Por que Maria é chamada “mãe do meu Senhor” em Lucas 1:43?

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O primeiro capítulo do Evangelho de Lucas é uma das partes mais encantadoras e fascinantes de toda a Sagrada Escritura, por muitos motivos: conta-nos da origem do cristianismo em termos tão íntimos e tão familiares, ao mesmo tempo tão imersos na religião e no messianismo hebreu, e tão únicos se comparados ao restante do Novo Testamento — como a narrativa tão mais abreviada em Mateus 1 —, fazendo, por alguns instantes, adentrar até mesmo a vida interior de Maria, a quem Isabel nomeia “mãe do meu Senhor” (Lc. 1:43). Essas palavras são surpreendentes em todos os sentidos.

Apesar de talvez encontrarmos uma cristologia menos desenvolvida em alguns estratos do livro de Atos (cf. 10:37-38), todo o Novo Testamento trata a Cristo como divino de algum modo, e isso inclui os Evangelhos sinóticos, embora neles sua divindade seja mais misteriosa: ele é o Filho de Deus, como testemunham as cenas do Batismo, da Transfiguração e outras, mas isso indica paridade em relação ao Pai ou algum tipo de divindade inferior? Muitas vezes não nos é dito.

Mesmo no Evangelho de João, conhecido por afirmar a divindade de Cristo desde o primeiro versículo, essa divindade ainda assim é apresentada progressivamente. Primeiramente Cristo é chamado theos (1:1) e monogenēs theos (1:18), expressões em um contexto helênico não indicariam necessariamente o Deus Absoluto, especialmente considerando o título de logos. É certo que o zelo dos inimigos do Senhor logo os leva a perceber as pretensões incríveis de Cristo (5:18), mas somente depois, nos capítulos 8 e 10, Cristo revela sua divindade plena, mas não sem confundir seus leitores ou ouvintes, dentro da linguagem da pericórese (10:37-38). Cristo só é identificado clara e distintamente com o Deus de Israel na confissão de Tomé (20:28). Essa proclamação final da divindade do Filho de Deus na boca do discípulo, feita com tanto custo e tanta preparação literária, corresponde àquela que Isabel, em Lucas, faz sem muita dificuldade: “[o] meu Senhor”.

Assusta que o testemunho da divindade de Cristo apareça tão rápido e com tanta clareza em Lucas, muito antes do esperado. As palavras de Isabel são mais claras que a própria Anunciação, no mesmo evangelho: Gabriel havia dito a Maria que seu Filho seria chamado Filho de Deus, e que o Senhor que daria o trono de Davi (1:31-32) — o que ainda não é o mesmo que reconhecer a igualdade divina, a consubstancialidade entre o Pai e o Filho.

O texto também não nos revela, até ali, que Isabel soubesse da divindade de Cristo. Antes, cheia do Espírito Santo (1:41), ela age como verdadeira profetisa, anunciando que o Senhor está no meio do seu povo. Os dois primeiros capítulos do Evangelho são como que um pequeno Pentecostes prévio, com uma concentração incrível de profetas e revelações sob inspiração do Espírito da Promessa: Ana, Isabel, João Batista, Simeão, além das mensagens angélicas. Assim o Espírito Santo realiza um papel que, na tradição joanina (Jo. 1:32-34; 15:26-27; 1Jo. 5:6), é propriamente seu, mas igualmente na lucana (At. 1:8; 5:32; cf. 1Co. 12:3): testemunhar acerca de Cristo, apontar a presença do Deus de Israel no Salvador do Mundo. Sob ação do espírito, Isabel é, de certo modo, a primeira a confessar que Cristo é o Senhor.

Em toda a obra lucana (Evangelho e Atos), na qual há afirmações talvez menos explícitas — como ser chamado “Senhor do sábado” (Lc. 6:5, anartro) ou “o autor [archēgos] da vida” (At. 3:15, mas cf. 5:31) —, sem sombra de dúvida as palavras de Isabel são a mais contundente confissão da divindade plena de Cristo, por sua identificação com o Deus de Israel que aquela mulher sempre cultuou, o Deus de seus antepassados, de Abraão, Isaque e Jacó, e que os judeus cultuavam como único Senhor.

É verdade que a palavra grega para Senhor, kyrios, poderia ser usada sem indicar divindade, e provavelmente esse é o sentido da palavra quando o vocativo (kyrie) ocorre no Evangelho de Lucas, na boca de pessoas que se dirigem a Cristo e que obviamente ignoravam sua divindade (5:8,12; 7:6; 9:57,59,61, etc.). Também Lucas testemunha o senhorio de Cristo em termos do messiado, ao invés da divindade (At. 2:36; cf. Lc. 2:11; Rm. 14:9; Fp. 2:6-11). No entanto, não é isso que ocorre em Lucas 1. Ali, Deus é invocado como “[o] Senhor” ([ho] Kyrios, tou Kyriou), um uso gramatical apropriado para Deus, o que o contexto confirma: na própria fala de Isabel, ela refere-se a Deus como Senhor pouco depois.

Lucas 1:41-45: Ouvindo esta a saudação de Maria, a criança lhe estremeceu no ventre; então, Isabel ficou possuída do Espírito Santo. E exclamou em alta voz: Bendita és tu entre as mulheres, e bendito o fruto do teu ventre! E de onde me provém que me venha visitar a mãe do meu Senhor? Pois, logo que me chegou aos ouvidos a voz da tua saudação, a criança estremeceu de alegria dentro de mim. Bem-aventurada a que creu, porque serão cumpridas as palavras que lhe foram ditas da parte do Senhor.

No capítulo, fala-se dos mandamentos do Senhor (1:6), do templo do Senhor (1:9), do anjo do Senhor (1:11, anartro), em ser grande perante o Senhor (1:15), no Senhor Deus (1:16, anartro), em preparar o povo para o Senhor (1:17, anartro), na graça concedida pelo Senhor a Isabel (1:25), assim como a Maria (1:28), no Senhor Deus novamente (1:32, anartro) e na serva do Senhor (1:38, anartro). Após o v. 43, Deus continua sendo invocado como Senhor nas palavras de Isabel (1:45, anartro), no Magnificat (1:46), pelo narrador (1:58, anartro) e em outros lugares (1:66,68,76; 2:9,11 etc.). O contexto e o fraseado grego de Lc. 1:43 são inequívocos: ali se fala do Senhor Deus.

As revelações formam um crescendo. Primeiramente o anjo Gabriel anuncia a Isabel que seu filho será conhecido um profeta do Altíssimo. Depois o anjo anuncia a Maria que seu Filho será conhecido como Filho do Altíssimo. Então a própria Isabel, com o profeta no ventre e cheia do Espírito Santo — fala ali não mais um anjo, mas o próprio Espírito Divino —, anuncia que Maria é mãe do Senhor, portanto que aquela criança é o seu Senhor. Não é necessário supor que Isabel tenha tido, naquele momento, todo um vislumbre da dogmática calcedoniana, da união hipostática; mas sem dúvida ela contemplou o mistério condensado ao qual as definições conciliares da antigüidade se referem e que tencionam proteger. Ali também o profeta João Batista inicia seu ministério, preparando o caminho do Senhor. Não, não foi Isabel. O primeiro a reconhecer a Cristo como Senhor foi o bebê João Batista.

Como poderia ser Maria mãe do Todo-Poderoso que criou tudo muito antes dela sequer existir? Eis o mistério da união inseparável da divindade e da humanidade no Redentor sem confusão, sem mudança, sem divisão, sem separação. Maria só contribuiu, propriamente, com a humanidade, e a união das duas naturezas foi ação do Espírito Santo. No entanto, uma mãe é mãe de uma pessoa, não de uma natureza, e dizer que Maria é mãe apenas do “Jesus homem” ou da “humanidade”, sem qualquer amparo da Sagrada Escritura, é violar aquilo que a Revelação Divina, na boca de Isabel, testemunhou: que Maria era mãe do Senhor, do Deus de Isabel. Não há dois cristos — um humano e outro divino —, mas um Cristo, Deus-Homem, de modo que, assim como Deus Pai é pai de Cristo, não apenas de sua natureza divina, Maria é mãe do Senhor, não apenas de sua natureza humana. O que é dito sobre ambas as naturezas é dito sobre a única pessoa de Cristo.

O Cristo Deus, Filho de Maria, é o mesmo Senhor da Glória crucificado (1Co. 2:8). Assim como Maria não poderia dar à luz a Deus, também os algozes não poderiam lhe tirar a vida na Cruz; e, no entanto, dada a união de sua humanidade à sua divindade, um mesmo é Senhor da Glória e o Crucificado, Filho de Deus e Filho de Maria, inseparavelmente: o Senhor da Glória é o Crucificado (ainda que impassível), Maria é mãe do Senhor (ainda que eterno), e a heresia consiste em evitar esses paradoxos.

Aí reside a função de Maria na economia da salvação realizada por seu Filho. Não tanto no seu exemplo de vida — poderoso por seu sacrifício de fé, mas pouco explorado pelos próprios Evangelhos —, mas porque o mistério da união entre divindade e humanidade na pessoa do Redentor se revela nela, nos acontecimentos de sua vida, de maneira que tudo aquilo que as Escrituras contam sobre Maria aponta para Cristo. Ela é a testemunha principal e participante do mistério mais fundamental da fé cristã, do paradoxo mais central de todos, entregando ao Filho de Deus a humanidade que o torna filho de Abraão e que nos torna filhos de Abraão.

A narrativa lucana preserva a divindade de Cristo de maneira maravilhosa, assim como alguns séculos depois, preservaria a verdade de sua encarnação da heresia nestoriana que tentava impiamente separar as duas natureza do Senhor. Mas não há como fazê-lo sem separar a si mesmo do Senhor.

Rev. Gyordano M. Brasilino

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