A Apologética do Demônio

Uma das artimanhas mais antigas e constantes do diabo é lançar sutilmente incertezas e dúvidas para minar a fé dos filhos de Deus.

Se ele certamente maquina para nos fazer pensar que somos grandes demais, poderosos demais, ele também procura, por todos os meios, que nos imaginemos incapazes de fazer o aquilo que, sabemos perfeitamente bem, nós podemos, subestimando as nossas faculdades, duvidando dos nossos dons, suspeitando dos nossos sentidos, tudo para nos paralisar quando devemos agir — inclusive tomando a humildade por pretexto.

Existe uma abordagem “apologética” que eu já vi ser utilizada tanto por profissionais quanto por diletantes, por protestantes tentando convencer outros protestantes acerca da necessidade da Tradição, por católicos romanos procurando convencer evangélicos de coisas semelhantes, por escrituralistas e “cosmovisionários”: a artimanha de propor a dúvida, para vender certeza.

Nós gostamos de certezas, é claro. Pense em quantas pessoas se apegam a leituras empobrecidas dos textos bíblicos por lhes garantirem as promessas vãs e vulgares de “certeza da salvação” ou da “segurança eterna” ou coisa que valha.

A artimanha da dúvida está em nos fazer questionar a capacidade da razão, da sensibilidade, da intuição, do esforço, do talento. Dizem coisas como: se não for pela Tradição tal, a Escritura se torna incompreensível, ou excessivamente enigmática, além da nossa capacidade, além da nossa inteligência.

Ou qualquer outra bobagem condescendente e paternalista parecida.

São Tomás, como eu costumo lembrar, afirmava nossa capacidade de conhecer a verdade da Escritura por nossa própria leitura — o Credo (a síntese eclesiástica da Escritura) é necessário por conta do trabalho imenso que seria uma investigação pessoal tal. Não por algum tipo de obtusidade crônica que atacasse particularmente os cristãos.

Pensa-se assim: não somos capazes de entender nada, uma autoridade pensa por nós, estamos a salvo. A consequência mais grave da apologética do demônio — o ceticismo —, empregada por cristãos como arma contra outros cristãos, é semear no coração dos nossos semelhantes uma estrutura de pensamento incapacitante, que acaba por levar ao ateísmo ou ao cinismo, no momento em que a autoridade se mostrar inconfiável. É a troca do intelectualismo extático da Igreja pelo irracionalismo lânguido do século.

O Senhor nos recomenda a astúcia da serpente, mas não o seu veneno, e obviamente não contra os nossos irmãos. Quem tem o soro não pode garantir que não haverá sequelas.

Existe, é verdade, certa doçura infantil em repousar no juízo eclesiástico quanto a questões que estejam, no momento, além de nossa própria labuta. Sempre haverá questões assim. Muitos de nós terão de confiar no juízo do Senhor em repelir o divórcio, antes de poder entender como tal coisa se fundamenta.

Mas ela não representa, de maneira alguma, o telos da humanidade transformada. A auto-infantilização não é uma virtude: “sede meninos na malícia e adultos no entendimento” (1Co 14:20). Pode ser simplesmente uma forma de enterrar os talentos por medo da dureza do Senhor.

Ou só conversa para boi dormir.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Sola Scriptura (4 Teses)

1. Até a Reforma Protestante, não havia um princípio claro como “Sola Scriptura”. Havia a suficiência das Escrituras, mas ela não era contraposta à Tradição.

2. Antes da Reforma, não havia uma explicação clara e uniforme da relação entre a Escritura e a Tradição. Havia vários discursos. Olhar retrospectivamente para esses documentos patrísticos ou escolásticos e ver apenas “suficiência material” é tão anacrônico quanto ver “Sola Scriptura”.

3. O princípio Sola Scriptura surgiu quando, na interpretação de Lutero, as Escrituras e a autoridade eclesiástica se contradisseram. O princípio não significa necessariamente rejeição da Tradição, mas significa, sim, a “rejeitabilidade” de algum dos seus elementos.

4. Mesmo depois da Reforma Protestante, não se estabeleceu uma maneira única de explicar o princípio Sola Scriptura. As tradições protestantes têm perspectivas diferentes do que ele significa.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Princípios Protestantes, na versão equilibrada.

Texto originalmente publicado em 27 de fevereiro de 2019, na minha página do Facebook.

A Reforma Protestante costuma ser explicada a partir de alguns princípios, mas há sempre uma forma radical e uma forma equilibrada de tratar esses princípios.

SOLA FIDE
Forma Equilibrada — A salvação é somente por meio da fé em Cristo. Essa fé salvífica é uma fé viva e frutífera, que opera em amor, não uma fé morta.
Forma Radical — A salvação é somente por meio da fé em Cristo, e essa fé não tem qualquer relação com as obras. Não há qualquer necessidade de busca da santidade de vida (antinomismo).

SOLA GRATIA
Forma Equilibrada — Do começo ao fim, a salvação resulta da graça de Deus, pelos méritos de Cristo, que se tornam nossos de muitas maneiras (meios de graça, especialmente os sacramentos).
Forma Radical — Do começo ao fim, a salvação resulta da graça de Deus, e essa graça não está ligada a nada, sendo totalmente invisível e conhecida apenas internamente.

SOLA SCRIPTURA
Forma Equilibrada — Todos os artigos da fé cristã estão explícitos ou implícitos nas Escrituras Sagradas, havendo um papel fundamental na Tradição como preservação do sentido correto dessas Escrituras. Cada cristão pode fazer o livre exame dessas Escrituras, respeitando o papel histórico da Igreja como sua guardiã.
Forma Radical — Todas as verdades da fé cristã devem estar explícitas nas Escrituras Sagradas. Não há lugar para credos ou tradições (Solo Scriptura), portanto cada cristão é livre para interpretar as Escrituras.

SOLO CHRISTO
Forma Equilibrada — Cristo é o único caminho de salvação, e ele vem a nós através do seu corpo, cuja missão espiritual é não apenas falar sobre Cristo, mas realmente levar Cristo às pessoas.
Forma Radical — Cristo é o único caminho, portanto a Igreja é dispensável e desnecessária para a salvação.

SOLI DEO GLORIA
Forma Equilibrada — Toda a glória deve ser dada a Deus, e devemos honrar aqueles que nos precederam na fé e nos deixaram (em doutrina e em vida) exemplos de fé fundamentais para a nossa santificação. Maria é a mãe de Deus, bendita entre as mulheres.
Forma Radical — Toda a glória deve ser dada a Deus, portanto nenhuma outra pessoa deve ser digna de honra ou pode servir de exemplo. Maria foi uma mulher comum.

SACERDÓCIO UNIVERSAL
Forma Equilibrada — Cada cristão é vocacionado por Deus a exercer um sacerdócio com sacrifícios espirituais (oração, jejum, obras de misericórdia), testemunhar do nome de Cristo, intercedendo por outras pessoas. Os ministros do evangelho são pais espirituais.
Forma Radical — Todo cristão tem autoridade total para exercer1 qualquer ministério. Nenhum dom específico é concedido por Deus a certas pessoas para exercerem ministério do evangelho. Os ministros do evangelho são só professores.

O radicalismo é uma disjunção entre:
– Fé e Obras
– Graça e Sinal
– Escritura e Tradição
– Cristo e Igreja
– Adoração e Comunhão dos Santos
– Sacerdócio e Pastorado

O espírito católico protestante é o da unidade.

Rev. Gyordano M. Brasilino

Contra o Princípio Regulador do Culto

Aliança

Portanto, já que estamos recebendo um Reino inabalável, sejamos agradecidos e, assim, adoremos a Deus de modo aceitável, com reverência e temor, pois o nosso “Deus é fogo consumidor!” (Hebreus 12:28,29)

Todos os cristãos concordam que somente Deus deve ser adorado, e que somente deve ser adorado como sua Palavra estabelece. Existe um modo aceitável (euarestōs) de se adorar a Deus — o que quer dizer que há também um modo inaceitável. Todas as tradições cristãs vêem em Hb. 12:28,29 uma clara afirmação da seriedade com que se deve tratar os limites do culto comum. Mas entre os cristãos protestantes, há um debate sobre o que constitui de fato uma liturgia obediente à Palavra. Significa que devemos fazer apenas o que a Escritura não proíbe, ou que devemos fazer apenas aquilo que ela manda? Há graus distintos de liberdade. Continue lendo “Contra o Princípio Regulador do Culto”