A Apologética do Demônio

Uma das artimanhas mais antigas e constantes do diabo é lançar sutilmente incertezas e dúvidas para minar a fé dos filhos de Deus.

Se ele certamente maquina para nos fazer pensar que somos grandes demais, poderosos demais, ele também procura, por todos os meios, que nos imaginemos incapazes de fazer o aquilo que, sabemos perfeitamente bem, nós podemos, subestimando as nossas faculdades, duvidando dos nossos dons, suspeitando dos nossos sentidos, tudo para nos paralisar quando devemos agir — inclusive tomando a humildade por pretexto.

Existe uma abordagem “apologética” que eu já vi ser utilizada tanto por profissionais quanto por diletantes, por protestantes tentando convencer outros protestantes acerca da necessidade da Tradição, por católicos romanos procurando convencer evangélicos de coisas semelhantes, por escrituralistas e “cosmovisionários”: a artimanha de propor a dúvida, para vender certeza.

Nós gostamos de certezas, é claro. Pense em quantas pessoas se apegam a leituras empobrecidas dos textos bíblicos por lhes garantirem as promessas vãs e vulgares de “certeza da salvação” ou da “segurança eterna” ou coisa que valha.

A artimanha da dúvida está em nos fazer questionar a capacidade da razão, da sensibilidade, da intuição, do esforço, do talento. Dizem coisas como: se não for pela Tradição tal, a Escritura se torna incompreensível, ou excessivamente enigmática, além da nossa capacidade, além da nossa inteligência.

Ou qualquer outra bobagem condescendente e paternalista parecida.

São Tomás, como eu costumo lembrar, afirmava nossa capacidade de conhecer a verdade da Escritura por nossa própria leitura — o Credo (a síntese eclesiástica da Escritura) é necessário por conta do trabalho imenso que seria uma investigação pessoal tal. Não por algum tipo de obtusidade crônica que atacasse particularmente os cristãos.

Pensa-se assim: não somos capazes de entender nada, uma autoridade pensa por nós, estamos a salvo. A consequência mais grave da apologética do demônio — o ceticismo —, empregada por cristãos como arma contra outros cristãos, é semear no coração dos nossos semelhantes uma estrutura de pensamento incapacitante, que acaba por levar ao ateísmo ou ao cinismo, no momento em que a autoridade se mostrar inconfiável. É a troca do intelectualismo extático da Igreja pelo irracionalismo lânguido do século.

O Senhor nos recomenda a astúcia da serpente, mas não o seu veneno, e obviamente não contra os nossos irmãos. Quem tem o soro não pode garantir que não haverá sequelas.

Existe, é verdade, certa doçura infantil em repousar no juízo eclesiástico quanto a questões que estejam, no momento, além de nossa própria labuta. Sempre haverá questões assim. Muitos de nós terão de confiar no juízo do Senhor em repelir o divórcio, antes de poder entender como tal coisa se fundamenta.

Mas ela não representa, de maneira alguma, o telos da humanidade transformada. A auto-infantilização não é uma virtude: “sede meninos na malícia e adultos no entendimento” (1Co 14:20). Pode ser simplesmente uma forma de enterrar os talentos por medo da dureza do Senhor.

Ou só conversa para boi dormir.

Rev. Gyordano M. Brasilino

A Páscoa livra do medo

Algumas pessoas têm um medo profundo da Sexta-Feira Santa e do Sábado Santo. Têm medo do Cristo Crucificado e Sepultado. Elas se sentem profundamente aflitas com esses momentos, e sentem a necessidade de falar logo da Ressurreição. Sentem a necessidade de se livrar do pesar da Cruz, do peso do luto, que sempre iluminou e inspirou a espiritualidade dos cristãos.

Não é de hoje. Poucos foram os discípulos aos pés do Crucificado.

Em alguns casos, o motivo é que elas veem a Paixão e Morte como algo que Cristo passou no lugar delas, e não com elas e por elas. É algo de que Deus as livrou — Deus nos livrou de si mesmo, dizem —, então não veem sentido em abraçar e participar do sofrimento de Cristo. Não entendem que devemos, sim, beber do amargo cálice da Paixão. Isso empobrece a vida de discípulo, que é carregar a Cruz com Jesus. Com Jesus! Com Jesus.

Amaldiçoar o Crucificado dos nossos corações é negligenciar nossa própria santificação. É o gérmen de uma espiritualidade burguesa e amante da comodidade, e que vê Deus como provedor da nossa comodidade. São Paulo ensina, com todo o Novo Testamento: preciso participar dos seus sofrimentos para participar da sua Ressureição. A fraqueza leva ao maior poder. Por isso aprendemos durante toda a Quaresma: o amor da comodidade é um grande engano. O deserto nos prepara para a Paixão.

Assim como o Crucificado venceu o Pecado, o Sepultado levou o Evangelho até a profundidade do Cativeiro humano, espoliando o forte pela força maior da sua Graça.

Mas é sofrer com Jesus na Sexta e no Sábado o que prepara o nosso coração para a alegria do Domingo de Páscoa, para a exultação do Senhor Triunfante que rompeu os grilhões da morte e aniquilou a força do Inimigo. Hoje não é dia de luto, mas de alegria, de júbilo, de cânticos alegres nos céus e na terra.

Não tenham medo da Sexta-Feira e do Sábado, da Paixão e do Sepultamento. Deus não é o Inimigo. Ele é o teu Libertador. Ele te faz vencer o medo. Aleluia!

Rev. Gyordano M. Brasilino

Mulheres cristãs devem usar o véu?

Por que Paulo ensinou que as mulheres devem usar véu? Uma das Escrituras mais surpreendentes e diferentes da mentalidade moderna é o texto em que Paulo ensina que as mulheres devem orar e profetizar sempre com cabeça coberta, e os homens, com cabeça descoberta.

Tanto na cultura grega quanto na judaica — ambas estão em jogo nas palavras de Paulo —, o véu feminino expressava modéstia, e o apóstolo Paulo parece aludir a isso quando diz que, para a mulher, o cabelo crescido é glória (1Co. 11:14-15), de modo que usar o véu seria esconder essa glória.

Diferentemente do homem moderno, Paulo vê no mundo uma ordem natural das coisas, uma diferença entre homens e mulheres: o homem é a glória de Deus e a mulher, a glória do homem. Por isso, ele não tratava apenas de costumes e tradições, mas da própria natureza. Mesmo um costume que sabemos não ser universal, e que ele queria que os coríntios aprendessem, podia ser visto como uma expressão da natureza humana.

Surpreende a justificativa, porém: a mulher deveria usar o véu “por causa dos anjos”. A interpretação mais comum é de que a, na celebração cristã, existe uma unidade entre o céu e a terra, de maneira que os anjos estão presentes entre os homens, o que exigira a devida reverência. Sem dúvida, os primeiros cristãos tinham um senso claro da companhia dos anjos.

A fé cristã tem obrigações e proibições? Alguém perguntou se as mulheres cristãs ainda devem usar o véu quando oram, como o apóstolo Paulo ensinou. A resposta é a seguinte: o cumprimento da lei é o amor, quem ama cumpriu a lei, e do amor dependem todos os mandamentos.

Para Cristo, era melhor salvar um perdido no sábado que guardar o sábado, e isso deve nos impressionar tanto quanto impressionou os fariseus, pois o sábado é um mandamento para com Deus, e Deus tem prioridade em relação ao homem. Para Cristo, o amor está radicalmente acima de toda a lei. Os fariseus quase tratavam a lei como se os mandamentos tivessem todos a mesma importância; para Cristo, há uma hierarquia, há o mais importante e o menos importante. O menos importante depende do mais importante, e deve ser deixado de lado quando for preciso, para cumprir o mais importante.

O problema das “Testemunhas de Jeová”, por exemplo, não é impor aos cristãos a proibição judaica do sangue, ou confundir transfusão com ingestão, mas ler a Escritura como uma lei chapada que tem de ser aplicada em todas as situações, a todo custo, e como se não “comer” sangue fosse tão importante quanto salvar uma vida.

O texto paulino que determina o uso feminino do véu é perpétuo, porque a Escritura é perpétua, é a voz do Espírito em palavras humanas. Qualquer tentativa de transformar o véu em mera prática cultural ultrapassada é inteiramente danosa à interpretação da Escritura, porque não tem limites; qualquer mandamento pode ser visto como cultura ultrapassada, e, assim, a moral cristã vem abaixo. O véu não deixou de ser usado porque ele era apenas um “costume cultural”; deixou de ser usado por causa dos nossos “costumes”.

Entretanto, isso não significa que as mulheres cristãs estejam automaticamente obrigadas a usá-lo. Cabe à Igreja disciplinar essa questão, observando o que é melhor para cada época e lugar, de acordo com a única lei da Igreja, a lei do amor.

Por isso, a religião cristã é, sem dúvida, a religião do coração e a religião do amor. Só há uma coisa proibida na fé cristã: não amar. Ame e faça o que quiser. Todos os outros “nãos” são maneiras de ensinar e preservar o amor. O amor divino é o maior dom, o maior fruto, o maior mandamento, a maior missão, o maior sacrifício, é o sacramento da vida, é a força do perdão, é a unidade da Igreja, é o motivação da Cruz, é a infusão do Espírito, é a essência sublime e inefável de Deus, porque Deus é amor.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Duas maneiras de tratar a imaginação

A imaginação ou fantasia é a atividade de formação de representações no pensamento — seja de imagens “visuais”, seja também de sons, sensações, ideias, com todo o mundo afetivo em torno delas. A imaginação abre nosso pensamento para o possível, assim como para o real que transcende o corporal. Através da imaginação, podemos reorganizar nossas memórias e formar quimeras e monstros.

Ela é uma faculdade poderosa, mas não precisamos pensar muito para perceber como a imaginação pode ser muito perigosa. Afinal, imaginar envolve imaginar o mal, criar possibilidades destrutivas. O pecado é, em grande medida, sugerido pela imaginação. Nossa imaginação não se fixa naquilo que é mais racional e melhor, mas forma também possibilidades piores: ela planeja a vingança, arquiteta o crime, deleita-se previamente na crueldade, prepara a traição, fábrica a calúnia, cria o ídolo. Pensemos no quanto o pecado da curiosidade depende da imaginação. O mal que praticamos certamente emerge do nosso próprio coração (Mt 15:19). Vários textos nas Escrituras Sagradas falam de como a imaginação pode ser perversa.

Além dos pecados que praticamos intencionalmente, ao dar ouvidos às sugestões inferiores da imaginação, ela também coloca diante de nós várias prisões: ansiedades e medos se enraizam na imaginação. A imaginação não está sob o controle direto da vontade, então é possível racionalmente sugerir à imaginação alguma ideia — embora isso mesmo seja difícil quando estamos sob efeito de alguma emoção intensa —, mas é difícil simplesmente parar de imaginar alguma coisa. Não depende de um ato simples de vontade. Reordenar a nossa atenção dá trabalho.

Há duas possibilidades de enfrentamento do problema da imaginação, além de ignorá-lo. A primeira possibilidade é negar totalmente a imaginação, a iconoclastia do pensamento. Nessa possibilidade, o problema da imaginação é tratado como incurável, impossível de ser resolvido, então o que devemos fazer é fugir da imaginação tanto quanto pudermos.

Essa primeira possibilidade é irreal no objetivo e insatisfatória no processo. A imaginação não é uma coisa má, mas uma capacidade dada por Deus. Na verdade, a imaginação é fundamental para o amor e para a prática da virtude. Sem nossa capacidade de imaginar e de reconfigurar nossas experiências, somos incapazes de mostrar compaixão e empatia por pessoas diferentes de nós — pois essas coisas envolvem a capacidade de imaginar o sofrimento alheio. A ação moral não é possível sem a imaginação moral. Como vou chorar pelos que choram, sem sentir o que sentem?

Todas as nossas ações conscientes envolvem imaginação. Um missionário que sai de sua terra imagina a possibilidade de converter pessoas. Uma pessoa que inicia um trabalho social com pessoas pobres e estrangeiros imagina o bem que lhes pode ser feito. Essas pessoas imaginam fins possíveis e meios adequados para alcancá-los, assim como impedimentos previsíveis. Há sempre um “cálculo de futuro”, ou seja, imaginação.

Como escreveu Jonathan Edwards (Experiencing God), Deus nos deu a faculdade da imaginação e “nos fez de tal modo que não podemos pensar nas coisas espirituais e invisíveis sem algum exercício dessa faculdade”. Deus nos criou como seres imaginativos, e o processo de imaginação é parte da maneira como nós nos relacionamos com ele. Ele é impossível de ser imaginado, mas é impossível pensar nele sem imaginá-lo de alguma maneira, analogicamente. Isso envolve aquela realidade, ensinada pelo São Paulo, de que a natureza invisível de Deus é manifestada pelas coisas criadas (Rm 1:20). Como ensinou Calvino, Deus quer que nos demoremos nessa contemplação mediada pela criação visível.

O problema da imaginação é real, mas a solução de simplesmente suprimir a imaginação não funciona, ela vai contra o plano divino. Com o Grande Mandamento, aprendemos que Deus quer de nós, exige de nós, que o amemos com todo o coração, com toda a alma, com todo o entendimento, com todas as forças — o que significa que não podemos simplesmente tentar suprimir uma dimensão da nossa vida interior, pois isso seria negar a Deus o que é seu. Assim como o desejo não é destruído e anulado, mas dirigido a Deus, também a cura da nossa imaginação está em se centrar nele. Nossa obediência a esse mandamento não se deve a uma necessidade de Deus, pois ele não ganha nada com nosso amor, mas a uma necessidade de nossa, à necessidade que temos de ser curados. Só no Infinito há a cura da nossa imaginação. Uma vez que os atributos divinos estão sempre acima e além de qualquer coisa que conheçamos com nossa memória, é a nossa imaginação que os torna (minimamente) inteligíveis.

Diante disso, a segunda possibilidade é disciplinar a imaginação, dirigir a imaginação na direção correta. Um coração transformado envolve um pensamento renovado (Rm 12:2). É um processo, de modo que Paulo exorta àqueles cristãos em Roma a se renovarem no pensamento. Na mesma carta, ele fala do conflito interior entre as cogitações da carne e as do espírito (Rm 7–8).

Quando lemos as Escrituras, parte do que acontece é que repovoamos o nosso imaginário com os melhores objetos. Quando lemos o primeiro relato da Criação (Gn 1), e imaginamos a ordem por trás das diversas etapas; ou quando pensamos nas Dez Pragas e na abertura do Mar, no Êxodo; ou na batalha entre Davi e Golias; ou nas imagens tremendas do Salmo 18; ou talvez nos verdes pastos e águas tranquilas do Salmo 23, parte do processo de entender as histórias envolve lê-las imsginativamente. Um dos maiores deleites ao ler os evangelhos canônicos está em imaginar aquilo que o Senhor disse e fez, particularmente na sua Paixão e Crucificação, que, segundo São Tomás, são a inspiração principal da nossa devoção. O mesmo se dá com os Atos dos Apóstolos, ou, de modo muito óbvio, com o Apocalipse de São João, um livro que só pode ser lido se usarmos bem a imaginação. As imagens apresentadas e sugeridas pela Sagrada Escritura devem ter um lugar dominante no nosso pensamento, tornando-nos capazes de imaginar o inimaginável, através de representações menores e abertas.

No caso do Apocalipse, em particular, há algo importante a dizer. Num texto anterior, eu me referi a um erro muito comum na leitura do livro, cometido especialmente por pessoas que iniciam no estudo da Teologia: a ideia de que o livro foi escrito em código para que os perseguidores romanos não entendessem que a mensagem dizia respeito a eles. Isso não faz nenhum sentido; se o Apocalipse tivesse sido escrito como um código assim, seria um código muito bobo, pois os romanos poderiam facilmente entendê-lo. Na verdade, a Meretiz assentada sobre a Basta não é um código para se referir a Roma. A verdade é o contrário: a Roma pagã é um código que se refere à Meretriz. Deus nos dá a imagem porque quer que vejamos Roma de certa maneira, quer que imaginemos Roma de certo modo. A Roma que os apóstolos viam com os olhos é um símbolo que se remete a uma realidade espiritual mais profunda e monstruosa. Usamos símbolos porque eles se reportam a realidades mais profundas que o uso comum das palavras. É por isso que a Escritura Sagrada é cheia de símbolos, e não apenas linguagem denotativa simples; ela fala de realidades muito profundas. A leitura alegórica das narrativas bíblicas, mesmo as não claramente alegóricas, depende disso.

Quando oramos, um dos nossos maiores inimigos é a imaginação, que se perde a transitar em vários mundos e foge da realidade invisível e inimaginável do Deus Inefável. Esse é um dos motivos pelos quais, seja na época dos apóstolos, seja séculos depois, a cultura religiosa cristã — herdeira do simbolismo judaico antigo —, desenvolveu através das artes elementos para fortalecer nossa devoção e atenção às coisas de Deus: teatro, música, pintura, arquitetura, liturgia, cerimônia, vestimenta e outras artes que atraem nossa atenção e espírito de reverência. O Rev. Jeremy Taylor escreveu, em seu livro Vida Santa:

Por esse propósito é bom transplantarmos os instrumentos da imaginação para a religião, e por essa razão a música foi trazida às igrejas, assim como ornamentos, e perfumes, e vestes dignas, e solenidades, e cerimônias decentes, para que a imaginação muito ativa e menos discenente, sendo atraída aos seus objetos próprios, possa ser instrumental para um amor mais celestial e espiritual.

Nesse jogo, a imaginação defeituosa é vencida pela inteligência; ela procura o corporal e, como por um anzol, é dirigida ao espiritual. Todos nós sabemos sobre o efeito quase irresistível que a música excerce sobre nossos afetos — Hooker fala de como certas formas de música “levam como a êxtases, enchendo a mente com alegria celestial e, por um tempo, de certo modo separando-a do corpo” —, e podemos ver algo disso nas mais diversas artes. Não usamos “melodias bíblicas” — de fato, nem sequer a ideia do que seja uma melodia é bíblica. Mas precisamos dessas artes não-bíblicas para obedecer à Palavra de Deus escrita. A arte musical nos auxilia na oração, tornando nosso coração mais dócil diante de Deus.

Assim, todo o coração deve ser convertido a Deus, cativo a Cristo, e isso inclui a imaginação. Soterrar a imaginação não é uma conversão completa. A conversão completa é ocupar a imaginação com “tudo o que é verdadeiro, tudo o que é respeitável, tudo o que é justo, tudo o que é puro, tudo o que é amável, tudo o que é de boa fama, se alguma virtude há e se algum louvor existe” (Fp 4:8).

Rev. Gyordano M. Brasilino

Eu sou um eleito? Meu filho é um eleito?

O arminianismo e o calvinismo, nas suas versões mais comuns populares, têm certos problemas pastorais que são muito mais fáceis de resolver quando se tem uma perspectiva mais equilibrada e multifacetada. Não adianta discutir esses assuntos, ou rejeitar toda discussão, sem atentar para o modo como essas coisas afetam a vida das pessoas.

O calvinismo, particularmente o de tipo mais puritano, acentua o primeiro problema: eu sou um eleito? O Arminianismo acentua o segundo: O meu filho é um eleito?

Quando criamos uma barreira intransponível entre os salvos e os condenados, e vemos que os primeiros, os eleitos de Deus, devem ser identificados por certas características de “comportamento piedoso”, entramos no primeiro problema. Pois os cristãos mais sérios são aqueles que mais percebem suas próprias insuficiências, e, por isso, nesse esquema, são os que mais provavelmente encontrarão problemas de consciência e duvidarão da esperança da vida eterna, enquanto os que vivem na letargia da doutrina abstrata sem exame de vida, aqueles que têm pecados comuns e aceitos ou invisíveis — a inveja, a gula, a avareza, certas formas de soberba —, não terão problema em se verem como eleitos, especialmente quando cercados de discursos do tipo “descanse em Deus”. Tudo o que o preguiçoso quer ouvir é “descanse!”.

Como não há uma maneira de transpor o caminho dos perdidos para os salvos — aquilo que se chamou de “graça suficiente” —, nós nos deparamos com um “grande abismo”, sem ter o que fazer e sem saber se Deus virá em nosso socorro. As pessoas que caem nesse desespero artificial, criado pela doutrina, serão consideradas como realmente perdidas, pessoas que nunca foram eleitas, que nunca acreditaram “de fato”. Assim, o grupo preserva o senso de que seu remédio realmente funciona — se não funcionou em alguém, aquela pessoa é a culpada. O sofredor é culpado pelo sofrimento. A solução reforça o problema.

Isso é muito fácil de resolver quando você entende que a fonte da graça está bem diante de você. A possibilidade de cooperar com essa graça nos permite perceber que não somos inertes. Não há muro, mas uma escada, cujo primeiro degrau está bem à nossa frente. Graça suficiente e cooperação são necessárias.

Por outro lado, há outro problema, o problema de Santa Mônica e de tantas mães, de tantos pais, ao longo dos séculos, que viram seus filhos longe da graça e da fé. O pensamento de que nossa conversão depende, num nível último, de nossa própria escolha, gera o problema de que não há nada que possamos fazer pelo pecador endurecido, nada que nos dê a segurança de que tudo está nas mãos de Deus.

O que fazemos por essas pessoas? Nós pregamos, nós amamos, nós perdoamos, nós damos exemplo de vida, nós apoiamos, nós temos paciência, nós testemunhamos com misericórdia — tudo isso como “cooperadores de Deus” —, mas, acima de tudo isso, nós invocamos aquele que tem em suas mãos todos os corações e que é poderoso para abrir os olhos espirituais, para mover as vontades, para curar os sentimentos feridos, para saciar todos os desejos da nossa alma na direção do sentido último, que pode remover o coração de pedra, que pode libertar de todo cativeiro das trevas e iluminar o nosso espírito com um clarão que espanta toda a escuridão — aquele que não respeita o pecado e, por isso, não precisa respeitar nossa (falsa) liberdade de pecar.

Então oramos com fé pelo pecador, crendo na eficácia da graça divina. Nós nos desesperamos quando achamos que tudo depende de nós — que a conversão do meu filho depende dele —, mas temos uma firme esperança quando acreditamos naquele que, através de nossas orações, pode inundar a todos nós, especialmente àqueles a quem amamos, com uma torrente extraordinária de graça, atraindo com laços de amor. A graça eficaz é necessária.

Esses problemas pastorais se devem, em parte, a que essas teologias não resultem da experiência histórica dos cristãos, mas do exame de teólogos deduzindo proposições a partir do texto bíblico.

Nenhum teólogo é uma ilha, é claro. Todo teólogo leva sua tradição e experiência — como pecador, como cristão, como membro de uma comunidade concreta, como representante de uma classe social ou raça, como ser humano diante do problema da existência — para o exame da doutrina, na saúde ou na doença, mas a teologia que procura conscientemente se atentar para a experiência e reconhecê-la é diferente. Uma teologia que emerge de séculos de tradição foi “testada” — sabemos os seus resultados e limites. Uma que, assim que surge, logo se torna dogma exigido pela comunidade, não passou pelo exame.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Os Apóstolos não escreveram tudo

Existem várias coisas que Cristo e os apóstolos ensinaram e que sabemos, através do Novo Testamento, que não foram registradas nos escritos canônicos. Os apóstolos esperavam que esses ensinos orais tivessem autoridade (cf. 1Co 11:2; 2Ts 2:15; 3:6 etc).

Alguns exemplos:

1. O ensino acerca dos símbolos do Santuário israelita é mencionado em Hb 9:1–5, e a carta diz: “Dessas coisas, todavia, não falaremos, agora, pormenorizadamente.” Embora haja, aqui e ali no Novo Testamento (como no livro do Apocalipse) e nos primeiros Pais da Igreja alusões a esse tema, esses pormenores não estão explícitos em nenhum lugar da Bíblia.

2. A liturgia primitiva não foi registrada no Novo Testamento. Os apóstolos ensinaram às pessoas da época algum tipo de culto, mas ele só é conhecido indiretamente, por poucas referências no NT e por comparação com as liturgias históricas preservadas e costumes sinagogais. Não sabemos pelo NT como era a liturgia cristã primitiva, exceto quando lemos o NT à luz desses conhecimentos posteriores (ex: quando lemos os relatos da Ressurreição à luz dessas liturgias).

3. Em Jo 21:25 e At 1:3, ficamos sabendo que Jesus fez e disse coisas que não foram registradas por escrito. Alguém pode supor que essas coisas teriam reaparecido em algum outro momento do NT, mas não há como verificar essa afirmação. Como At 20:35 dá a entender, esse conhecimento oral sobre as palavras de Jesus não registradas nos evangelhos (ágrafos) circulava na época.

4. O NT depende de um “dicionário” moral específico, ou seja, de que certas virtudes, que nunca são explicadas, sejam entendidas de certa maneira. O que é piedade? O que hospitalidade? O que é mansidão? Essas e outras expressões dependem de uma dada cultura religiosa — pré-cristã em grande parte, inclusive (judaica e pagã) — que lhes confira significado e praticidade. Com certeza em algum momento os apóstolos tiverem que ensinar algo sobre essas coisas, mas não temos o registro direto desses momentos.

5. Em alguns momentos, como 2Tm 2:2, temos o ensino oral como coisa preciosa a ser guardada por pessoas específicas. Não faria sentido dizer isso se tudo seria escrito num mesmo lugar.

6. Em 2Co 12:2, Paulo fala do “terceiro céu“. Esse terceiro céu não é explicado em nenhum lugar da Bíblia. Havia no judaísmo apocalíptico da época especulações sobre isso. Cristo e os apóstolos pensavam algo sobre isso, e o texto dá a entender que eles concordavam em parte com essa cosmologia. Mas onde concordaram e onde discordaram? O NT não nos diz.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Três Epifanias

As Três Epifanias (revelações) são:

A da Natividade, com os magos, em Belém, diante dos pagãos, pela estrela no céu.

A do Batismo, com João Batista, no Jordão, diante dos judeus, pelo Espírito que desce sobre a água.

A das Bodas, com Maria, em Caná, diante dos discípulos, pela água que vira vinho.

A primeira é 6 de Janeiro. A segunda é a terceira são os dois domingos seguintes.

Há um vínculo teológico entre as três epifanias. A primeira é a luz da razão (o conhecimento dos magos), a segunda é a revelação do Antigo Testamento (João Batista é o ápice da Antiga Aliança), a terceira é o Novo Testamento. Por isso: gentios, judeus, cristãos (os três povos).

A luz da razão apenas contempla os céus (estrela). A Antiga Aliança traz o céu à terra (como a chama que desceu para o altar). Mas somente a Nova Aliança tem o milagre na terra.

Os magos trazem os presentes do casamento. João Batista é o amigo do noivo (ele é o “amado” do Cântico dos Cânticos). Maria é a mãe do noivo (que faz simbolicamente as vezes da noiva).

As três epifanias são três eras: a origem, a maturidade e a consumação.

A sequência é também a da cristã iniciação. Na primeira epifania, o ensino e a doutrina. Já segunda epifania, o Batismo. Na terceira epifania, a Eucaristia.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Sola Scriptura (4 Teses)

1. Até a Reforma Protestante, não havia um princípio claro como “Sola Scriptura”. Havia a suficiência das Escrituras, mas ela não era contraposta à Tradição.

2. Antes da Reforma, não havia uma explicação clara e uniforme da relação entre a Escritura e a Tradição. Havia vários discursos. Olhar retrospectivamente para esses documentos patrísticos ou escolásticos e ver apenas “suficiência material” é tão anacrônico quanto ver “Sola Scriptura”.

3. O princípio Sola Scriptura surgiu quando, na interpretação de Lutero, as Escrituras e a autoridade eclesiástica se contradisseram. O princípio não significa necessariamente rejeição da Tradição, mas significa, sim, a “rejeitabilidade” de algum dos seus elementos.

4. Mesmo depois da Reforma Protestante, não se estabeleceu uma maneira única de explicar o princípio Sola Scriptura. As tradições protestantes têm perspectivas diferentes do que ele significa.

Rev. Gyordano M. Brasilino

O Litúrgico e o Contemporâneo

Eu sei, esses nomes são ruins. Todo culto é litúrgico, toda forma de adoração, especialmente adoração em comunidade, envolve liturgia. Assim também, todo culto que é feito hoje é contemporâneo. Ninguém está livre de tradições e ninguém simplesmente vive o passado.

Mas claramente há dois “estilos” que marcam ramos diferentes da fé cristã, que se identificam através de conceitos como esses. Valores diferentes estão em circulação, maneiras diferentes de medir se o culto cristão cumpre o seu papel ou não.

São estilos muito diferentes, de fato, de modo que aqueles que se identificam com um estilo podem ter, para dizer o mínimo, certa antipatia pelo outro. Como alguém que transita bem entre estilos diferentes e que, na verdade, foca em outras coisas, eu vejo que esses dois estilos têm, em meio às muitas diferenças, certas semelhanças conceituais. Há algumas coisas que são buscadas em comum, e que servem de ponte para quem faz a travessia de um tipo para o outro. Servem de ponte também para quem, ingressando na fé cristã, vem de uma cultura pós-moderna que valoriza algumas dessas mesmas coisas.

Alguns exemplos que podem ser encontrados em comunidades com esses estilos:

1. O USO DA ESCRITURA. Um traço comum mais óbvio é que os praticantes desses estilos de adoração, embora usem as Escrituras Sagradas, e não se vejam como as contradizendo, geralmente também não as usam como se fossem manuais completos e suficientes de liturgia e culto — não esperam estar limitados àquilo que as Escrituras prescrevem. Aquilo que há nelas em termos de exemplos e valores é incorporado na vida da comunidade de maneira mais criativa.

2. O GUIAMENTO DO ESPÍRITO. Os praticantes desses estilos, embora não limitem o culto às prescrições das Escrituras, não obstante veem suas celebrações como sendo guiadas pelo Espírito Santo, num tipo de ordem que transcende a capacidade imaginativa meramente humana. De um lado, esse guiamento é visto no cuidado histórico que o Espírito Santo teve para com a Igreja. Do outro, ele aparece na orientação do Espírito aqui e agora. Mas, nos dois casos, a convicção de que, embora o conteúdo substancial da Revelação esteja completo no testemunho dos primeiros apóstolos e cristãos (“depósito da fé”), ainda assim o Espírito continua ativo para conduzir, ordenar e orientar a Igreja hoje.

3. A PRESENÇA DIVINA. Por isso mesmo, os dois estilos de adoração veem a celebração cristã como uma coisa sobrenatural. Não é apenas uma palestra de um bom professor bem preparado, ou música bem ensaiada. Existe um desejo místico pela Presença Divina. Seja através de sacramentos e cerimônias, seja unções e palavras proféticas, o milagre é central nesses dois estilos. A depender da comunidade, nos dois casos pode haver ênfase na presença de anjos e na batalha espiritual. Embora ambos os estilos tenham grandes pregadores, se pode dizer que em nenhum deles a pregação é um fim em so, mas um meio para a Presença — embora provavelmente os litúrgicos sejam mais rápidos em reconhecê-lo. A ênfase não está na formação doutrinal.

4. ADORAÇÃO HOLÍSTICA. Em conexão com essas coisas, ambos os estilos são fortemente imagéticos — você o vê pelo modo como ambos fazem uso da fotografia. Neles há uma clara preocupação com a imagem, com o movimento e com a beleza. Seja com incenso ou gelo seco, velas ou LED, os responsáveis por esses estilos têm um senso nítido de que ajudam as pessoas a participarem se houver o “clima” adequado — de que nossa vida interior não está desligada dessas coisas, não é independente. Por isso, não são estilos tão fáceis de reproduzir bem em qualquer ambiente. Eles têm um custo, um “equipamento”. O culto envolve a pessoa por completo, inclusive seus olhos e narizes, mãos e joelhos. São celebrações que movem os afetos e os corpos, numa dada direção.

Nessas quatro dimensões, ambos os estilos têm consciência de que Deus transcende nossas capacidades racionais, e de que o nosso culto deve levar essas coisas em conta. Esse terreno comum se fortalece ainda mais quando essas comunidades têm uma vida carismática mais intensa.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Tradição e Abdução

piero-della-francesca-batismo-de-cristo

“Mas, ainda que nós ou mesmo um anjo vindo do céu vos pregue evangelho que vá além do que vos temos pregado, seja anátema.” (Gálatas 1:8)

“E tu, ó Timóteo, guarda o que te foi confiado…” (1Timóteo 6:20)

“…exortando-vos a batalhardes, diligentemente, pela fé que uma vez por todas foi entregue aos santos.” (Judas 3)

Os usos mais freqüentes da palavra “fé” no Novo Testamento dizem respeito à virtude pessoal da fé — o “espírito de fé” de 2Co. 4:13, algo próximo ao habitus fidei. Embora freqüentemente se realce a fidelidade da fé, que é uma das traduções possíveis para a mesma palavra pistis (cf. Rm. 3:3), essa palavra também designa o cristianismo como um todo e sua pregação em particular (Rm. 10:18; 13:11; Gl. 1:23; Ef. 4:5; etc.). Toda forma válida de pregação cristã posterior ao Novo Testamento é apenas a exposição desse depósito de fé original. Continue lendo “Tradição e Abdução”