Endogamia, Aristocracia e Cristianismo

Embora seja permitido pelo direito civil, ainda existe, no Brasil, um tabu em relação ao casamento entre primos, uma prática muito comum em outras épocas. Em algumas realidades, o casamento entre primos chega a ser visto como incestuoso. Em termos culturais, o tratamento dos casamentos consanguíneos revela muito dos valores e da estrutura de uma sociedade.

Tanto a endogamia quanto a sua proibição estão ligadas a diversos fatores, mas o certo é que o casamento entre primos é uma característica das aristocracias e oligarquias, uma nota do Antigo Regime. Não é só, como as pessoas costumam dizer, uma questão de heranças e terras, mas de tudo o que essas heranças e terras envolvem.

Juntamente com as relações de compadrio (que grassam nos antigos livros de registro de batizados), a endogamia é uma forma de preservar a coesão e unidade de famílias aristocráticas, particularmente rurais — em muitos ambientes agropastoris antigos, a endogamia é a única opção, ao passo que o ambiente urbano favorece a exogamia —, eliminando certas rivalidade possíveis e estabelecendo vínculos políticos, além de fortalecer a autoridade dos patriarcas e matriarcas, os “avós” inquestionáveis. A endogamia estreita o vínculo entre sangue, terra e poder, ao longo das gerações. Onde a endogamia prevalece, o casal não é só de “primos legítimos”, mas primos várias vezes, em linhas diferentes. As relações entre os parentes é uma teia muito difícil de acompanhar.

Isso significa, inclusive, que num ambiente onde a endogamia é preferida, os casamentos tenderão a ser arranjados pelos pais. O casamento “romântico” é muito mais exogâmico.

A endogamia tem consequências e sua ausência ou proibição também tem. Quando a Igreja resolveu, historicamente, reforçar as proibições à endogamia, isso trouxe efeitos sociais. A proibição não é só motivada em evitar males hereditários recessivos.

Os graus de parentesco proibidos ou impedidos para o matrimônio na Bíblia, nos capítulos 18 e 20 de Levítico, não incluem primos, sendo essa uma das razões por que o judaísmo sempre foi mais aberto à endogamia que o cristianismo. A endogamia favorecia inclusive a sobrevivência desse grupo religioso, quando hostilizado. Também os povos germânicos, que mudaram o panorama do cristianismo na Europa, praticavam endogamia.

A endogamia é centrípeta. A exogamia é centrífuga. Uma reforça o poder da família e o status quo, enquanto a outra dispersa esse poder e fomenta vínculos mais amplos e mutáveis. O patriarca ou a matriarca de um grupo de poder endogâmico encarna toda a autoridade do clã.

Isso significa que, quando a Igreja reforçou as proibições contra a endogamia, ela ajudou a corroer (mesmo sem total consciência) o poder aristocrático, dissolvendo lentamente certas “grandes famílias” e contribuindo para o surgimento da “família nuclear”. Com isso, preparou o surgimento da cultura do mundo moderno.

A endogamia corresponde ao amor natural preferencial pelos mais próximos. A exogamia corresponde à nova realidade trazida pela Igreja, que, sem eliminar a ordo amoris, vê a água como mais espessa que o sangue.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Um artigo científico sobre o mesmo assunto: clique aqui.

Tertuliano e o Império

Um questionamento às vezes feito, por aqueles de tendência mais pacifista, diz respeito à mudança ocorrida com Constantino. Quando olhamos para os séculos anteriores, vemos um cristianismo sem poder político, perseguido e pacifista; mas então vemos um cristianismo que chega ao poder e se estabelece como religião oficial e privilegiada. Parece haver aí uma corrupção pelo poder.

Sem negar que todo ingresso no poder acarrete sua própria tentação — embora também haja tentação na miséria política —, a realidade é que a “teologia política” anterior a Constantino já havia preparado o caminho. Podemos tomar o exemplo de Tertuliano, um dos mais bravos pacifistas do período anterior, contrário, como vários dos primeiros pais, ao ingresso dos cristãos no exército imperial (que, hoje sabemos, acontecia com frequência). Um radical de coração, Tertuliano considera que, mesmo que não tenham que participar em sacrifícios ou penas capitais, ainda assim seria ilícito para os cristãos participar desses empreendimentos, pois não é possível servir a dois senhores: ou Deus, ou César.

Tertuliano é insuspeito. No seu Apologético, dirigido aos imperadores, ele deixou claro que os reinos e impérios se estabelecem a partir da guerra e da destruição de cidades, casas, templos, pelo massacre de sacerdotes e cidadãos. Ele tem essa ousadia — que seria mais ousada hoje do que antes, é verdade — num texto em que procura defender os cristãos da acusação de traidores do trono imperial. Ele não manifesta nenhum prazer nessas calamidades. Esse sentimento, essa sensibilidade para o sofrimento, essa percepção de como o poder inquestionável e distante trata a vida humana como nada e a pisa como traça, é a raiz de todo antiimperialismo possível.

No entanto, na mesma obra, enquanto criticava o culto aos imperadores, ele escreveu:

“…sem cessar, oramos sempre por todos os imperadores. Oramos por sua vida prologada, por um império seguro, por uma casa (imperial) protegida, por exércitos fortes, um senado fiel, um povo probo, um mundo tranquilo, pelo que, como homem ou como César, ele desejar…” (XXX)

“Há também uma outra maior necessidade para o oferecimento de nossas orações pelos imperadores, a saber, pela completa estabilidade do império e pelos interesses romanos, pois nós sabemos que um poderoso impacto iminente sobre toda a terra, aliás, o próprio fim de todas as coisas ameaçando com amargores horrendos, só é retardado pela contínua existência do Império Romano. Não desejamos, então, ser subvertidos por esses eventos terríveis; e, orando para que sua vinda seja retardada, emprestamos nosso auxílio à duração de Roma… Respeitamos nos imperadores o juízo de Deus, que os colocou sobre os povos. Sabemos que há neles o que Deus quis; e àquilo que Deus quis desejamos toda segurança, e consideramos esse um grande juramento.” (XXXII)

“Oramos, também, pelos imperadores, pelos seus ministros e por todos em autoridade, pelo bem-estar do mundo, pela prevalência da paz, pelo adiamento da consumação final.” (XXXIX)

Essas palavras não podem ser lidas como mera aplicação eloquente e exaltada da injunção bíblica da intercessão pelo bem-estar de governantes e povos. Há, bem aí, somada ao sentimento “não-nacionalista” patrístico geral, a noção de que o Império Romano, em particular, é mantenedor político da paz. Deus não apenas permite ou autoriza que Roma exista, como um caso da regra de que Deus dá autoridade aos governantes, mas, dentro da teologia de Tertuliano, existe um desejo particular de Deus para com o Império Romano, um desígnio divino para a “pax romana”.

Nesse sentido, já havia, muito antes da apologia pró-imperial de Eusébio, uma crença, entre esses cristãos perseguidos, de que havia um elemento importante na preservação do Império, razão por que, se desobedientes a ele em matéria de religião, não deixavam de lhe servir. Quase podemos, adaptando o dito de Loisy, dizer: Cristo prometeu o Reino, e o que veio foi o Império.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Sola Scriptura (4 Teses)

1. Até a Reforma Protestante, não havia um princípio claro como “Sola Scriptura”. Havia a suficiência das Escrituras, mas ela não era contraposta à Tradição.

2. Antes da Reforma, não havia uma explicação clara e uniforme da relação entre a Escritura e a Tradição. Havia vários discursos. Olhar retrospectivamente para esses documentos patrísticos ou escolásticos e ver apenas “suficiência material” é tão anacrônico quanto ver “Sola Scriptura”.

3. O princípio Sola Scriptura surgiu quando, na interpretação de Lutero, as Escrituras e a autoridade eclesiástica se contradisseram. O princípio não significa necessariamente rejeição da Tradição, mas significa, sim, a “rejeitabilidade” de algum dos seus elementos.

4. Mesmo depois da Reforma Protestante, não se estabeleceu uma maneira única de explicar o princípio Sola Scriptura. As tradições protestantes têm perspectivas diferentes do que ele significa.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Vivam os gregos! Viva Platão!

File:Giovanni Paolo Pannini - Apostle Paul Preaching on the Ruins -  WGA16977.jpg - Wikimedia Commons

Desde Harnack, o desenvolvimento dos dogmas cristãos é interpretado como helenização e corrupção da mentalidade pristina e protocristã, supostamente mais hebraica. Não é difícil encontrar pessoas batalhando contra a influência de categorias gregas tanto na Teologia Sistemática quanto na Teologia Bíblica. Até N. T. Wright é refém desse purismo hebreu. O que Harnack via como degeneração, eu vejo como coisa muito bela, como o avanço do Evangelho para além das (supostas) fronteiras intelectuais de uma nação.

Uma oposição entre o “pensamento grego” e o “pensamento hebreu” é indefensável, herdeira de uma antropologia muito rígida. As muralhas entre os povos são porosas. Afinal, o “pensamento grego” nunca foi uma coisa só. Havia variedade capaz de cobrir tanto a impassibilidade quanto a passibilidade. Os inimigos da helenização se referem principalmente à influência do platonismo e, em alguma medida, à do estoicismo, escolas que, contudo, fazem sentir sua influência já no Novo Testamento, que recebe essas imisções não como o ouro egípcio no Bezerro, mas como o cedro sírio no Templo. O NT não só afirma a salvação para todos os povos, como também é profundamente influenciado pelo pensamento desses povos.

Por outro lado, o “pensamento hebreu”, desde o Antigo Testamento, também era aberto ao emprego de categorias, símbolos e padrões dos povos em redor (canaanitas, egípcios, fenícios, mesopotâmicos), coisa óbvia para quem saiba fazer comparações. Fílon de Alexandria não era um traidor da pátria, mas um autêntico israelita, sem dolo. (É engraçado ver o mesmo tipo de gente dizer que Fílon estava helenizando as Escrituras e que o Logos do Quarto Evangelho é apenas a Sabedoria do AT, sem muita helenização.)

Mesmo Tertuliano, o mais antifilosófico dos antigos, foi um dos principais responsáveis pelo estabelecimento da linguagem teológica da União Hipostática e da Santíssima Trindade, através das noções de pessoa e substância, e também importou categorias do pensamento jurídico romano (como “satisfação”). Também ele afirmava a impassibilidade divina. Assim também, os inimigos do “pensamento grego” estão o tempo todo introduzindo categorias do pensamento ocidental (moderno e pós-moderno) em suas reflexões sobre Deus e sobre a Bíblia. E, a priori, não há nenhum problema nisso! Se cremos na Bíblia e não cremos que a terra é plana, é porque não estamos presos a uma forma de pensamento antiga.

Não é preciso destruir a Beleza do Infinito para apreciar as narrativas das Escrituras. Não há motivo pelo qual o Cristo judeu não possa se manifestar através das línguas do grego, do romano, do chinês, do indiano ou do nigeriano. Todo bom missionário sabe disso. Nossos teólogos, infelizmente, nem sempre são bons missionários. Como no Pentecostes, Deus se mostra capaz de falar nas línguas de todos os povos, não conforme a “mente do hebreu”, mas conforme a Mente do Espírito. Tudo pertence a Cristo.

“Procure Cristo, o Filho de Deus; que era antes do tempo, mas apareceu no tempo; que era invisível por natureza, mas visível na carne; que era impalpável e não podia ser tocado, como se não tivesse um corpo, mas por nossa causa se tornou tal, e podia ser tocado e manuseado no corpo; que era impassível como Deus, mas se tornou passível por nós como homem; e que de todas as maneiras sofreu por nossa causa.” Santo Inácio de Antioquia, Carta a Policarpo 3:2

Rev. Gyordano M. Brasilino

Teologia do Amor em Agostinho

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“Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda esse é o que me ama; e aquele que me ama será amado de meu Pai, e eu o amarei, e me manifestarei a ele.” (João 14:21)

A teologia do amor de Agostinho é como que o crescimento das preciosas sementes das Sagradas Escrituras, que nos ensinam que do amor dependem todos os mandamentos, que todas as coisas devem ser feitas com amor, sem o qual nada tem valor, que quem ama cumpriu a lei, que não pode dizer que ama a Deus quem não ama ao irmão, que Deus permanece naqueles que permanecem em seu amor, que o amor procede de Deus e é derramado em nossos corações pelo Espírito Santo e, sobretudo, que Deus é amor. Por um lado, o amor é a máxima exigência e, por outro, o maior dom. Continue lendo “Teologia do Amor em Agostinho”

Apolinarismo, heresia nossa de cada dia

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Jesus é o principal. Embora muitas vezes e com acerto a pregação e a abordagem da Igreja sejam de resgatar o pecador e o perdido, esse é somente o primeiro degrau em uma escada que nos leva a descobrir que nós não somos o assunto principal. É Cristo. Tudo o que a Igreja tem, o que a humanidade redimida tem, tem-no não apenas emcompor Cristo, mas também para Cristo. “Tudo foi criado por ele e para ele.” (Cl. 1:16b). Continue lendo “Apolinarismo, heresia nossa de cada dia”

Certeza da salvação (II): João Calvino

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“Por isso, cingindo o vosso entendimento, sede sóbrios e esperai inteiramente na graça que vos está sendo trazida na revelação de Jesus Cristo.” (1 Pedro 1:13)

Continuando o texto anterior (leia aqui), agora nos voltamos para Calvino, cuja doutrina da certeza da salvação é mais famosa. Diferentemente de Tomás, que localiza a certeza da salvação na virtude da esperança, Calvino a coloca na virtude da fé; ainda assim, a diferença não é gritante se lembrarmos que Tomás coloca já na fé o fundamento da esperança, na medida em que a fé tem por objeto o Deus onipotente e misericordioso. Continue lendo “Certeza da salvação (II): João Calvino”

Certeza da salvação (I): Tomás de Aquino

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“Vós, porém, amados, edificando-vos na vossa fé santíssima, orando no Espírito Santo, guardai-vos no amor de Deus, esperando a misericórdia de nosso Senhor Jesus Cristo, para a vida eterna.” (Judas 20-21)

A caminhada cristã é marcada, nutrida, sustentada, regida e consumada pela misericórdia de Deus. A bondade efusiva e obstinada do Pai das luzes, sumamente manifestada e realizada em seu Filho Jesus Cristo e trazida a nós nos meios de graça e esperança da glória eterna no poder do Espírito Santo, é a única cura para a chaga mortal do pecado humano, chamando-o a nova vida. Continue lendo “Certeza da salvação (I): Tomás de Aquino”

Lutero foi a Roma — e gostou

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O filme Lutero (2003) mostra o monge agostiniano e futuro reformador incomodado com a prostituição e a superstição que encontra em Roma, assim como incapaz de encontrar paz na prática religiosa da cidade eterna. Essa é uma noção bastante difundida. Lutero teria começado a compreender “a necessidade de uma reforma” depois de ver “um pouco da corrupção e da luxúria da Igreja Romana”, como escreve Earle E. Cairns em seu livro de história da Igreja. Continue lendo “Lutero foi a Roma — e gostou”

Per modum exempli: Tomás de Aquino sobre Cl. 1:24

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“Agora, me regozijo nos meus sofrimentos por vós; e preencho o que resta das aflições de Cristo, na minha carne, a favor do seu corpo, que é a igreja;” (Colossenses 1:24)

Colossenses 1:24 é um texto recorrente nos debates entre católicos romanos e protestantes acerca da intercessão dos santos e do tesouro de mérito. O texto nos diz que Paulo preenche, em sua própria carne e em favor da Igreja, o que falta das aflições de Cristo. O que quer que isso signifique, não é algo que se possa ignorar. Continue lendo “Per modum exempli: Tomás de Aquino sobre Cl. 1:24”