Caridade e Coerção

Reflexão sobre caridade, coerção e modernidade, a propósito de Tolstói.

Em sua famosa “Carta a um Hindu” (1908), Tolstói apresenta os termos gerais de uma narrativa interessante, ainda que não muito inovadora: ele trata parte da história política humana como um conflito entre a “lei do amor” (lei espiritual inerente à natureza humana e conhecida de todas as grandes religiões) e instituições políticas de coerção e violência (punições, prisões, execuções, torturas, guerras), marcada pela tirania de uma minoria sobre a maioria.

Nisso ele está em continuidade como que já havia escrito em “O Reino de Deus está dentro de vós” (1894), agora incluindo outras tradições religiosas (particularmente o hinduísmo). Por que a humanidade não percebeu a contradição entre a lei do amor e a coerção política? Segundo Tolstói, porque as superstições religiosas e depois as superstições científicas justificaram o recurso à violência. O que há de interessante na carta é que nela o romântico Tolstói se coloca também contra parte da modernidade (até mesmo contra a teoria atômica) e contra a ilusão de que a ciência traria ordem ao mundo.

A resposta, para Tolstói, estaria na lei inerente à natureza humana. Por isso, há na carta elementos que prenunciam a pós-modernidade, mas também há um essencialismo de fundo, o Rousseau em Tolstói. De todo modo, se Tolstói via contradição entre a lei do amor e a violência, a saída não seria a violência libertária, mas simplesmente o recurso à lei do amor, com o abandono das superstições. Simples, não? Imagine all the people living for today.

Essa tensão entre amor e opressão na política não é criação de Tolstói, mas tem longa história, e pode mesmo ser vista em Santo Agostinho, o qual, contudo, soube distinguir a Cidade de Deus e a cidade dos homens, em suas aproximações e afastamentos. (Por isso, há um considerável elemento “anárquico” em Agostinho, também.)

Isso mostra aquilo que eu considero como a heresia fundamental do tolstoísmo: a sua incapacidade de perceber o elemento caritativo na política. Ou, dito de outro modo, e em termos muito claros: a necessidade de defender a lei da caridade através de alguma forma coerção. Não a tortura (que corrompe o torturador e o torturado), nem a invasão a outras nações, mas realismo. Tolstói foi traído pelo individualismo romântico.

Ou talvez o melhor seria dizer que essa é a hipocrisia fundamental, ou a ingenuidade cordial, ou mesmo a desatenção essencial. Pois, se é verdade que a política moderna procurou expulsar a influência religiosa explícita, e gradativamente trocou a ética transcendente pelo positivismo e pelo constitucionalismo (que nunca se divorcia totalmente da ética), não conseguiu desfazer a conexão com o princípio do amor: quando proibimos que se mate, quando punimos a incitação a delito, quando limitamos os danos causados sob o primado da liberdade de expressão, nós agimos por uma preocupação caritativa (mesmo que oblíqua) para com o ser humano igual a nós. De fato, quando punimos torturadores, é à lei da caridade que prestamos homenagem.

Digo que há ingenuidade no tolstoísmo, e mesmo conivência com o mal, porque, na verdade, o motivo fundamental pelo qual não há ordem política sem violência, é este: há pessoas que, mesmo que não sejam espiritualmente irredimíveis, são politicamente irreformáveis, são inobjetificáveis, estão além de toda psiquiatria repressiva, de toda pedagogia libertadora, de toda negociação ao nosso alcance. Nunca devemos presumir que estamos diante dessas pessoas, a caridade nos obriga a dar a todos a chance de mudança, e isso certamente nos inspirará a condições distintas e humanas no tratamento dos condenados criminalmente. Num mundo em que pessoas assim existem, a caridade exige que protejamos aqueles que podem estar sob sua mira.

Justificação pela fé e Juízo Final segundo as obras

Autun, Kath. Saint Lazare, Tympanon - Autun, Cath. Saint Lazare, tympanum -

“Igualmente, acerca da justificação, ensinamos que, falando propriamente, ela significa o perdão dos pecados e nossa aceitação ou reconciliação para a graça e favor de Deus, isto é, a verdadeira renovação em Cristo, e que os pecadores não podem obter essa justificação sem arrependimento e o movimento correto e próprio do coração para Deus e o próximo, que é obra do Espírito Santo.” — Abp. Thomas Cranmer, Treze Artigos de 1538 Continue lendo “Justificação pela fé e Juízo Final segundo as obras”

O Deus misericordioso do Antigo Testamento

Oséias de Rafael

Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, porque dais o dízimo da hortelã, do endro e do cominho e tendes negligenciado os preceitos mais importantes da Lei: a justiça, a misericórdia e a fé; devíeis, porém, fazer estas coisas, sem omitir aquelas! Mateus 23:23

O uso do Antigo Testamento pela Igreja é uma das mais profundas e importantes interrogações da teologia cristã. Nas décadas anteriores à escrita dos livros do Novo Testamento, os Oráculos Sagrados dos hebreus foram a primeira Bíblia dos cristãos, como foi a Bíblia de Jesus e dos primeiros discípulos. Mortas as últimas testemunhas oculares da ressurreição de Cristo, em pouco tempo vemos já as celebrações cristãs iniciadas pela leitura das memórias dos apóstolos e dos escritos dos profetas, como nos conta o mártir Justino. Nisso se expressava a fé da Igreja não apenas na continuidade da revelação de Deus entre judeus e cristãos, mas também na continuidade do Deus da revelação, que jamais muda e não mudou entre as duas eras. Continue lendo “O Deus misericordioso do Antigo Testamento”

Predestinação em Sto. Agostinho

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Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos tem abençoado com toda sorte de bênção espiritual nas regiões celestiais em Cristo, assim como nos escolheu, nele, antes da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis perante ele; e em amor nos predestinou para ele, para a adoção de filhos, por meio de Jesus Cristo, segundo o beneplácito de sua vontade,” (Efésios 1:3-5)
Indelével. A marca que Sto. Agostinho deixou na cristandade ocidental é indelével. Ele está envolvido em todos os grandes debates da Igreja antiga, e em todos eles ele deixou alguma contribuição importante. Polêmica em muitos casos, mas sempre importante, e talvez mesmo a mais importante seja também a mais polêmica, que é a teologia da graça, gestada nos conflitos do africano contra as tendências moralistas e paganizantes de Pelágio e seus seguidores. Mas antes disso, especialmente no debate contra o rigorismo donatista, a doutrina da graça de Agostinho já estava em preparação, na sua reflexão sobre os sacramentos. A doutrina da predestinação é uma conseqüência da doutrina da graça.

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Teologia do Amor em Agostinho

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“Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda esse é o que me ama; e aquele que me ama será amado de meu Pai, e eu o amarei, e me manifestarei a ele.” (João 14:21)

A teologia do amor de Agostinho é como que o crescimento das preciosas sementes das Sagradas Escrituras, que nos ensinam que do amor dependem todos os mandamentos, que todas as coisas devem ser feitas com amor, sem o qual nada tem valor, que quem ama cumpriu a lei, que não pode dizer que ama a Deus quem não ama ao irmão, que Deus permanece naqueles que permanecem em seu amor, que o amor procede de Deus e é derramado em nossos corações pelo Espírito Santo e, sobretudo, que Deus é amor. Por um lado, o amor é a máxima exigência e, por outro, o maior dom. Continue lendo “Teologia do Amor em Agostinho”

Oração e santificação

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“De sorte que, meus amados, assim como sempre obedecestes, não só na minha presença, mas muito mais agora na minha ausência, assim também operai a vossa salvação com temor e tremor; porque Deus é o que opera em vós tanto o querer como o efetuar, segundo a sua boa vontade.” (Filipenses 2:12,13)

A famosa oração de Agostinho, “Domine, da quod iubes et iube quod vis” (Senhor, dá o que ordenas e ordena o que quiseres), captura a essência da súplica por santidade conforme ensinada nas Escrituras. Se ele nos dá o que exige, não há limites para o que possa exigir. Suas exigências são satisfeitas por aquilo que ele nos concede; desde que nos dê, estará satisfeito. Nossas próprias limitações se tornam como que irrelevantes, já que Deus é poderoso para fazer ainda mais do que o que pedimos ou imaginamos. Ainda assim, somos inteiramente dependente deles; se não nos conceder sua graça santificante, não iremos a parte alguma. Só podemos suplicar. Continue lendo “Oração e santificação”

Duas palavrinhas sobre o “Milênio” em Ap. 20:4-6

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“Vi também tronos, e nestes sentaram-se aqueles aos quais foi dada autoridade de julgar. Vi ainda as almas dos decapitados por causa do testemunho de Jesus, bem como por causa da palavra de Deus, tantos quantos não adoraram a besta, nem tampouco a sua imagem, e não receberam a marca na fronte e na mão; e viveram e reinaram com Cristo durante mil anos. Os restantes dos mortos não reviveram até que se completassem os mil anos. Esta é a primeira ressurreição. Bem-aventurado e santo é aquele que tem parte na primeira ressurreição; sobre esses a segunda morte não tem autoridade; pelo contrário, serão sacerdotes de Deus e de Cristo e reinarão com ele os mil anos.” (Apocalipse 20:4-6)

Dois pontos são especialmente incompreendidos quando se trata da interpretação de Apocalipse 20:4-6. Esse texto fala de um período de mil anos entre duas ressurreições. Aqueles que participam da primeira ressurreição reinam com Cristo pelos mil anos e a morte não tem domínio sobre eles, enquanto os outros mortos participam da segunda ressurreição. Continue lendo “Duas palavrinhas sobre o “Milênio” em Ap. 20:4-6″

Agostinho e a Igreja invisível

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“Deixai-os crescer juntos até à colheita,
e, no tempo da colheita, direi aos ceifeiros:
ajuntai primeiro o joio, atai-o em feixes para ser queimado;
mas o trigo, recolhei-o no meu celeiro.”
(Mateus 13:30)

Agostinho ensinava a noção de Igreja invisível? Como expliquei num texto anterior (leia aqui), a noção de Igreja invisível pode ser tomada em direções diferentes, uma mais moderada e outra mais radical: pode-ser ver mais unidade ou mais tensão entre o visível (a instituição, a hierarquia, a membresia, o rito) e o invisível (o destino eterno). Por isso, antes de que pergunte se o Doutor da Graça apoiou ou mesmo originou a noção de Igreja invisível, é preciso afastar noções mais populares e menos elaboradas desse conceito. Trata-se de um teólogo — o maior da Igreja antiga. Continue lendo “Agostinho e a Igreja invisível”

A Serpente não é Satanás (e outras alegorias)

Leão e Serpente

A interpretação literalista da Bíblia é um fenômeno essencialmente moderno. Toda interpretação séria da Sagrada Escritura leva em conta o sentido literal do texto. Que o sentido literal deva ser preferido sempre que possível, é algo com que qualquer hermenêutica pode concordar. Orígenes, grande campeão da interpretação alegórica, podia perfeitamente concordar com essa tese. A diferença é a extensão do “sempre que possível”, havendo quem o queria alargar ou limitar. Para o mesmo Orígenes (De principiis), uma interpretação que fosse contraditória ou incompatível com o que se sabe sobre o mundo deveria ser descartada; ela não seria “possível”. Por isso, nosso conhecimento do mundo real independente do texto seria uma medida de literalidade. Continue lendo “A Serpente não é Satanás (e outras alegorias)”

Torna-te o que tu és

luthertotle“Porque já estais mortos, e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus.”  (Colossenses 3:3)

É famosa a polêmica de Lutero contra Aristóteles. Se, por um lado, Lutero representava uma reação agostiniana extremada (até disparatada) à absorção da filosofia aristotélica pelos escolásticos, ele estava bem consciente da incompatibilidade entre diversos elementos da Ética de Aristóteles e a teologia da graça. Muito de Aristóteles precisava morrer para que ele fosse batizado. Continue lendo “Torna-te o que tu és”