Aniquilacionismo?

Dentre as interpretações já levantadas para a escatologia e particularmente para a condenação eterna, uma que eu nunca levei a sério é a doutrina da aniquilação, que entende o castigo como sendo o da destruição, da completa inexistência. Até entendo as razões que as pessoas têm para chegar a essa posição, que me parecem ter mais a ver com repulsa pelo “tradicionalismo” e pelo universalismo, mas ideia de que uma pessoa possa deixar de existir, que qualquer pessoa possa deixar de existir, me causa uma aversão visceral.

O mérito que essa doutrina tem é o de afirmar nitidamente que Deus porá um fim definitivo ao mal, mas isso também se encontra no universalismo e nas melhores expressões da doutrina “tradicionalista”. Falando racionalmente, há três problemas que o aniquilacionismo, qualquer que seja a versão, me parece não resolver bem ou de maneira nenhuma:

1. O problema da ressurreição. Essa ideia torna a ressurreição da condenação supérflua. Eles retomam o corpo para terem o corpo (agora juntamente com a alma) destruído. Não há um sentido possível nisso.

2. O problema da justiça. No fim das contas, os condenados terão a exatamente mesma punição: a destruição, a de-sistência. Um aniquilacionista pode alegar que eles sofrerão por algum tempo antes disso, na proporção dos seus pecados, mas isso só quer dizer que, embora eles tenham exatamente o mesmo castigo eterno, terão um castigo temporal diferente. Ademais, diferentemente da doutrina “tradicionalista” (e também do universalismo), o bem feito em vida pelos condenados não terá nenhum efeito eterno, mas apenas temporal (diminuindo seu sofrimento pré-aniquilação), enquanto seu mal terá um efeito eterno.

3. O problema da tradição. A doutrina da aniquilação não tem espaço na tradição cristã histórica. Às vezes os defensores da doutrina da aniquilação apelam a textos mal explicados de duas ou três figuras antigas periféricas, mas fazem com elas o mesmo que fazem com a Bíblia, isto é, a dedução do tipo “falou de destruição, logo aniquilacionismo”, como se os tradicionalistas e universalistas históricos também não falassem de destruição (mas interpretando “katargein” como “anular, “suprimir”, “neutralizar”, “desoperar”).

Rev. Gyordano M. Brasilino

O Fogo Purificador (Santa Macrina e São Gregório de Nissa)

Arrependei-vos, pois, e convertei-vos para serem cancelados os vossos pecados, a fim de que, da presença do Senhor, venham tempos de refrigério, e que envie ele o Cristo, que já vos foi designado, Jesus, ao qual é necessário que o céu receba até aos tempos da restauração de todas as coisas, de que Deus falou por boca dos seus santos profetas desde a antiguidade.” (Atos 3:19–21)

A despeito do fato de que nós hoje — corretamente — nos preocupemos com uma imagem de violência divina que sirva para justificar e inflamar a violência humana, ainda assim devemos procurar aquela verdade profunda subjacente às palavras de que o Senhor “açoita a todo filho a quem recebe… a fim de sermos participantes da sua santidade”. A imagem é de uma sociedade em que o castigo físico como expiação e reforma era comum — como vemos no livro de Provérbios —, mas não precisamos nos deter nela. Embora nem todo sofrimento seja, a priori, imediatamente benéfico, deve haver um lugar para o sofrimento na nossa própria transformação.

São Gregório de Nissa, guiado por sua mestra e irmã, Santa Macrina, é levado a contemplar os mistérios da salvação e da condenação, da bondade e da severidade de Deus, numa perspectiva escatológica. Como é bem sabido, eles acreditavam na salvação última de todas as pessoas, a apocatástase. Essa doutrina parte de várias premissas, dentre as quais está a teoria restaurativa e transformadora da pena — que não apenas crê que Deus açoita a todos a quem recebe como filhos, mas recebe como filhos a todos a quem açoita, e cuja dor é intrínseca (causada pelo pecado) e não extrínseca (causada por Deus) —, assim como uma metafísica mística que, por colocar Deus na raiz de todas as criaturas, não consegue não conceber o fim como um retorno de tudo à origem e, portanto, o fim do mal, quando Deus será “tudo em todos”. Nessa concepção, Deus, por ser Deus, não pode eternizar a “existência” do mal. Os místicos universalistas, como Juliana de Norwich e William Law, têm muito em comum.

Não é preciso concordar de todo com a tese da salvação universal para admirar a beleza do modo como Santa Macrina e São Gregório descrevem a resolução última do drama universal. Mas é claro que somente aqueles que acreditam em algum tipo de purificação após a morte — seja num purgatório mais modesto ou mais guloso — serão capazes de aceitar algo assim. Nesse caso, há muitas semelhanças com o purgatório de Santa Catarina de Gênova e de C. S. Lewis. Em nível último, sem algum tipo de pena purificadora (ao menos para parte dos pecadores), o que temos é a prevalência da punição pena punição.

“Uma vez que toda natureza atrai para si aquilo que lhe é afim, e o homem é em certo sentido afim a Deus já que tem em si a imitação do arquétipo, a alma não pode não ser arrastada em direção ao divino por aquilo que lhe é afim; com efeito, é preciso que seja inteira e absolutamente reservado para Deus aquilo que lhe pertence. Se, portanto, a alma é leve e pura, sem nenhum fardo corporal que pede sobre ela, a sua ascensão em direção Àquele que a atrai é agradável e fácil. Mas levantamos a hipótese de que esta seja trespassada pelos pregos da afeição pelas coisas materiais. Nos desastres provocados por terremotos, os corpos esmagados pelos escombros são destinados a sofrer uma semelhante sorte. Suponhamos que esses não somente sejam sufocados pelas ruínas, mas que sejam também trespassados pelos pais e pelos pedaços de madeira que se encontram nos escombros. É fácil intuir os sofrimentos que tocam aos corpos que se encontram nesse estado, quando os seus próximos os retiram das ruínas para sepultá-los santamente: esses são todos pesados e reduzidos a pedaços e sofrem as penas mais atrozes, laceradas pelos escombros e pelos pregos sob o efeito de uma tração violenta. Parece-me que análogo sofrimentos prove também a alma, quando a potência Divina, impelida pelo seu amor em favor dos homens, deseja extrair aquilo que lhe pertence dos escombros representados pela irracionalidade e pela matéria. Na minha opinião, Deus, que exige em restituição e atrai para si tudo aquilo que nasceu graças a ele, não inflige aos pecadores as dores porque os odeia ou queira puni-los pela sua má vida: ele se limita a atrair a alma para si, a fonte de toda bem-aventurança, em vista de um bem superior; mas aquele que é arrastado não pode não tocar a dor.
Como quem deseja eliminar com o fogo o material que se encontra misturado com ouro não pode limitar-se a fundir este material espúrio, mas é constrangido a fundir juntamente também o ouro puro, que permanece enquanto o primeiro se consuma, assim, enquanto mal é consumido pelo fogo inextinguível, a alma também, unida ele, está necessariamente no fogo, até que os elementos espúrios e materiais que foram semeadas nela sejam eliminados e consumados pelo fogo eterno…
…O mal deve ser de fato de todo eliminado do ser: como se disse antes, o não-ser não pode existir. Uma vez que o mal não pode, por natureza, existir fora do livre arbítrio, quando o livre arbítrio se encontra em Deus, o mal irá ao encontro da total destruição porque não lhe resta mais nenhum receptáculo.” — A Alma e a Ressurreição IV

“… Quanto à diferença entre uma vida segunda virtude e uma vida segundo vício, ela aparecerá sobretudo na vida futura, onde a participação na felicidade esperada será mais rápida ou mais tardia. Com efeito, a medida do mal sobrevindo em cada um corresponderá perfeitamente a duração mesmo da cura. A cura da alma consiste na purificação do mal; e esta, como se provou precedentemente, não poderá realizar-se sem um estado de sofrimento…
Mas a vida virtuosa conhecerá em razão do mal as seguintes diferenças: aqueles que nesta vida se cultivaram por meio da virtude se tornam logo uma espiga perfeita; mas aqueles em que o mal tornou débil e exposta aos danos do vento nesta vida a potência contida na semente psíquica — isto, segundo sábios nesses assuntos, costuma acontecer às chamadas sementes duras — mesmo se [um dia] ressurgirem, serão tratados pelo juiz com grande severidade, porque não tiveram força para reencontrar a forma da espiga e se tornarem o que precisamente éramos antes da queda sobre a terra… Quando todas as ervas bastardas e estranhas forem separadas da planta genuína e levadas a destruição pelo fogo que consome o elemento exterior à natureza, então a natureza desses seres também prosperará e produzirá os seus frutos maduros reassumindo, depois de um longo período, a forma comum a todos os homens, que Deus imprimira em nós no início… As paixões produzidas pelo mal se a bola hein dificilmente da alma, uma vez que se encontram misturadas com ela em sua totalidade, tendo crescido com ela e formado uma só coisa com ela ponto quando, portanto, Os seres desse gênero foram eliminados e destruídos pela cura do fogo, cada uma dessas realidades cuja noção tem um conteúdo positivo vir a tomar o lugar: a incorruptibilidade, a vida, a honra e a Graça, a glória, a potência, e toda a outra realidade desse gênero que, segundo nossas conjecturas, se possa contemplar ao mesmo tempo em Deus mesmo e em sua imagem, que é a natureza humana.” — A Alma e a Ressurreição VI

“Entretanto, como para o corpo há diferentes enfermidades, das quais algumas se prestam mais facilmente à cura e outras com maior dificuldade, e para essas últimas se recorre às incisões, às cauterizações, às porções amargas para eliminar os males que se abateram sobre o corpo, do mesmo modo tratamentos análogos nos são anunciados pelo juízo futuro para cura das enfermidades da alma, e isto, para os mais frívolos, é ameaça e método de correção severos, a fim de que o temor de uma expiação dolorosa nos faça tornar-se sábios e nos leve a fugir do mal; mas para aqueles que são mais sensatos, a fé assegura que é uma cura e um tratamento salutar da parte de Deus que deseja reconduzir a sua criatura à graça originária.

Com efeito, aqueles que eliminam com incisões ou mediante cauterização assistências e as verrugas que se formaram no corpo contra a natureza, não conseguem uma cura sem dores ao beneficiário do tratamento; mas, ao menos, não praticam a incisão para causar um dano ao paciente; assim também todas as excrescências materiais que se formaram em nossas almas tornando-as canais sobre efeito de sua participação nas mais de exposições do corpo, são, no tempo oportuno daquele juízo, cortadas e eliminadas por aquela inefável sabedoria e pela potência daquele que, segundo Evangelho, é médico dos pecadores: ‘Não são de fato, diz ele, os sãos, que têm necessidade do médico, mas os doentes.’” — A Grande Catequese VIII, 10–11


“Quando o ouro se mistura a uma matéria menos valiosa, os ourives eliminam com a ação do fogo o elemento estranho e sem valor, devolvendo à matéria mais nobre seu esplendor natural. Todavia, esta separação não sucede sem labor, pois o fogo, com sua força de consumação, necessita de tempo para fazer desaparecer o elemento impuro; aliás, é uma espécie de tratamento aplicado ao ouro, o fato de fundir o elemento que está contido no outro e que altera sua beleza.
Pois da mesma maneira, visto que a morte, a corrupção, as trevas e tudo o que é engendrado pelo mal estão estreitamente unidos ao inventor do mal, a aproximação da potência divina provoca, como o fogo, a destruição do elemento contrário a natureza e, graças a esta purificação, mostra-se salutar para a natureza, por mais penosa que seja a separação. Por conseguinte, tampouco o adversário poderia duvidar de que se trata de um processo justo e salvífico, se chegasse a compreender o benefício que disto resulta.
Ora, precisamente, como aqueles que suportam a terapia a base de cortes e de cauterizações se irritam contra os médicos em razão da dor aguda provocada pelo corte, mas, quando, graças a esses meios, recuperam a saúde e desaparece a dor da cauterização, então terão gratidão por quem os curou; da mesma maneira, uma vez que, após o longo transcorrer dos tempos a natureza foi libertada do mal (do mesmo modo que agora está mesclado e cresceu com ela), quando se cumprir o retorno à condição originária daqueles que agora estão sujeitos ao mal, se erguerá uma sinfonia de ação de graças de toda a criação, seja daqueles que foram castigados com essa purificação, seja da parte de quem não tiver necessidade de purificação.
Esses ensinamentos e outros do mesmo gênero nos transmitem o grande mistério da Encarnação divina. Graças a sua mescla com a humanidade, assumindo todas as particularidades próprias da natureza humana, o nascimento, a educação e o crescimento, e atravessando inclusive a prova da morte, Deus cumpriu tudo o que foi dito anteriormente, libertando o homem da maldade e curando o próprio autor da maldade. Com efeito, curar uma enfermidade é fazer desaparecer a doença, ainda que à custa de sofrimento.” — A Grande Catequese XXVI, 6–9

“…constituindo toda a natureza como um só ser vivo, a ressureição de um membro se estende a todo o conjunto, e da parte se comunica ao todo em razão da continuidade e unidade da natureza.” — A Grande Catequese XXXI, 4

“Ora, o que corresponde ao ouro impuro é o forno de fundição; assim, uma vez fundida toda a maldade que se tinha misturado a esses pecadores, sua natureza, já purificada depois de longos séculos, será reconduzida a Deus sã e salva. Por conseguinte, visto que há certa força purificadora no fogo e na água, aqueles que lavaram a mancha da maldade mediante a água sacramental não necessitam de outra forma de purificação; aqueles, ao contrário, que não são foram iniciados nessa purificação, necessariamente deverão ser purificados pelo fogo.” — A Grande Catequese XXXV, 15

Rev. Gyordano M. Brasilino

O Purgatório de C. S. Lewis: Uma Defesa Breve

 

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Bem-aventurados os limpos de coração, porque verão a Deus. Mateus 5:8

A vida cristã é uma contínua reflexão sobre a morte, sobre o destino último do ser humano, na lembrança de que cada um terá de enfrentar o inimigo terrível (memento mori). Vivemos vidas piores quando não nos lembramos da seriedade do nosso destino. As distrações do tempo acabam por consumir e vencer nossos melhores ideais, enquanto a Eternidade nos dá o único parâmetro verdadeiro pelo qual devemos julgar o peso real das coisas. A grandeza e eternidade de Deus provocam a inquietante pergunta sobre o Para Onde. Continue lendo “O Purgatório de C. S. Lewis: Uma Defesa Breve”

Sobre o Inferno

La Barca di Caronte

Ai de ti, Corazim! Ai de ti, Betsaida! Porque, se em Tiro e em Sidom, se tivessem operado os milagres que em vós se fizeram, há muito que elas se teriam arrependido, assentadas em pano de saco e cinza. Contudo, no Juízo, haverá menos rigor para Tiro e Sidom do que para vós outras. Tu, Cafarnaum, elevar-te-ás, porventura, até ao céu? Descerás até ao inferno.” (Lucas 10:13-15)

“Assim como o coração do animal está no meio, assim também o inferno considera-se estar no meio da terra.” (Isidoro de Sevilha, Etimologias, XIV, 9, 11)

Em Teologia, grande é a tentação é de querer que as coisas sejam simples demais. Nós ficamos mais tranqüilos quando aquilo em que cremos cede, de algum modo, à nossa compreensão, e não é fácil vencer a inqüietação causada pelo que a excede.  Se isso é mais ou menos verdade sobre cada doutrina cristã, agrava-se quando o tema é a mais terrível delas, a doutrina do Inferno. Quando não podem esquecê-la, as pessoas abraçam mais facilmente as interpretações que de algum modo facilitam as coisas. Continue lendo “Sobre o Inferno”

O Inferno é separação? — Um erro de tradução em 2Ts. 1:9

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É freqüente na pregação popular a imagem do Inferno como um “afastamento” em relação a Deus. Tanto entre católicos romanos quanto entre protestantes, essa idéia encontra aceitação quase universal no Ocidente. O afresco do Juízo Final, de Michelangelo, captura essa concepção ocidental: o Senhor advindo sobre as nuvens executa seu juízo por meio de anjos, reunindo para a si os salvos e lançando na condenação os perdidos. Os únicos a rir, de fato, são os demônios, no canto inferior direito (a esquerda de Cristo). Eles parecem ser castigadores, não castigados. Continue lendo “O Inferno é separação? — Um erro de tradução em 2Ts. 1:9”