O que é ser um fariseu?

Há uns dias, eu vi alguém dizer que Cristo não condenou a doutrina dos fariseus, somente a sua hipocrisia. Bom, segundo o Evangelho de São Mateus, Cristo condenou “a doutrina dos fariseus” (Mt 16:12).

É claro que ele não condenou tudo no que os fariseus acreditavam — eles, assim como nós, acreditavam na ressurreição, acreditavam na vida eterna, acreditavam nas Escrituras Sagradas dos profetas. Mas havia algo em sua doutrina que melava tudo. O que nos detém aqui não é um retrato histórico detalhado dos fariseus, mas o seu retrato canônico.

Quando vemos o retrato dos fariseus nos evangelhos, há um traço em comum, condenado por Cristo: sua incapacidade de conectar, na doutrina, o amor a Deus ao amor ao próximo. Essa era uma das ênfases do ensinamento de Cristo, segundo o qual nossas ofertas a Deus só terão valor quando procurarmos o perdão do irmão (Mt 5:23-24).

Assim, em Mateus 9:11-13, os fariseus reprovam a atitude de Cristo de comer com pecadores, e Cristo apela para o dito profético: “Misericórdia quero, e não sacrifício”. Em outras palavras: o maior gesto de adoração a Deus é a misericórdia. Os fariseus sabiam, muito bem, que as esmolas eram como sacrifícios e tinham por recompensa o perdão divino, um ensinamento judaico onipresente no período do Segundo Templo e no rabinato posterior. Mas faltava reformar toda a sua prática religiosa à luz da verdade fundamental enunciada por Cristo.

Em Marcos 7, os fariseus reprovam os discípulos de Cristo por comerem com “mãos impuras”. Segundo Cristo, eles usavam o cumprimento de uma obrigação religiosa para com Deus (a oferta) para suprimir uma obrigação piedosa para com os pais (a honra), dispensando um mandamento menor (a honra aos pais) através de um mandamento maior (a adoração a Deus), mas somente porque sua tradição lhes ensinava assim. Segundo Cristo, eles faziam “outras coisas semelhantes” (v. 13). Por que Cristo dá justamente essa resposta, se o assunto era a pureza das mãos? Porque, mais uma vez, o assunto da pureza das mãos revelava a desconexão entre o amor a Deus e o amor ao próximo.

Em Mateus 23:23-24, Cristo os reprova por prestarem culto a Deus através das mínimas coisas — uma prova de sua meticulosidade, detalhamento, zelo —, mas esqueciam as mais importantes: “a justiça, a misericórdia e a fidelidade”.

Na famosa Parábola do Fariseu e do Publicano (Lc 18:9-14), o fariseu é retratado como alguém de religião eloquente, que faz uma oração que todos nós aprendemos a fazer, de um sabor espiritual agostiniano: dá graças a Deus por sua vida espiritual, pelo que tem, pelo que vive. Mas essas palavras vêm, desde o começo, misturadas com o veneno do julgamento: “não sou como os demais homens”. Seu culto a Deus consistia em desprezo à humanidade.

Assim como nós, os fariseus sabiam que os mandamentos não eram todos iguais, que alguns mandamentos eram mais importantes do que outros. Mas eles pensavam como se um mandamento maior pudesse ser motivo para derrogar o menor, como se o zelo extremo para com Deus pudesse justificar um desprezo para com o próximo. O farisaísmo é uma “heresia” sobre a hierarquia dos mandamentos de Deus.

Até hoje, o espírito farisaico sobrevive entre os cristãos.

A Mediação Angélica da Lei

Alguém perguntou sobre os textos bíblicos que falam da lei de Moisés como sendo entregue “através de anjos”. O Pentateuco não nos diz ensina que anjos entregaram a Lei, então de onde vem essa ideia? Os textos do NT são estes:

☩ Atos 7:38,53 “É este Moisés quem esteve na congregação no deserto, com o anjo que lhe falava no monte Sinai e com os nossos pais; o qual recebeu palavras vivas para no-las transmitir… vós que recebestes a lei por ministério de anjos e não a guardastes.”

☩ Gálatas 3:19 “Qual, pois, a razão de ser da lei? Foi adicionada por causa das transgressões, até que viesse o descendente a quem se fez a promessa, e foi promulgada por meio de anjos [δι’ἀγγέλων], pela mão de um mediador.”

☩ Hebreus 2:2 “Se, pois, se tornou firme a palavra falada por meio de anjos [δι’ἀγγέλων], e toda transgressão ou desobediência recebeu justo castigo,”

Esse é um dentre tantos exemplos de conceitos e ideias presentes no Novo Testamento para os quais não se pode mostrar uma origem clara no Antigo Testamento, mas sim no judaísmo do Segundo Templo e, em particular, na sua vertente apocalíptica, assim como, de modo mais amplo, no simbolismo religioso do Antigo Oriente Médio.

A imaginação apocalíptica estava impregnada de uma cosmologia hierárquica na qual as realidades inferiores recebem das superiores sem saltos, de modo que tudo transcorra por mediação. Por isso, o que Deus quer revelar ao povo, ele o faz através de um anjo, que comunica a um vidente, o qual registra o que é dito. Essa mentalidade foi compartilhada (e adaptada de maneiras diferentes) por judeus, cristãos e gnósticos. O comentário judaico do Cântico dos Cânticos (Shir haShirim Rabbah) menciona a mediação angélica da lei quando comenta Ct 1:2.

Os gnósticos, por exemplo, usaram a ideia justamente para rechaçar o Antigo Testamento. Os cristãos seguiram uma rota mais sutil, não desprezando o Antigo Testamento mas exaltando o que veio depois (a palavra de Cristo). Os trechos do NT parecem presumir uma polêmica com judeus ou cristãos judaicos. No caso de Gl 3, em particular, o papel da lei é o de um “guardião” (paidagōgos) temporário que reduz os filhos à condição de escravos. Por isso era importante, para Hebreus, assinalar a superioridade de Cristo em relação aos anjos e, portanto, a superioridade da sua palavra dentro de um esquema cosmológico ordenado. Então essa imagem da outorga da lei, embora sinalize dentro da narrativa cristã uma origem positiva (distinta do que ocorre na gnose), também mostra uma tensão com a lei. Isso pode estar por trás de polêmicas como Gl 1:8 e Cl 2:18-19, nas quais as figuras angélicas putativas aparecem em favor .

Ademais, a mediação angélica é uma forma de conciliar narrativas díspares do Pentateuco: em alguns textos, parece que Deus falava diretamente a face a face com Moisés (cf. Nm 12:8); em outros, parece que Deus só lhe revelava obliquamente a sua glória, e o Nome Divino era portado pelo “anjo da presença” (Êx 23:20-22).

Em razão das complicações da interpretação de Dt 33:2 (tanto em hebraico como em grego), a referência israelita mais antiga à mediação angélica da lei está no Livro dos Jubileus, apócrifo por volta do século II a.C. que reconta o livro do Gênesis. Esse livro foi bastante influente entre judeus (e cristãos), sendo usado na comunidade de Qumran (como base para o Rolo do Templo). A mentalidade da mediação angélica da lei era plenamente coerente com as doutrinas de Qumran; nos seus cânticos, os anjos eram chamados de “deuses do conhecimento”.

Há várias referências explícitas à mediação angélica da Lei no Livro dos Jubileus. Por exemplo:

“E o anjo da presença falou a Moisés de acordo com a palavra do Senhor, dizendo: Escreve uma história completa da criação, como em seis dias o Senhor Deus acamou todas as suas obras e tudo o que ele criou, e guardou o Sábado no sétimo dia e o santificou para todas as eras, e o indicou como sinal de todas as suas obras.” (Jb 2:1)

Num trecho ambíguo, Josefo (contemporâneo do NT) registra palavras de Herodes:

“E nós a prendemos as melhores das nossas doutrinas e as partes mais santas das nossas leis através de anjos [δι’ἀγγέλων] enviados por Deus.” (Antiguidades Judaicas XV, 156). Essa expressão pode indicar os profetas e figuras semelhantes, então não é segura, mas é relevante que seja a mesma expressão grega de Gl 3:19 e Hb 2:2.

Um trecho de Fílon, que certamente fala de anjos, pode se referir também a essa noção:

“Ora, os filósofos em geral tendem a chamá-los de demônios, mas a Sagrada Escritura os chama de anjos, usando um nome mais concorde com a natureza. Pois de fato eles são mensageiros das injunções do pai para os seus filhos, e das necessidades dos filhos para o pai. E é em referência a esse seu emprego que a Santa Escritura os representou subindo e descendo, não porque Deus, que sabe de tudo antes de qualquer um, tenha necessidade de intérpretes; mas porque é a nossa sorte, como miseráveis mortais, a de usar a fala como mediadora e intercessora, por estarmos em tremor e temor do Governante do universo, e do poder onipotente da sua autoridade;” (De somnis I, 141-142)

Rev. Gyordano M. Brasilino

Jesus não estudou Hermenêutica

Jesus não era biblicista. Certamente ele reconhecia e afirmava a veracidade e a autoridade das Escrituras, referindo-se a eles em seus ensinos. Mas ele as usa com relativa liberdade, seguindo padrões conhecidos da halāḵâ judaica, encarando-as mais como janelas do que como destinos. Ele não esperava que os seus interlocutores usassem as Escrituras de modo restrita, antes traz mais cartas para a mesa.

No diálogo com o intérprete da lei em Lc 10:25ss, Cristo concorda em colocar dois mandamentos da lei acima de todos os demais, mas discorda de que o mandamento do amor ao próximo se limite aos compatriotas. O problema é: se lido de maneira puramente contextual, o mandamento se referia, sim, apenas ao amor entre os israelitas:

Não te vingarás, nem guardarás ira contra os filhos do teu povo; mas amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou o Senhor.” (Levítico 19:18)

Por implicação do paralelismo, o “próximo” corresponde aos “filhos do teu povo”. Essa é a leitura mais natural do texto. Por isso mesmo, o capítulo contém um segundo mandamento equiparando os estrangeiros que vivessem entre os israelitas (Lv 19:33-34); o primeiro mandamento não dava conta. Isso é uma importante expressão de humanidade e empatia, mas não é, ainda, em termos de contexto estrito, um mandamento de amor universal e irrestrito.

Então Cristo usa o mandamento para além dos seus limites contextuais e da intenção do autor. Ele não traz aí um mandamento novo — não é uma questão de “antiga aliança e nova aliança” —, mas observa como deve ser aplicado o mandamento antigo, como a lei deve ser usada. O texto não é a regra última, mas uma expressão dela.

Assim também, nas discussões sobre o sábado. No dia santo, seus interlocutores circuncidavam (Jo 7:21-24) e sacrificavam (Mt 12:5), e isso encontra amparo na lei, de modo que Cristo apela a uma hierarquização implícita nela, que deve ser válida também em situações não prescritas, como naquela de curar no sábado ou alimentar pessoas.

Mas a argumentação vai além: no sábado, eles levavam seus animais para beber água e socorriam seus filhos e animais caídos numa vala (Lc 13:15; 14:5), e isso é um apelo ao senso moral (expresso na lei oral), não à própria lei escrita. O fermento dos fariseus, a hipocrisia (Lc 12:1), consistia precisamente em ocultar o senso moral, e julgar as coisas apenas através de uma prescrição fria da lei, quando ela lhes convém.

Em outras palavras, Cristo exige dos seus interlocutores uma leitura não biblicista, na qual seja válido o princípio da analogia legal através do senso moral. Ele foi além da intentio auctoris e reclamou com quem não fez o mesmo. Se a hermenêutica é a ciência do contexto, Cristo nunca estudou hermenêutica.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Lei Moral? Lei Cerimonial? Lei Civil?

Alguém perguntou sobre a distinção tradicional entre as diferentes leis, no Antigo Testamento. Alguns comentários:

1. Essa distinção é útil quando queremos ensinar as pessoas a ler os mandamentos do Antigo Testamento e identificar o que elas devem ou não aplicar em suas próprias vidas: devem focar nos princípios enraizados na natureza divina e na natureza humana (“lei moral”), e não nas circunstâncias político-sociais (“lei civil”) e simbólico-cultuais (“lei cerimonial”) da nação israelita. O próprio AT não coloca tudo no mesmo nível, mas dá mais importância a algumas coisas.

2. Isso não significa que as leis consideradas civis e cerimoniais são inúteis. Há sempre princípios morais por trás delas. Por exemplo, São Paulo usa alegoricamente a lei “cerimonial” sobre fermento (1Co 5:7-8). Há sempre a possibilidade de uma leitura cristológica e eclesiológica dessas leis, de modo que toda a Escritura seja útil.

3. Por outro lado, embora essa distinção seja muito antiga, os escritores do Novo Testamento não dão nenhum indício de conhecê-la. Assim, não podemos presumir que eles a conheciam. Não podemos ler as referências à “lei” nas epístolas paulinas como se Paulo tivesse em mente apenas as leis cerimoniais. Ele fala da lei, apenas da lei.

4. Existem maneiras, na exegese contemporânea, de chegar a algo próximo dessas distinções, mas sem o toque da teologia sistemática. Um exemplo é a proposta de James Dunn de encarar as “obras da lei” como significando os prefeitos religiosos que distinguiam o judaísmo num ambiente pagão (circuncisão, sábados, leis de pureza). Isso eu parecido (mas não exatamente igual) à “lei cerimonial”. Não se trata de uma doutrina sobre distinções teológicas na lei, e sim observação sobre a sociologia de certas práticas religiosas.

Quanto ao tópico 1: O Antigo Testamento (e depois a literatura deuterocanônica) tem muitos exemplos de como certas práticas são mais valorizadas por Deus do que outras. Por exemplo:

“Porém Samuel disse: Tem, porventura, o Senhor tanto prazer em holocaustos e sacrifícios quanto em que se obedeça à sua palavra? Eis que o obedecer é melhor do que o sacrificar, e o atender, melhor do que a gordura de carneiros.” 1Sm 15:22

“Fazer justiça e julgar com retidão é mais aceitável ao Senhor do que oferecer sacrifícios.” Pv 21:3

“Pois quero misericórdia, e não sacrifício; conhecimento de Deus, mais do que holocaustos.” Os 6:6

Nesses e noutros casos, vemos que as práticas de sacrifícios (“lei cerimonial”) não tinham valor absoluto. De fato, elas poderiam se tornar abomináveis a Deus quando conduzidas por corações maus, e é daí que procede a “crítica profética” ao culto israelita. Essa crítica não era uma rejeição do culto, pois a negligência também era culpável, como lembra Malaquias.

De todo modo, há uma hierarquização nos mandamentos que era conhecida do Judaísmo do Segundo Templo e presumida por várias palavras de Jesus, como quando ele coloca os dois mandamentos do amor acima dos demais, ou quando ensina que o mais importante na lei é o juízo, a misericórdia e a fidelidade.

É por isso que certos pecados (como idolatria e opressão dos pequenos) são condenados com maior severidade e frequência nos profetas. Essas observações estão na raiz na distinção posterior entre os tipos de leis.

Rev. Gyordano M. Brasilino

O Sacerdócio Ministerial no Novo Testamento

A profecia bíblica do Antigo Testamento nos ensina que haveria um tempo em que Deus faria novos sacerdotes dentro do povo de Deus, como lemos em Isaías 66:21: “Também deles tomarei a alguns para sacerdotes e para levitas, diz o Senhor.” Essa profecia foi escrita num tempo em que havia um sacerdócio organizado, desempenhando certos papeis religiosos, litúrgicos, espirituais, educacionais, sociais. Era o sacerdócio hereditário, o sacerdócio levítico. Era um sacerdócio, naquele período, fechado a qualquer outra pessoa de fora dos nascidos na linhagem sacerdotal.

Mas a profecia indica um tempo em que alguns dentre os israelitas que retornassem dentre as nações seriam selecionados como sacerdotes e levitas. Trata-se aqui de um novo sacerdócio. Não um sacerdócio de toda a nação, pois só alguns seriam escolhidos. Não há como dizer que essa profecia se refere ao chamado “sacerdócio de todos os cristãos” sem fazer violência às palavras do texto. Mas não se trata mais de um sacerdócio hereditário, pois seriam contados por Deus como “levitas” aquele que não eram da tribo de Levi. O que é esse novo sacerdócio? Como se cumpre essa profecia?

A maneira como a tradição cristã viu esse cumprimento é bastante óbvia: trata-se do ministério sacerdotal, desempenhado pelos ministros ordenados da Nova Aliança, de fundamento apostólico. Todas as grandes tradições cristãs anteriores à Reforma Protestante (assírios, católicos romanos, ortodoxos, não-calcedonianos) tratam seus ministros ordenados como sacerdotes; essa noção não foi “inventada” por nenhum desses grupos, pois é compartilhada por todos eles, e vemos essa noção nos Pais da Igreja que servem de inspiração para essas vertentes. Ou seja: o testemunho histórico em favor do sacerdócio é unânime. Algumas comunidades afetadas pela Reforma Protestante, como a Igreja Anglicana, continuaram a chamar os seu ministros de sacerdotes (priests) e referir ao seu papel como sacerdócio (priesthood). Mas isso é só uma questão de tradição, ou podemos observar esse sacerdócio no Novo Testamento?

Um primeiro esclarecimento importante é sobre o que se chama de sacerdócio de todos os cristãos ou sacerdócio batismal (porque recebido quando somos batizados). O Novo Testamento menciona essa noção em alguns momentos (1Pe 2:5-9; Ap 1:6; 5:9-10) e ela foi muito importante na Reforma Protestante, ainda que com divergências quanto a seus limites. O próprio Novo Testamento não nos diz muito sobre até onde vai esse sacerdócio, mas os textos indicam que, ao menos, oferecer certos sacrifícios espirituais e testemunhar da fé são parte desse sacerdócio. Possivelmente esses sacrifícios espirituais incluiriam a confissão do nome de Deus e prática do bem e do compartilhamento (Hb 13:15-16) e a contrição do coração, já conhecida no Antigo Testamento (Sl 51:16-17). Podemos falar aqui da importância da oração, que é prática de todos os cristãos. Porém o Novo Testamento nunca indica, como parte desse sacerdócio, o exercício de papeis litúrgicos ou sacramentais.

De todo modo, se todos os cristãos são sacerdotes, logicamente os ministro da Nova Aliança são também sacerdotes. A pergunta então deve ser, então: eles exercem o mesmo sacerdócio que todos os demais cristãos, sem qualquer diferença, ou têm um sacerdócio particular, algo mais? Há alguma indicação sobre isso nas Escrituras? Pois a existência de um sacerdócio universal não elimina um sacerdócio particular. De fato, os textos do Novo Testamento que mencionam o sacerdócio universal aludem a Êx 19:5-6, um texto do Antigo Testamento que fala de uma missão sacerdotal para todos os israelitas, num tempo em que havia sacerdotes com ordenação e missão específicas, não compartilhadas por todo o povo, como bem monstra a controvérsia com Corá (que é relembrada na Epístola de Judas). Se o sacerdócio universal não eliminava o sacerdócio ministerial no Antigo Testamento, também não eliminaria no Novo.

Há algo importante nesse ponto. Embora nenhum de nós viva sob a Lei de Moisés, é fato que seus princípios continuam sendo válidos para instruir os cristãos (2Tm 3:15-17). Embora não pratiquemos a circuncisão, o dízimo ou o culto do mesmo modo que se fazia no Antigo Testamento, os princípios a respeito dessas coisas continuam válidos e úteis. Assim também, quanto ao sacerdócio. O Novo Testamento não é uma eliminação do Antigo Testamento, mas sua superação honrosa.

É claro que os ministros da Nova Aliança não são chamados explicitamente de “sacerdotes” no Novo Testamento, isto é, não recebem ali esse nome explicitamente. Mas qualquer pessoa instruída minimamente acerca da teologia sistemática e sua história sabe que esse é um argumento muito frágil e insuficiente, muito fraco. Como cansamos de repetir, não negamos a existência da Trindade simplesmente porque “Trindade” não é uma palavra presente no Novo Testamento. As palavras ajudam, mas estamos em busca do significado por trás delas, da realidade a que elas apontam. Então, se não há um texto que diga que os ministros da Nova Aliança são sacerdotes, também não há um texto que diga que não são. O Novo Testamento jamais nega a existência do sacerdócio. Essa questão não está respondida pela presença ou ausência dessa palavra, pela afirmação ou negação.

De fato, o exemplo da Trindade também nos ajuda aqui em termos de método. Parte da demonstração da divindade do Espírito Santo nas Escrituras está em indicar como ele faz coisas divinas e tem coisas divinas, em suma, que ele desempenha um “papel” divino, um papel que cabe a Deus. Com o sacerdócio, dá-se o mesmo. Se observarmos as características e tarefas dos sacerdotes no Antigo Testamento e as compararmos às dos ministros do Novo Testamento, veremos uma grande continuidade. Não se trata de uma identidade total, pois os sacerdotes do Antigo Testamento e os do Novo não são a mesma coisa.

Muitas dessas tarefas não são exclusivas dos sacerdotes. De fato, podemos ver a grande maioria delas ser desempenhada por figuras não identificadas como sacerdotes, particularmente grandes profetas. No entanto, colocadas em conjunto, elas claramente indicam o papel sacerdotal, coisas que os sacerdotes deveriam fazer regularmente, mesmo que outras pessoas o façam esporadicamente. Assim, a pergunta diante de nós é: quando descobrimos a essência do sacerdócio no Antigo Testamento, podemos vê-la no ministério do Novo Testamento de tal modo que seja justificado chamá-lo de “sacerdócio”?

Dentre as funções dos sacerdotes no Antigo Testamento, podemos listar, dentre outras coisas:

Ensinar. Os sacerdotes levíticos eram os professores naturais do povo de Israel, com a função de ensinar toda a nação a obedecer as leis divinas, como aprendemos em vários textos bíblicos (cf. Lv 10:8-11; Dt 24:8; 33:10; Ez 44:21,23; Ml 2:7). Outras pessoas podiam ensinar também, mas eles deviam ensinar. Esse é um papel óbvio dos ministros da Nova Aliança (cf. 1Tm 3:2; 5:17). Quando enviou seus apóstolos pelo mundo, Cristo lhes disse que eles deveriam ensinar as pessoas a guardarem tudo o que ensinou (Mt 28:20). O ensino da obediência é uma função sacerdotal compartilhada pelos ministros da Nova Aliança. (Os texto de Levítico e Ezequiel têm uma recomendação contra bebida forte no ministério que aparece também nas exigências dos ministros em 1Tm 3:3,8.)

Ungir. É muito comum, na Lei, que os sacerdotes unjam as pessoas com óleo. Um exemplo interessante é a unção com azeite dos leprosos, em Lv 14:15-18, uma unção que trazia expiação. Vemos a mesma unção com azeite de um enfermo no Novo Testamento, em Tg 5:13-15, que trazia também perdão de pecados (além de cura física), nas mãos dos presbíteros. Os apóstolos tinham esse costume (cf. Mc 6:13).

Purificar (com água). Vemos os sacerdotes usando água para purificar na Lei (Nm 8:7; cf. Nm 31:23). Os ministros da Nova Aliança, no Novo Testamento, batizam seguindo uma ordem de Jesus (Mt 28:19), trazendo purificação (cf. 1Co 6:11). Quanto a essa purificação batismal, a palavra empregada no Novo Testamento é de que o nome foi “invocado sobre” as pessoas num dado momento (cf. Tg 2:7), o que mostra a função sacerdotal de invocar o nome sobre outras pessoas.

Receber e consagrar as ofertas a Deus. Cabia aos sacerdotes e levitas na Lei receber dízimos, primícias e ofertas (cf. Nm 18:21; Ne 10:37-38; Hb 7:5); é por esse motivo que Abraão entregou o dízimo ao sacerdote Melquisedeque. Vemos o mesmo ocorrer no Novo Testamento. Na igreja nascente, as ofertas eram colocadas aos pés dos apóstolos (At 4:35). Do mesmo modo Paulo fala em Rm 15:16, em termos sacerdotais (leitourgon, hierogounta), de sua missão de consagrar as ofertas dos gentios, para que fossem aceitáveis. Qualquer comunidade que afirmar a necessidade do dízimo mas negar o sacerdócio se contradiz, porque cabe aos sacerdotes receber o dízimo. De fato, assim como os sacerdotes da antiga aliança deveriam viver do que recebiam, também os ministros da Nova Aliança (1Co 9:14).

Ministrar o perdão dos pecados e a expiação. É de amplo conhecimento que os sacerdotes do Antigo Testamento ministravam perdão e expiação, como já vimos. Os ministros do Novo Testamento fazem o mesmo. Cristo deu aos apóstolos a autoridade para perdoar pecados (Jo 20:23), e os presbíteros cristãos fazem o mesmo ungindo com óleo (Tg 5:13-15).

Interceder. O que acabamos de dizer se enquadra dentro de uma função intercessória maior. O sacerdote intercede, roga, suplica pelo povo. Vemos o apóstolo Paulo fazê-lo continuamente em suas cartas.

Cuidar da casa de Deus. Cuidar da casa do Senhor era uma função levítica (cf. Nm 1:53; 3:32; 31:30; 1Cr 23:32). Essa mesma função ocorre no Novo Testamento para os ministros da Nova Aliança (1Tm 3:5). É claro que esse cuidado sobre a casa de Deus agora não se refere ao “prédio”, mas à Igreja enquanto Templo e casa de Deus. De fato, quando dizemos que a Igreja é Templo do Espírito Santo (cf. 1Co 3:16-17), presumimos a existência de um sacerdócio que cuide desse templo.

Realizar sacrifícios. Os sacerdotes consagram sacrifícios, na Lei de Moisés. Podemos dizer que os ministros da Nova Aliança realizam sacrifícios específicos? De fato, a Eucaristia é tratada como um sacrifício no Novo Testamento: em 1Co 10:16-21, a Eucaristia é colocada lado a lado aos sacrifícios da Lei (“Israel segundo a carne”) e os sacrifícios dos gentios; em Hb 13:10, fala-se de comer de um determinado altar, usando uma palavra que presume sacrifício (thysiastērion = “sacrificiatório”). Se a Eucaristia é um sacrifício — não um novo sacrifício, mas o mesmo sacrifício de Cristo, do qual agora comemos —, aqueles ministros que a oficiam (inicialmente os apóstolos) são sacerdotes. Há, porém, uma importante distinção entre os clérigos do Novo Testamento e os do Antigo, ressaltada pela Epístola aos Hebreus: os sacerdotes do Antigo Testamento faziam sacrifícios pelos pecados repetidos e incapazes, em si mesmos, de santificar, enquanto Cristo realizou um sacrifício único e irrepetível.

Julgar e excomungar. Como os levitas faziam separação entre o puro e o impuro (Lv 10:10), eles tinham um papel de vigilância, para separarem o que fosse comum ou impuro. Somente o puro poderia entrar na presença do santo, e os sacerdotes agiam aqui, desse modo. O livro de Esdras testemunha, nos capítulos finais, justamente uma aplicação desse princípio. Isso se dá porque cabia aos sacerdotes exercer juízo (cf. Ez 44:24). Assim também, vemos, no Novo Testamento, a aplicação desse juízo pelos apóstolos e por figuras pastorais como Timóteo (cf. 1Co 5:3-5; 1Tm 5:19).

Conduzir a liturgia. Os sacerdotes conduzem a liturgia no Antigo Testamento com tal frequência que isso dispensa comentários. No Novo Testamento, a oração (comunitária), juntamente com o ministério da palavra, é função apostólica (At 6:4), no que eles têm primazia (At 20:11).

Representar Deus. Em suma, o sacerdote era representante de Deus, ou, nas palavras de Ml 2:7, “mensageiro”, “anjo” do Senhor. De fato, a palavra apóstolo, no contexto do Novo Testamento, indica um “representante” (emissário). Os ministros das sete igrejas do Apocalipse são chamados anjos (angeloi), assim como em Malaquias 2:7.

Sacerdotes levíticos abençoam e invocam o nome do Senhor sobre o povo, ensinam a Palavra de Deus, são ministros de cura física e espiritual (especialmente o perdão), ungem, recebem e administram ofertas, presidem sobre a liturgia e sobre o altar, regem o povo em matéria espiritual e disciplinam a pureza e impureza. Todas essas e outas funções estão presentes no Novo Testamento. Vemos, em tudo isso, que o sacerdote é um representante de Deus com a missão oficial de ajudar as demais a se achegarem a Deus como devem. É exatamente a mesma coisa que faz um ministro da Nova Aliança no Novo Testamento, e é exatamente o mesmo sacerdócio primitivo de Adão: servir (lavrar) e guardar o jardim de Deus. Quando dizemos que um ministro da Nova Aliança é sacerdote, queremos dizer que ele age precisamente com tal função: ser um representante de Deus com a missão oficial de ajudar as demais a se achegarem a Deus como devem. Tanto no Antigo Testamento quanto no Novo, esses ministro são consagrados através de um rito de “ordenação”.

Cristo não aboliu a existência de um sacerdócio especial, pois ele mesmo é um sacerdote, na realidade um sumo sacerdote. O sacerdócio de todos os cristãos não é uma abolição do sacerdócio antigo, mas sua expansão ponto de fato mesmo no Antigo Testamento havia esse sacerdócio universal. Aquilo que nós fazemos hoje como parte do sacerdócio universal era feito no antigo testamento pelos israelitas que eram participantes de um sacerdócio a existência de um sacerdócio universal não elimina o sacerdócio particular e ministerial. Portanto se dizemos que todo cristão é um sacerdote, consequentemente os pastores, por serem cristãos, são sacerdotes também (no sentido mais amplo). A questão é: o sacerdócio que eles exercem é idêntico ao dos demais cristãos, ou se refere a algo mais que eles recebem ministerialmente como função, além daquilo que todo cristão pode e deve realizar? Pelo que mostramos acima, a resposta é a segunda. Existe um sacerdócio cristão ordenado.

O leitor talvez tenha percebido que, o tempo todo, chamei os pastores do Novo Testamentos de “ministros da Nova Aliança”, ecoando uma expressão paulina (2Co 3:6). A palavra “ministro” é, ela mesma, uma palavra que tinha conotações sacerdotais (Is 61:6; Jr 33:21; Ez 45:4-5; Jl 1:9,13 etc), e é especial que Paulo a aplique para os obreiros cristãos, em contraposição aos ministros da Lei.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Romanos 7:7-25 não é sobre você (eu espero)

Rembrandt - Apóstolo Paulo

“Porque nem mesmo compreendo o meu próprio modo de agir, pois não faço o que prefiro, e sim o que detesto.” (Romanos 7:15)

No tempo presente, a vida cristã é de constante combate contra os diversos pecados e tentações. Mesmo que saibamos que a vitória sobre o pecado se é realizada por Cristo em nós, a experiência cristã comum é a de que o pecado ainda é uma realidade poderosa, mesmo que não seja a realidade dominante. No sentimento correto e muito justo de buscar, na Sagrada Escritura, voz para as próprias tensões, frequentemente os intérpretes de Rm. 7:7-25 vêem nas palavras de Paulo um eco dessa experiência comum: boas intenções que não conseguem vencer o pecado, não conseguem produzir boas ações. Continue lendo “Romanos 7:7-25 não é sobre você (eu espero)”

A Maldição da Lei

3004177909

“Todos quantos, pois, são das obras da lei estão debaixo de maldição; porque está escrito: Maldito todo aquele que não permanece em todas as coisas escritas no Livro da lei, para praticá-las.” (Gálatas 3:10)

Uma das maiores dificuldades na leitura das Sagradas Escrituras é a falsa identificação entre o sentido do texto e as crenças do leitor contemporâneo. Quando as palavras do texto têm algo em comum com aquilo em que o leitor pensa ser verdadeiro, ele é levado a presumir que o escritor pensa exatamente como ele. Parte do trabalho de interpretação é tornar conscientes as suposições do leitor. Na leitura de Gl. 3:10, uma premissa que freqüentemente se oculta na interpretação é a de que é impossível obedecer a lei. O raciocínio (simplificado) é mais ou menos este:

São amaldiçoados os que não obedecem a lei inteiramente;
É impossível obedecer a lei inteiramente;
Portanto, ninguém obedece a lei inteiramente;
Portanto, todos estão amaldiçoados. Continue lendo “A Maldição da Lei”

A Hipocrisia de Pedro

Rembrandt - Pedro (cortado)

“Estai, pois, firmes na liberdade com que Cristo nos libertou, e não torneis a colocar-vos debaixo do jugo da servidão” (Gálatas 5:1)

O capítulo 12 do Evangelho de Lucas inicia com uma advertência (vv. 1-3) de Jesus contra o fermento dos fariseus, a hipocrisia, seguida de uma exortação o medo (vv. 4-7). Não é difícil ver a conexão entre o medo e a hipocrisia. A pressão do mundo pode provocar medo e o medo pode levar uma pessoa a fingir, a enganar. Jesus lhes diz, porém, que tudo um dia será revelado, tudo virá à luz, e que há mais motivo para temer a Deus do que aos homens. Continue lendo “A Hipocrisia de Pedro”

A Lei de Moisés é falsa?

João Evangelista“Porque a lei foi dada por intermédio de Moisés; a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo.” (João 1:17)

No cristianismo primitivo, assim como havia um partido fortemente judaico, havia uma teologia radicalmente antijudaica, ligada a Marcião de Sinope e a algumas vertentes do gnosticismo, a qual desprezava o Antigo Testamento e a Lei Mosaica, vendo a revelação divina exclusivamente em Jesus Cristo e não nos profetas anteriores. Jo. 1:17 dá razão a essa teolgia, o marcionismo? Continue lendo “A Lei de Moisés é falsa?”