O terceiro engano diferente e quase oposto dos anteriores, é de que perdoar é apenas uma decisão. Querer perdoar já é o começo do perdão, mas ele precisa ser consumado: perdoar é uma ação e se dá no contexto de relação concreta, ao longo do tempo. Por isso, Cristo ensina no evangelho: “se o teu irmão vier a ti…”. Eu entendo as pessoas que dizem que perdoar é uma decisão; querem dizer que perdoar não é só um sentimento ou impulso, e isso é muito verdadeiro — nós perdoamos mesmo quando não sentimos desejo de perdoar. Mas o perdão é um processo e pode levar um tempo.

O quarto engano é de que perdoar significa não punir ou não denunciar algo que nos foi feito. Quando se trata de alguém que habitualmente pratica o mal, permitir que a pessoa saia impune é permitir que ela cometa o mesmo mal contra outras pessoas, o que significa lhe dar oportunidade para ferir a si mesma e a outras pessoas — portanto, é contribuir com o mal, mesmo que numa medida menor.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Sobre a Comunhão dos Santos

Há alguns meses, terminamos aqui em casa de assistir a série Shtisel, sobre uma família judaica em Jerusalém. A série explora as várias maneiras pelas quais nossa vida é determinada por pessoas que já morreram: pela tradição, pelo luto, pela memória (inclusive a pintura), pelo ensinamento, pela intercessão, pelo parentesco (entre os que ficam), pela herança e por tantas outras maneiras.

Como alguém havia comentado, o último episódio dá um vislumbre do que os cristãos chamam de Comunhão dos Santos — é uma analogia, mas, com o temor que tem quem fala do que não é seu, digo que é uma analogia muito próxima. Os personagens Akiva, Shulem e Nukhem se sentam à mesa para conversar — em ídiche, não em hebraico — e logo se veem cercados, de algum modo, pelos que os antecederam. Essa visão é antecedida por poema de Isaac Bashevis Singer (1903–1991) que diz:

“Os mortos não vão a lugar nenhum. Eles estão todos aqui. Cada homem é um cemitério. Um cemitério real, no qual estão nossas avós e nossos avôs. O pai e a mãe, a esposa, o filho. Todos estão aqui o tempo todo.”

A Comunhão dos Santos é o coroamento da convicção mística do cristianismo. Essa convicção mística tem dois princípios antropológicos.

O primeiro deles é de que nossa humanidade é aberta à presença divina, de modo que nossa jornada humana consiste em encontrar Deus como nossa completude, a dilatação do finito ao infinito. Essa jornada não é, por isso, limitada pela morte. Então encontrar a Deus é se tornar um poder atuante no mundo, é se tornar parte da estrutura que ordena o universo — aqui e além.

O segundo deles é que nossa existência pessoal não é isolada. Assim como somos incompletos e abertos para cima, somos também incompletos e abertos para os lados. Nossa existência pessoal não está apenas no nosso centro de consciência, mas transborda para as pessoas que estão nosso redor. Não existimos como criaturas isoladas. Por isso, embora morramos, nunca deixamos esta vida.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Como eu identifico um fundamentalista?

Como eu identifico um fundamentalista:

(1) Maximiza a literalidade e a historicidade do texto (e confunde as duas coisas). Isso inclui criacionismo exclusivo.

(2) Ignorância das múltiplas possibilidades de interpretação bíblica e do fato de que todos temos uma hermenêutica nos guiando. O fundamentalista acha que está lendo “apenas o texto”, enquanto outras pessoas são “infiéis” e “liberais”.

(3) Transformação de teologias particulares em dogmas inquestionáveis. Inclui o tratamento do inclusivismo soteriológico e de escatologias não-milenaristas como heresias.

(4) Fideísmo no trato das ciências (principalmente ciências naturais, psicologia e história). Isso cria uma muralha acadêmica, impossibilitando o diálogo (inclusive o diálogo ético).

(5) Reação emocional teatral diante de divergências.

(6) Desconhecimento da influência das circunstâncias históricas sobre o texto bíblico, como se fosse apenas Palavra de Deus e não também palavra dos homens. Inclui a ignorância do fundo comum entre a religião cristã e outras religiões.

(7) Biblicismo. Inclui a rejeição da Crítica Histórica moderada, e às vezes também a rejeição automática do que não estiver explícito no texto bíblico.

(8) Aplicação do texto bíblico sem consciência (pastoral) das circunstâncias reais diferentes.

(9) Uso frequente da falácia da ladeira escorregadia. O sentimento subjacente é o medo. Alguém já disse que o fundamentalista é alguém com raiva, mas vejo algo por trás: o fundamentalista é alguém com medo.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Conhecendo o Anglicanismo (material gratuito)

[Vídeo] O que é o Anglicanismo? — Rev Gyordano | 8 min
https://youtu.be/nfZpiXwt26k

[Ebook] Anglicanismo — Dom Robinson
https://drive.google.com/file/d/1nyfRFy3GNQ-iFQ73Ynbtbwg-mfyTi57b/view?usp=drivesdk

[Ebook] Eclesiologia — Dom Robinson
https://drive.google.com/file/d/1ny-bkTkkKuoCPxmRPTDx3atBLe5C7dgM/view?usp=drivesdk

[Ebook] Livro de Oração Comum 2008
https://drive.google.com/file/d/1XoXpCFBde7B-9bk2cdhPEbolREJVVoR4/view?usp=drivesdk

[Vídeo] Introdução ao Anglicanismo — Douglas Araújo | 14 min
https://youtu.be/XRY_X06oct4

[Vídeo] No que os anglicanos acreditam? — Douglas Araújo | 10 min
https://youtu.be/WZJxNRNq718

[Vídeo] O que é ser anglicano? — Douglas Araújo | 13 mim
https://youtu.be/mzDqkXRM8FU

Mulheres cristãs devem usar o véu?

Por que Paulo ensinou que as mulheres devem usar véu? Uma das Escrituras mais surpreendentes e diferentes da mentalidade moderna é o texto em que Paulo ensina que as mulheres devem orar e profetizar sempre com cabeça coberta, e os homens, com cabeça descoberta.

Tanto na cultura grega quanto na judaica — ambas estão em jogo nas palavras de Paulo —, o véu feminino expressava modéstia, e o apóstolo Paulo parece aludir a isso quando diz que, para a mulher, o cabelo crescido é glória (1Co. 11:14-15), de modo que usar o véu seria esconder essa glória.

Diferentemente do homem moderno, Paulo vê no mundo uma ordem natural das coisas, uma diferença entre homens e mulheres: o homem é a glória de Deus e a mulher, a glória do homem. Por isso, ele não tratava apenas de costumes e tradições, mas da própria natureza. Mesmo um costume que sabemos não ser universal, e que ele queria que os coríntios aprendessem, podia ser visto como uma expressão da natureza humana.

Surpreende a justificativa, porém: a mulher deveria usar o véu “por causa dos anjos”. A interpretação mais comum é de que a, na celebração cristã, existe uma unidade entre o céu e a terra, de maneira que os anjos estão presentes entre os homens, o que exigira a devida reverência. Sem dúvida, os primeiros cristãos tinham um senso claro da companhia dos anjos.

A fé cristã tem obrigações e proibições? Alguém perguntou se as mulheres cristãs ainda devem usar o véu quando oram, como o apóstolo Paulo ensinou. A resposta é a seguinte: o cumprimento da lei é o amor, quem ama cumpriu a lei, e do amor dependem todos os mandamentos.

Para Cristo, era melhor salvar um perdido no sábado que guardar o sábado, e isso deve nos impressionar tanto quanto impressionou os fariseus, pois o sábado é um mandamento para com Deus, e Deus tem prioridade em relação ao homem. Para Cristo, o amor está radicalmente acima de toda a lei. Os fariseus quase tratavam a lei como se os mandamentos tivessem todos a mesma importância; para Cristo, há uma hierarquia, há o mais importante e o menos importante. O menos importante depende do mais importante, e deve ser deixado de lado quando for preciso, para cumprir o mais importante.

O problema das “Testemunhas de Jeová”, por exemplo, não é impor aos cristãos a proibição judaica do sangue, ou confundir transfusão com ingestão, mas ler a Escritura como uma lei chapada que tem de ser aplicada em todas as situações, a todo custo, e como se não “comer” sangue fosse tão importante quanto salvar uma vida.

O texto paulino que determina o uso feminino do véu é perpétuo, porque a Escritura é perpétua, é a voz do Espírito em palavras humanas. Qualquer tentativa de transformar o véu em mera prática cultural ultrapassada é inteiramente danosa à interpretação da Escritura, porque não tem limites; qualquer mandamento pode ser visto como cultura ultrapassada, e, assim, a moral cristã vem abaixo. O véu não deixou de ser usado porque ele era apenas um “costume cultural”; deixou de ser usado por causa dos nossos “costumes”.

Entretanto, isso não significa que as mulheres cristãs estejam automaticamente obrigadas a usá-lo. Cabe à Igreja disciplinar essa questão, observando o que é melhor para cada época e lugar, de acordo com a única lei da Igreja, a lei do amor.

Por isso, a religião cristã é, sem dúvida, a religião do coração e a religião do amor. Só há uma coisa proibida na fé cristã: não amar. Ame e faça o que quiser. Todos os outros “nãos” são maneiras de ensinar e preservar o amor. O amor divino é o maior dom, o maior fruto, o maior mandamento, a maior missão, o maior sacrifício, é o sacramento da vida, é a força do perdão, é a unidade da Igreja, é o motivação da Cruz, é a infusão do Espírito, é a essência sublime e inefável de Deus, porque Deus é amor.

Rev. Gyordano M. Brasilino

A Escuridão de Deus

“…Moisés, porém, se chegou à nuvem escura onde Deus estava.” Êx 20:21

Estas palavras falou o Senhor a toda a vossa congregação no monte, do meio do fogo, da nuvem e da escuridade, com grande voz, e nada acrescentou…” Dt 5:22

“…O Senhor declarou que habitaria em trevas espessas.” 1Rs 8:12

Das trevas fez um manto em que se ocultou; escuridade de águas e espessas nuvens dos céus eram o seu pavilhão.” Sl 18:11

Nuvens e escuridão o rodeiam...” Sl 97:2

A Escuridão é um lugar privilegiado de encontro com Deus. Se é verdade que encontrar Deus é encontrar a Luz — o querigma joanino é de que “Deus é Luz” —, e que a escuridão seja naturalmente encarada como ignorância e maldade, é igualmente verdade que há uma outra Escuridão, não a destruição da Luz, mas a transcendência da Luz, a Luz Inacessível e Invisível.

Como sabemos, o Mal é a privação do Bem, mas o Areopagita nos ensina que há outra privação do Bem, não abaixo do Bem, mas justamente acima dele, o Um acima de qualquer compreensão, tão supremo que não pode ser pensado ou dito. Não é a ausência, mas a plenitude infinita do Bem, que nos lança em outro tipo de ignorância — não a recusa da Verdade, mas a Verdade insuportável, inabarcável, insustentável, intolerável, incompreensível.

Por isso, a experiência da Escuridão e do Silêncio, na qual nós nos desapegamos de tudo o que é nosso, na qual abandonamos as criaturas, para atentarmos para o que está além da atenção, a experiência além de qualquer experiência, é o lugar de encontro com o Absoluto.

Rev. Gyordano M. Brasilino